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A sombra severa, de Raimundo Carrero

by Lucas Gomes

A sombra severa

, de Raimundo Carrero, não é um livro prolixo. Os episódios são narrados de forma seca, com frases curtas e incisivas, numa economia verbal que espelha um dos personagens centrais, o lacônico Judas.

O que acontece é que tal concisão de linguagem não se mantém o tempo todo. Vez ou outra o narrador conclui a descrição de uma cena com uma frase feita, quase uma moral da história, perfeitamente dispensável. Frases como “os dedos que tecem a morte cosem a mortalha”, ou “uma mulher tem segredos que os olhos não podem conhecer”, ou ainda “um homem só é capaz desse nome quando enfrenta ousadias” beiram o lugar-comum e ocupam o espaço que caberia de direito ao leitor, impedido, assim, de imaginar ele próprio algum provável sentido para o que acaba de ler.

No início, o romance parece apontar para uma história sangrenta, impressão que vai sendo reforçada à medida que a trama ganha corpo: dois irmãos, Judas e Abel, apaixonados por uma mesma mulher, Dina. Abel, o primogênito, rouba a moça da casa dos pais e a leva para morar na velha casa de fazenda, onde também mora Judas. A provável vingança da família da jovem desonrada surge como mais um elemento a indicar que o duelo será inevitável. De fato, ele acontece, mas não como se espera. Habilmente, o narrador nos leva a seguir uma pista falsa, e a verdadeira batalha será travada não entre Judas e Abel, ou entre estes e a família de Dina, mas entre adversários mais sutis. Algum sangue será derramado, é certo, mas com alcance mais profundo, envolvendo sentimentos contraditórios, como ódio, amor, inveja, culpa, perdão.

Numa época marcada por reescrituras, o maior mérito de Sombra severa talvez esteja no fato de poder ser lido como uma interessante retomada de uma vertente que acompanha nossa produção em prosa desde os tempos de Alencar: o regionalismo. No romance de Raimundo Carrero, permanece como que o esqueleto, a espinha dorsal do modelo regionalista, que se caracterizou, sobretudo, pela descrição de cenários rurais ou de pequenos povoados no interior do país e o relato dos costumes pautados pela rigidez moral e pela religiosidade.

Tudo isso está presente no romance, mas apenas como pano de fundo para o desenrolar de uma história passada muito mais dentro do que fora dos personagens. Não há indicações precisas de tempo ou de espaço – o enredo pode situar-se em qualquer vilarejo, do passado remoto ou recente, ou mesmo de hoje – e os nomes dos personagens ou são de inspiração bíblica ou são nomes que não trazem em si nenhuma marca regional. Isso porque o importante de fato é o que acontece no íntimo dos personagens, em seus duelos, épicos e silenciosos, com a própria consciência. Ao mesmo tempo, cada um é obrigado a lidar com o silêncio do outro, buscando entender o que o outro possa estar sentindo ou pensando, o que deflagra o jogo das hipóteses, das leituras cruzadas. É no terreno da autoconsciência e da dúvida, portanto, que o conflito se instala.

Estilo

O traço regionalista aparece quase como uma citação, uma referência inicial que o romance vai esvaziando à medida que avança. Nesse sentido, Sombra severa é uma releitura e uma reescritura da velha fórmula regionalista, cultivada de forma expressiva por românticos, naturalistas e modernistas e meio que abandonado nesses tempos pós-modernos. O autor mantém apenas o arcabouço do antigo modelo e nele insere uma narrativa que mais se aproxima da tragédia. Judas, por exemplo, convive o tempo todo com a sombra severa de uma consciência culpada, que se apresenta sob a forma de súbitos fantasmas, um deles de carne e osso, a assombrar-lhe o dia e a noite na quase solidão da fazenda.

As frases feitas, as imagens que, pretensamente poéticas, esbarram numa incômoda previsibilidade e a recorrência a inexplicáveis inversões sintáticas comprometem, porém, o resultado final. Curioso é que em algumas das últimas cenas, em que o narrador apresenta episódios da infância dos dois irmãos, isso não acontece e a história caminha num ritmo exato, sem excessos. Fosse todo o romance narrado como se narram tais episódios, A sobra severa faria jus aos comentários elogiosos de Santarrita, na orelha do livro.

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