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A Pena e a Lei, de Ariano Suassuna

by Lucas Gomes

A Pena e a Lei

, de 1959, peça em três atos que Ariano Suassuna juntou em uma só.

Com base no teatro de mamulengos, nas histórias populares de cantadores nordestinos e nos bonecos
brincantes, mesclam-se, no texto, auto, sátiras de costumes e farsa. Em A Pena e a Lei, Ariano
Suassuna traz, à luz da ficção, um Nordeste autêntico, regional, popular, universal, erudito, metafísico,
religioso, grotesco e sensível, satírico e dramático, sob ritmos diversos: cantorias, xaxado, baião…
Tais aspectos bebem nas fontes da tradição medieval.

Talvez seja a obra mais ambiciosa do autor, na medida em que é uma síntese de contos populares e de
exigente inspiração erudita, Commedia dell’Arte e auto sacramental, sátira de costumes e arguta mensagem
teológica, divertimento nordestino e proposição de alcance genérico, história concreta e vôo para regiões
abstratas, mamulengo e metafísica – enfim uma verdadeira súmula do teatro.

A Pena e a Lei é uma peça de várias vertentes temáticas que se fundem em múltiplas linguagens.
Dialoga com a cultura popular, com as bases eruditas. Traz figuras míticas e místicas, além de ditados
populares. Coloca em cena gente simples, do povo (loucos, bêbedos, mentirosos, espertos, tolos, avaros e
personalidades típicas e folclóricas do Nordeste brasileiro). Cheiroso e Cheirosa (Marieta/Madalena)
contracenam e são personagens fundamentais. Abrem e enceram os atos, fazendo juízos de valor, com
consciência crítica e lição de moral, principalmente no final dos atos, através das cantorias.

Aqui Suassuna reaproveitou cenas de seus textos Torturas de um Coração
e do Auto da Compadecida, numa encenação que vai do boneco irresponsável
ao ser humano pleno diante de Deus (Benedito, Mateus, Cheiroso e Cheirosa intensificam
o cômico). A peça diverte, mas também analisa as questões sociais: trabalho na
usina, reivindicações dos trabalhadores, companhias estrangeiras, fome, prostituição
em cenas curtas e de muita movimentação. A preocupação com a moral está sempre
presente e o trágico é diluído pelo cômico. São personagens estereotipados. Suassuna
também se utiliza das cantorias nordestinas.

Como já se percebe, esta obra do autor é baseada na cultura popular
nordestina e em suas manifestações, seja nas festas do povo, na literatura de
cordel, nos desafios dos cantadores, no Romance Popular do Nordeste, ou na sua
produção literária culta. Toda essa cultura, por sua vez, recebeu a produção popular
medieval em seu bojo, adaptando-a à sua realidade mas mantendo-se fiel àquela.
Suassuna, ao escrever A pena e a lei, mostra-nos sua herança medieval,
recebida através da cultura nordestina. Assim, técnicas de folhetos de cordel,
folguedos populares e suas fontes temáticas são as bases populares desse teatro.
A medievalidade está presente nos modelos formais adotados, como teatro católico
medieval ibérico (mistério, milagre, moralidade e auto sacramental) e dramaturgia
profana (farsa e comédia italiana). Os temas usados pelo autor, vindos do Romanceiro
popular do Nordeste, provêm de textos europeus que chegaram à cultura nordestina
através da Ibérica.

Em A pena e a lei os personagens se relacionam com a justiça de maneira informal, malandra.

A história baseia-se numa trama de enganos e traições, retratando os valores e
a moral do povo sofrido do sertão. Tudo se passa em Taperoá, uma pequena cidade
do Nordeste, onde vive Benedito, que adora aprontar. É um negro esperto, apaixonado
por Marieta. Marieta quer se casar e, na briga para conquistá-la, além de Benedito,
estão Cabo Rosinha e Vicentão, dois cabras valentes e fortes. Há, também, um padre
surdo; Pedro, outro personagem que dá volta ao mundo em seu caminhão; João, um
poeta sonhador; Mateus, um ordenador, e Joaquim, que não se sabe se terá um fim.

Cada Ato apresenta marcações específicas para entrada e saída das personagens
de cena. No primeiro ato, por exemplo, os mamulengos “arreiam”, isto é – na corruptela
da linguagem – descem, saem do palco, que é uma estrutura rudimentar, de madeira
e pano. No segundo, as personagens, meio termo entre bonecos e homens, abrem e
fecham uma porta solta ou qualquer coisa que simbolize entrada e saída de cena;
No último ato, o acender e o apagar de uma luz orientam o movimento das personagens.

ENREDO

PRIMEIRO ATO – A inconveniência de ter coragem

Encenado com atores travestidos de mamulengos, em gestos mecanizados e rápidos, nesse Ato, fundem-se o
mítico, o imaginário popular, o trágico, o cômico e a antitética relação entre a frouxura e a coragem. “A
coragem é coisa improvável e carga pesada neste mundo de surpresas e disparates”. Assim, o contexto da
Coragem está configurada nas artimanhas, farsas e engodos de Benedito, ao traçar e executar um plano para
conquistar Cheirosa, enfrentando seus rivais. Benedito atravessa os três atos e a exemplo de Quaderna,
de O Romance da Pedra do Reino, é um grande articulador, joga com os sentimentos alheios, trai, e é
traído pelo amigo Pedro, cumprindo a sina do infortúnio de suas armações.

CHEIROSO: “A vida traiu Rosinha/ Traiu Borrote também./ Ela trai a todos nós,/ Quando vamos,ela vem,/
Quando se acorda, adormece,/ Que a a vida é morte também”.

CHEIROSA: “Os três procuraram tanto/ Sua coragem provar!/ Perdeu-se a pouca que tinham/ E a mulher pra
completar./ Provei que é inconveniente/ Ter fama de valente,/ Difícil de carregar!”.

SEGUNDO ATO – O caso do novilho furtado

Os atores apresentam-se em meio termo entre boneco e gente, mas com aspecto grosseiro, trôpego,
desgracioso, sugerindo incompetência, ineficiência. O título da peça provavelmente emerge deste Ato,
denunciando a corrupção da polícia, os subornos e jogos de interesses. Ironicamente o delegado agradece a
propina: “Agradeço pelos pobres presos de Taperoá! Obrigado, meu caro Mateus! Pode contar com a
imparcialidade da polícia a seu favor! O que está ruim é que Vicentão Borrote arranjou uma testemunha
contra você!” (Suassuna, p. 65)

CHEIROSO: “Vida esquisita esta nossa,/ Justiça limpa, a do mundo!/ Diz-se do mar que ele é claro;/ Ninguém
sabe a cor do fundo./ Chamei a peça de“caso”:/ Mas foi esse um nome raso,/ Precisava um mais profundo!”

CHEIROSA: “Se cada qual tem seu crime,/ Seu proveito, perda e dano,/ Cada qual seu testemunho,/ Se cada
qual tem seu plano,/ A marca, mesmo, da peça / Devia ter sido essa/ De justiça por engano!”

TERCEIRO ATO – Auto da virtude e da esperança

Cumpre-se a realização de um Auto. Os atores aparecem com gestos e rostos normais para representar que a
morte revela a face original das pessoas. Escolhe-se o inferno como cenário para purgação. Cheiroso
representa Cristo. O tempo é Sexta-feira Santa, dia da morte de Cristo. Retomam-se as personagens da peça
e as causas-morte, sempre com humor e ironia. Nos posicionamentos de Cheiroso, ao final do último ato,
ficam evidentes as intencionalidades do autor: “Pois, uma vez que julgaram favoravelmente a Deus, assim
também ele julga vocês. Erros, cegueiras, embustes, enganos, traições, mesquinharias, tudo o que foi a
trama de suas vidas perde a importância de repente, diante do fato de que vocês acreditaram finalmente em
mim e diante da esperança que acabaram de manifestar” (Suassuna, p. 148)

Recorrendo à cantoria, os versos recitados por Cheiroso põem em síntese a essência, a moral: “Ai, meu
Deus, que vida torta / A findar e a começar!/ Por que ninguém nunca perde/ Vergonha pra ela achar?/ Ah,
muito doido, esse mundo/ Cujo mistério sem fundo/ Só Deus pode decifrar” (Suassuna, p. 148)

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