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A Relíquia, de Eça de Queirós

by Lucas Gomes

Análise da obra

Romance de segunda fase, A Relíquia, de Eça de
Queirós, publicado em 1887, nos dá uma visão pessimista do autor, de um Portugal
demasiadamente conservador de que Titi é a principal representante; há também
uma crítica ferina, contundente e cruel desta mesma sociedade portuguesa,
ressaltando-se aí os defeitos do clero, o que já fora anteriormente feito em
O Crime do padre Amaro
(que faz também parte da segunda fase do autor).
Desta vez, no entanto, a crítica é muito mais aguda e mostra as criaturas que
fariam qualquer coisa por um pouco de dinheiro.

Principalmente neste romance o autor hostiliza os que
ostentam o mundo de aparências; a própria D. Patrocínio, tão beata e tão
piedosa, mas que, por discordar do modo de viver de um sobrinho “pecador’,
deixa-o morrer doente, sem atender-lhe os pedidos.

Estrutura da obra

O romance está dividido em cinco grandes capítulos, todos
inominados.

Foco narrativo

O romance é narrado em terceira pessoa. O narrador é
onisciente. Ele move-se lentamente pelo cenário, descrevendo detalhes mínimos de
objetos ou vestuário, colocando o leitor dentro da cena de maneira realista.
Esse apego à minúcia é outra marca queirosiana, que não pode ser esquecida.

Espaço / Tempo / Ação

O espaço principal é Lisboa e, também, a Terra Santa para
onde o narrador se dirige numa viagem patrocinada por Titi.

O tempo da narrativa é cronológico e a narrativa linear,
transcorrendo no período entre namoro de Luísa, a morte da mãe, o abandono pelo
namorado, estendendo-se pelos dois anos de seu casamento com Jorge, até a viagem
e volta desse.

A ação passa-se no final do século XIX.

Problemática e principais temas


A Relíquia
é um romance que consegue
atingir seu objetivo principal de criticar a sociedade lisboeta através de sua
temática principal da inutilidade da hipocrisia. Esta é
vista como juízo moral que parece prevalecer por um curto
período na memória do próprio narrador, que acaba deixando-se levar pela força
desagregadora da moral e da índole para afirmar que lhe faltou por um único
momento o heroísrno de pregar mais uma mentira carregada de convicção para que
tivesse obtido sucesso em sua suma hipocrisia. E essa crença na mentira que
parece conduzir toda uma sociedade ao declínio e que representa nitidamente o
estado de decadência da sociedade lusíada da segunda metade do século XIX. Ao
contrário dos romances da terceira fase de Eça de Queirós,
nos quais percebe-se um certa esperança vinda do interior, esse romance é
marcado por um forte pessimismo,
já que nem mesmo o declínio pelo qual passou, serviu profundamente ao
protagonista de lição moral. Seu verdadeiro arrependimento não decorre de sua ação
imoral tornada objetivo de vida, mas de não ter tido a coragem de continuar a
mentir no momento que sua farsa foi revelada. Ao descortinar a verdade que se
escondia por trás da falsa beatice de Teodorico, Eça
revela mais do que a falsidade, o
cinismo e a hipocrisia do personagem, mas uma sociedade
moralmente desgastada e em rápido ritmo de declínio, urna vez que estabelece o
interesse econômico como
fundamental ao respeito e ao cumprimento
dos desejos de uma beata seca e mal amada, porém rica.

Outras temáticas importantes já foram destacadas anteriormente,
mas não nos custa retomá-las para melhor fixarmos sua importância:

a)  Crítica à decadência moral da sociedade.

b) 
A inutilidade da hipocrisia.

c) 
Censura a desconformidade entre os atos e os ideais.

d)  A hipocrisia religiosa.

e) O culto das aparências.

f)
O convencionalismo social.

g)  Crítica à beatice doentia.

h)  Crítica à educação sexual transformada em aversão ao sexo.

i)   Crítica ao abuso da boa fé e da credulidade.

j)   Crítica à falta de sinceridade e à ambição desmedida.

O romance A Relíquia
é um bom exemplo de que o emprego adequado da ironia torna
urna temática séria algo divertido. até mesmo humorístico. Ao contrário das
demais obras de Eça de Queirós. essa prima pelo espírito de graça e humor. Não é
raro que o leitor encontre em suas páginas bons motivos
para risadas menos contidas, graças às trapalhadas do
protagonista, que imprime um tom sério, quase científico ao relato do que ele
chama de crônica, mas que não consegue evitar formar de si mesmo um retrato cômico
ou burlesco. Seus gestos são
exagerados, suas representações primam pelo excesso, e só
parece crer em seus atos aqueles que se deixam ou querem ser enganados. Não é à
toa que essa obra serve de marco divisório entre a segunda e a terceira fase da
obra de Eça de Queirós, pois encontramos em
Teodorico um rascunho de seus sucessores: Gonçalo Mendes Ramires (A Ilustre
Casa de
Rarnires) e Jacinto (A Cidade e as
Serras),
protagonistas de obras
consideradas da terceira fase.

Personagens


Teodorico Raposo –

Chamado por alcunha Raposão. Jovem hipócrita e interesseiro que
se faz passar por beato para enganar a tia. Titi, e obter sua fortuna em
testamento. E falso e mulherengo. Peregrina pela Terra Santa apenas para atender
o desejo da tia e aproximar-se ainda mais de sua fortuna. Falta-lhe resíduo
moral e decência mínima, já que não demonstra qualquer escrúpulo também em
enganar as pessoas com suas falsas relíquia.


Dona Maria do Patrocínio (Titi):
Senhora muito alta, muito seca, “carão chupado e
esverdinhado’, beata, virgem e com aversão ao sexo. Dona de uma imensa fortuna,
usava isto como motivo para atemorizar o narrador.


Crispim –

Filho do dono da firma Teles, Crispim & Cia. Chamado
ironicamente de “a firma”. Tinha
cabelos compridos e louros, e um comportamento homossexual durante a vida no
internato. Acaba tornando-se patrão e cunhado de Teodorico.

Pinheiro – Padre freqüentador dos jantares oferecidos
por Titi. Triste, tem mania de doença e fica examinando sempre a língua no
espelho.

Casimiro – Padre, procurador de Titi, vem sempre jantar
com ela. Titi confia nele inteiramente.


Margaride –

Homem corpulento e solene, calvo e com sombrancelhas cerradas, densas e negras
como carvão. Foi amigo do pai de Teodorico em Viana, onde foi delegado. Foi juiz
em Mangualde, mas aposentou-se depois de receber uma grande herança de seu irmão
Abel. Tinha um gosto mórbido de exagerar as desgraças alheias.


Adélia –

Amante de Teodorico, mas que era mantida por Eleutério Serra. Jovem
interesseira, que acaba desprezando o protagonista por causa de sua obediência
aos horários estipulados pela tia para chegar em casa e porque pouco consegue
obter financeiramente. Acaba tornando-se amante do Padre Negrão, que recebe boa
parte da herança de Titi.


Dr. Topsius –

Alemão, formado pela Universidade de Bonn. Era um indivíduo
espigado, magríssimo e pernudo,
com uma rabona curta de lustrina, enchumaçada de
manuscritos’. Tinha o nariz agudo e pensativo e usava óculos de ouro na ponta do
nariz. Era patriótico, considerava a Alemanha a “mãe
espiritual dos povos”. Apenas seu pigarro e a mania de usar a escova de dentes
de Teodorico, desagradavam este último.

Mary – Amante que Teodorico arranja quando da viagem à
Terra Santa, responsável pelo fato de Titi ter deserdado o sobrinho, por conta
de uma camisola de rendas e de certo bilhete que nela havia pregado.

Padre –
Negrão.


Vivência –
Empregada de Titi.

Pote –
Guia de Teodorico e Topsius em Jerusalém.

Justino –
Tabelião de Titi.

Apedrinha –
português encontrado no Egito como carregador de malas.

Enredo

A relíquia se
inicia com uma apresentação na qual o narrador e personagem central da história,
Teodorico Raposo, busca explicar ao leitor o que o levou a compor as memórias de
sua vida. Ele afirma, primeiramente, que a principal justificativa está no fato
de tanto ele como seu cunhado, Crispim, acreditarem que suas memórias encerram
“uma lição lúcida e forte”, sendo merecedoras, portanto, da imortalidade que a
literatura propicia.

A narrativa se
centrará numa viagem feita por Teodorico ao Egito e à Palestina, logo após uma
decepção amorosa, viagem esta que promoveu significativas mudanças em seus bens
e em sua moral. Não querendo dar ao seu relato uma forma de “guia de viagem”,
ele contará, “com sobriedade e com sinceridade”, os casos que provocaram as
mudanças em sua vida.

Contudo, há um
outro objetivo para a escrita de suas memórias: promover uma correção na livro
que seu douto amigo, Topsius, companheiro naquela viagem, escrevera sobre
Jerusalém. Nesta obra, “Jerusalém passeada e comentada”, Topsius afirma que
Teodorico levava dentro de dois embrulhos de papel que o acompanharam na viagem
“restos de seus antepassados”. Preocupado com o que a Burguesia Liberal pensará
dele, já que só através dela se conseguem “as coisas boas da vida”, Teodorico
deseja não só corrigir a obra do amigo, mas também esclarecer seus concidadãos
do conteúdo dos dois pacotes.

Ainda que a
narrativa se centre na viagem à Terra Santa, Teodorico escreve suas memórias
relatando-nos toda a sua vida, desde a história do encontro de seus pais, até o
momento da decisão de transformar suas experiências de vida em literatura.

A narrativa
de Teodorico Raposo

Teodorico começa
por nos dizer que seu avô paterno, Rufino da Conceição, era padre, teólogo e
autor “duma devota Vida de Santa Filomena. Sua avó, Filomena Raposo, era
doceira, conhecida por a “Repolhuda”, e vivia em Évora com o filho, Rufino da
Assunção Raposo, afilhado de Nossa Senhora da Assunção, pai do protagonista.

Rufino
trabalhava no correio e escrevia, vez em quando, no “Farol do Alentejo”. Em
1853, durante a visita de um importante Bispo a Évora, D. Gaspar de Lorena,
Rufino escreveu um artigo elogioso à presença de “tão insigne prelado” e ganhou
de imediato a simpatia do bispo. Quando este ficou sabendo que Rufino da
Assunção era também “afilhado carnal” do Padre Rufino da Conceição, seu amigo de
estudos à época do seminário, redobrou sua afeição por Rufino filho e, além de
presenteá-lo com um relógio de prata, conseguiu com que este fosse “nomeado,
escandalosamente, diretor da alfândega de Viana”.

Em Viana, o pai
de Teodorico conheceu um rico cavalheiro de Lisboa, o comendador G. Godinho, que
passava o verão em sua quinta, o Mosteiro, com duas sobrinhas: a devota D. Maria
do Patrocínio e a gordinha e trigueira D. Rosa. Nas constantes visitas que fazia
ao Mosteiro, Rufino da Assunção tangia sua viola para D. Rosa e o amor entre
eles não demorou a surgir. Iniciaram o namoro e, logo depois, casaram-se.

Teodorico Raposo
nasceu numa tarde de sexta-feira da Paixão e D. Rosa, sua mãe, morreu na manhã
seguinte, no sábado de Aleluia. Órfão da mãe, ele foi criado pelo pai, longe do
avô comendador G. Godinho e da tia D. Maria do Patrocínio. Ainda na infância, o
menino perdeu o avô comendador e, logo depois, o pai. Aos sete anos, órfão, sua
tia, D. Maria do Patrocínio, mandou um seu empregado, o Sr. Matias, buscar-lhe
em Viana. Já durante a viagem, Teodorico começou a registrar suas impressões do
mundo exterior. Uma delas, em particular, deixou no menino fortes lembranças: o
encontro, no corredor de uma estalagem, com a “inglesa do Sr. Barão”.

Numa manhã de
domingo, chegaram em fim a Lisboa, no casarão do Campo de Sant’Ana, casa de D.
Maria do Patrocínio, a titi. Entre a timidez do menino e a rispidez beata da
velha senhora, Teodorico logo teve que aprender que a titi era muito rica e que
era necessário ser “temente a Deus, quietinho em casa, sempre obediente à titi”
e, mais do que tudo, “dizer sempre que sim à titi”. Na noite daquele mesmo
domingo, Teodorico conheceu Padre Casimiro e Padre Pinheiro, religiosos que
freqüentavam a casa de D. Patrocínio, e viu, pela primeira vez, o “oratório da
titi”, que o maravilhou com sua riqueza e brilho.

Aos nove anos,
Teodorico foi mandado pela titi para o colégio dos Isidoros, em regime de
internato. Lá, logo ligou-se “ternamente” a um rapaz chamado Crispim, que
adorava beijá-lo na face e mandava-lhe bilhetinhos chamando-o de seu
“idolatrado”. Um dia, chamado de “lambisgóia” por um dos rapazes do colégio,
Teodorico esmurrou-o bestialmente e, a partir daí, passou a ser temido, a fumar
e a desenvolver as primeiras paixões.

Durante esse
tempo, uma vez por mês, Vicência, empregada de D. Patrocínio e primeiro amor
“ilícito” de Teodorico, vinha buscá-lo para passar um domingo com a titi. Nesses
domingos, iam à missa, a titi cobrava-lhe o conhecimento da doutrina religiosa
e, vagarosamente, por meio da Vicência, ele penetrava na intimidade e nas
histórias da família.

Depois do
colégio dos Isidoros, Teodorico foi terminar os “preparatórios” em Coimbra, na
casa do Dr. Roxo, lente em teologia, o qual impôs-lhe “uma vida dura e
claustral” ganhando de imediato o ódio de Teodorico. No entanto, morto o
eclesiástico no primeiro ano de Direito, Teodorico mudou-se para a “divertida
hospedagem das Pimentas” e conheceu logo os prazeres da liberdade. Brigas,
bebedeiras, amores e vadiagem passaram a constituir sua vida em Coimbra. Por
causa de sua barba, vasta e negra, apelidaram-no de Raposão, alcunha que ele
aceitou com orgulho. As rezas e a vida piedosa aconselhadas pela titi foram
abandonadas, mas, nem por isso, ele deixara de escrever quinzenalmente uma carta
a titi dizendo de “sua humilde e recatada vida”.

Numa de suas
férias de verão, passadas em Lisboa ao lado da odiosa titi, por meio do
Silvério, amigo de estudos em Coimbra, conheceu Adélia e logo se apaixonou, mas,
temeroso do ódio da titi às relações entre homens e mulheres, voltou a Coimbra e
aos estudos. Tempos depois, retornou definitivamente a Lisboa com o grau de
Doutor. Como recompensa de seus estudos e por sua demonstração de uma vida
beata, a titi deu-lhe um cavalo, roupas novas e um mesada e começou, assim,
“farta e regalada, sua existência de sobrinho da Sra. Patrocínio das Neves”.
Manteve-se, contudo, a hipocrisia da dupla vida: por um lado, os amores de
Adélia, constantemente visitada, por outro a “santidade” das visitas diárias, a
pedido da titi, a igrejas, capelas e oratórios.

Num encontro com
o Dr. Margaride, antigo amigo da família Neves e velho amigo de seu pai,
Teodorico confessou suas preocupações com o destino que a titi daria a sua
herança, pois não creditava que tivesse ainda conquistado, com sua aparente
fervorosa religiosidade, a beata senhora. Dr. Margaride disse-lhe, então, que
ele possuía um forte rival, Jesus Cristo, e que era necessário lutar mais para
vencê-lo, mas que isto não era impossível. A Sra. Patrocínio das Neves, muito
provavelmente, deixaria toda sua fortuna para a Igreja, a não ser que Teodorico
se mostrasse um santo. Teodorico percebeu, então, que se era necessário fazer
frente ao rival, corrigindo sua devoção e tornando-a perfeita. Passou, assim, a
não perder uma missa, uma novena, uma quermesse, participar de todos os
desagravos ao Sacramento, jejuns, enfim, decidiu tornar-se um santo frente a sua
titi. Com tantas atividades, seu tempo e energia para os amores de Adélia
diminuíram muito. Ela não demorou a arranjar outro amante, o Adelino. Por essa
época, desiludido com a traição de sua amada, Teodorico decidiu por aceitar ir
em peregrinação, em nome da titi, à Terra Santa, não sem antes estabelecer um
roteiro que incluísse “regiões amáveis, femininas, e cheias de festa” e sem
considerar a viagem como um grande passo no seu propósito de “santificação”.
Antes de partir, no entanto, prometeu à titi trazer uma relíquia religiosa da
Terra Santa, que a ajudaria a intensificar sua adoração e passar melhor os seus
dias.

Em Alexandria,
no Egito, terra sensual e religiosa, já em companhia do Dr. Topsius, seu
companheiro de viagem, hospedaram-se no Hotel das Pirâmides e lá conheceram o
Alpedrinha, português, moço de bagagem, que logo indicou a Raposão o caminho do
amor: uma lojinha discreta, onde se vendiam luvas e flores de cera, cuja dona
era uma inglesa de Iorque, chamada Miss Mary. Logo passaram a viver dias de
paixão sensual e Raposão passou a ser “seu portuguesinho valente” e Miss Mary,
sua “maricoquinhas”. O Cairo, o Nilo, as Esfinges e, principalmente, as igrejas,
foram preteridas por Raposão para ficar ao lado de sua maricoquinhas. Enquanto
Topsius fazia suas pesquisas históricas nesses lugares, Raposão passava seus
dias amando nos braços de Miss Mary. Chegado o dia de partir para Jerusalém,
Miss Mary deu a Raposão uma sua camisa, com a qual havia dormido a última noite.
Com suas habilidosas mãos, Miss Mary embrulhou-a num papel pardo e cerrou-o com
uma fita vermelha. Assim, sofrendo por ter de deixar tão deliciosos braços,
Raposão partiu para a Terra Santa.

Passada Jafa e
chegando a Jerusalém, as impressões da cidade foram as piores possíveis. Raposão
achou tudo um horror. A cidade pareceu-lhe sem atrativos para seus interesses
sensuais, uma maçada. Todavia, no hotel, avistou Ruby, filha de um comerciante
escocês. Teodorico logo imaginou nela uma possibilidade de diversão. Ao visitar
o Santo Sepulcro, intencionando encontrar lá a escocesa, deparou-se apenas com a
histeria das rezas e o comércio intenso de artigos religiosos, só conseguindo
sair de dentro do santo lugar como entrara “em pecado e praguejando”.

Nesta mesma
noite, ousando observar o banho de Ruby pelo buraco da fechadura de seu quarto,
foi flagrado pelo pai da moça e levou uma surra do comerciante escocês. No outro
dia, com o corpo dolorido, negou-se a sair do quarto, mas à noite foi a casa de
Fatmé, lugar onde o alegre Pote, seu guia pela Terra Santa, prometeu-lhe
diversão. Lá só encontrou aborrecimento, o que o fez desejar abandonar
Jerusalém.

Seguiram,
depois, Raposão e Topsius, em direção ao Jordão. No rio sagrado, ele fez,
obedientemente, as rezas mandadas pela titi, mas também banhou-se e tomou
cervejas em sua margem. Enquanto Topsius foi em visita a Jericó, Raposão saiu a
passear pelos arredores do acampamento e encontrou uma árvore de onde tirou o
galho que, transformado depois por Pote em uma coroa e embrulhada em pacote
semelhante ao da blusa de Miss Mary, tornou-se a tão esperada relíquia para a
titi. A veracidade de ter sido aquela a árvore de onde saiu o galho que formou a
coroa de espinho de Jesus foi falsamente assegurada por Topsius.

Ao adormecer,
naquela mesma noite, Raposão sonhou ter-se transportado, junto com Topsius, para
a sexta-feira em que Cristo foi apresentado a Pilatos, julgado pelo seu crime de
declarar-se reis dos judeus e crucificado. Em seu sonho, Raposão e Topsius
acompanharam todo o processo do julgamento, as tentativas de Pilatos de se
esquivar da sentença, as argumentações dos judeus para condená-lo; presenciaram
a crucificação, a dor de Cristo na cruz, a tentativa de seus amigos de salvá-lo
da morte, através do “vinho da misericórdia”, que provocava a morte aparente; e,
por fim, ficaram sabendo da morte de Jesus e do cumprimento da vontade divina.

No relato que
faz de seu sonho, Raposão apresenta, logo no início, a idéia de que com ele se
revela uma nova verdade, sem mistificações, sobre a morte de Cristo. Em relação
a essa verdade, são significativas as últimas falas de Topsius. Quando fica
sabendo, pelos amigos de Cristo, que seu corpo foi roubado do sepulcro para
tentar reanimá-lo e que o sepulcro havia ficado vazio, ele afirma para Raposão
que no dia seguinte as mulheres que amavam Cristo iriam ao sepulcro e, não
encontrando seu corpo, sairiam a gritar o milagre da ressurreição e assim
surgiria uma nova religião.

Ao acordar no
dia seguinte, Raposão sentia desânimo e vontade de deixar a Terra Santa.
Partiram, ainda, ruma à Galiléia e visitaram Betel, Sichem e Nazaré, voltando,
por fim a Jerusalém. Na cidade santa, aborrecido com tanta religiosidade,
Raposão decidiu por ficar no hotel ordenando as outras pequenas relíquias que
havia comprado. Ao partir de Jerusalém, decidiu desfazer-se do pacote com a
blusa de Miss Mary, temeroso do olhar e dos dedos da titi, sempre a ver e a
remexer tudo. Desatento à semelhança dos pacotes, ele os trocou, deixando a
coroa e levando como relíquia para a titi a roupa íntima de Miss Mary.

Novamente em
Jafa, reencontraram Alpedrinha. Pelo moço, Raposão ficou sabendo que sua amada
Miss Mary havia partido com um italiano para Tebas. Irado com a traição, Raposão
ainda ficou sabendo que também Alpedrinha havia tido um caso com ela e, como
lembrança, tinha recebido um “chambrezinho”. Desiludido e desejoso dos ares
portugueses, reiniciou sua viagem de volta a Portugal, deixando Topsius em
Alexandria.

Chegando a
Lisboa, foi recebido com admiração pela titi. Teodorico teve, assim, a certeza
de que sua sorte mudara, pois após a “santa viagem” não haveria mais dúvida
quanto as suas virtudes religiosas. D. Patrocínio demonstrava por ele grande
reverência e o olhava com devoção. Nem por isso, a senhora deixou de ir conferir
as malas de sobrinho para ver se encontrava marcas de relaxações com mulheres.

Na noite da
chegada, num jantar de homenagem e comemoração, além das pessoas habituais a
casa de D. Patrocínio, Teodorico foi apresentado ao Padre Negrão, substituto de
Padre Casimiro que estava muito doente. De imediato, odiou a intimidade que o
padre demonstrava gozar com a titi e prometeu terminar com o que parecia uma
ameaça ao seu poder.

Após o jantar,
momento marcado para a entrega da grande relíquia trazida pelo sobrinho para a
titi, todos foram para frente do oratório, que estava ricamente preparado para
receber tão santa preciosidade. Quando D. Patrocínio desembrulhou o pacote, em
vez da anunciada coroa de Cristo, teve em mãos a prova mais contundente das
relaxações de seu sobrinho: a blusa de Miss Mary. De imediato, a beata senhora
escorraçou Teodorico de sua casa, que só teve tempo para pegar as outras
pequenas relíquias que trouxera.

Expulso da casa
da titi e sem dinheiro, Teodorico foi para o Hotel da Pomba de Ouro. Aí, pouco
tempo depois, encontrou o Sr. Lino, negociante de objetos sagrados vindos da
Terra Santa. Teodorico, de imediato, passou a negociar as pequenas relíquias que
havia trazido de sua viagem com o comerciante. Logo percebendo que poderia
comercializar as peças sozinhos, sem a intermediação do Sr. Lino, começou a
vender para as beatas locais, produzindo falsas relíquias, desgastando
rapidamente o negócio.

Novamente
empobrecido, Teodorico recebeu a notícia pelo Justino, tabelião de D.
Patrocínio, de que a titi havia morrido e que tinha lhe deixado de herança um
velho óculo. Mortificado com a notícia, Raposão voltou ao seu quarto, naquele
momento na casa de hóspedes do Pita, e frente ao oratório começou a acusar
Cristo de ter trocado os pacotes e ter permitido que chegasse às mãos da titi a
blusa de Miss Mary, de tê-lo jogado na miséria. No auge de suas imprecações
contra o Altíssimo, sentiu uma luz forte vir do crucifixo e uma voz iniciou por
apontar a hipocrisia de toda a sua vida, a lembrar-lhe de todas as mentiras, de
todas as falsas ações religiosas, de toda a luxúria que imperou até aquele
momento em sua vida. Essa voz revelou-se como a voz de sua própria consciência,
e concluiu por apontar a inutilidade da hipocrisia.

Depois desse
episódio, Teodorico reencontrou Crispim, seu amigo do Colégio dos Isidoros.
Notando que Raposão estava “muitíssimo feio”, Crispim, naquele momento único
dono da Crispim & C.a, ofereceu-lhe uma vaga na Firma e passou a ajudá-lo. Em
pouco tempo, Raposão prosperou na Firma e Crispim decidiu promover o casamento
entre ele e sua irmã. Um dia, Crispim o convidou para ir a uma missa e perguntou
qual a igreja de sua preferência. Raposão ia mentir, mas lembrou-se de sua
consciência e respondeu afirmando sua falta de religiosidade. Da mesma forma
aconteceu quando Crispim veio perguntar-lhe sobre seu interesse em D. Jesuína,
sua irmã. Raposão disse que não a amava, mas a achava um “belo mulherão”, que
lhe agrava “muito o dote, e havia de ser um bom marido”. Casaram, Raposão e
Jesuína, tiveram filhos e ele tornou-se um homem honrado, comendador e rico.

Mais tarde, soube que o Padre Negrão era amante de Adélia. Enfurecido com a notícia
e com a constatação de que o hipócrita padre havia ficado com sua herança e com
sua amante, Raposão, reavaliando a sua vida, arrependeu-se de sua falta de firmeza
de, naquela hora em que a titi desembrulhou o pacote e encontrou a camisa de Miss
Mary, não ter afirmado hipocritamente que aquela era a camisa de Maria de Madalena,
e que o bilhete era a prova de que a santa havia ofertado a camisa a ele pelo
muito que ambos gozaram com suas orações. Assim, teria assegurado a herança e
o prestígio. Como se vê, volta-se ao reino da hipocrisia.

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