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Abusado – O Dono do Morro Dona Marta, de Caco Barcelos

by Lucas Gomes

O livro Abusado – O Dono do Morro Dona Marta, de Caco Barcelos consiste num romance de reportagem
investigativa, revelando os bastidores da formação de uma quadrilha e suas histórias de guerra, morte,
prisões, fugas e traições. Abusado conta a trajetória de Juliano VP – codinome de um conhecido
traficante carioca – e seus companheiros de geração. A partir dos relatos de sua adolescência, entrada e
ascensão no tráfico de drogas, tem-se um retrato histórico da ocupação do morro pelo Comando Vermelho,
principal facção criminosa no estado, e da implantação de sua cruel disciplina.

Ao mesmo tempo, Caco mostra o desenvolvimento da noção de cidadania entre os moradores da Santa Marta, seus
esforços e conquistas, como mutirões que levaram água e luz a todos os barracos da favela. Mas não deixa de
apontar as péssimas condições de higiene, a pobreza, a desesperança e a brutalidade da polícia, que ainda
vigoram no morro.

Com o pretexto de fazer uma biografia do traficante Marcinho VP (codinome Juliano, no romance), Barcelos
mergulha no submundo do crime no Rio de Janeiro, e nos permite perceber que, em meio a uma espécie de
guerra no fim do mundo, gangues rivais se digladiam e transgridem a lei de maneira violenta, mas que ali
também se realizam processos de formação da identidade, agregação coletiva e laços de sociabilidade.

Não se trata apenas de uma romantização da vida de um bandido superestimado pela mídia e por todos, mas
a obra traz em suas numerosas linhas uma versão da história desconhecida de todos e de nos mostra um dos
grandes personagens de nossa literatura. Juliano VP, além de ser a visão única do jornalista sobre um ícone
da violência moderna, é uma pequena releitura do tema bandidagem. Longe da sociologia e do antropologismo
de estudos anteriores, o livro do renomado e consagrado repórter é um pequeno libelo ao bandido moderno.

O escritor-jornalista expõe a dura realidade do morro sem véus, sem meias palavras. Logo, instiga o leitor,
escrevendo por meio de uma ética jornalística compreensiva, no respeita ao mundo violento dos excluídos.

No caso da biografia de Marcinho VP, o relato assume significações específicas, pois os traficantes do
morro – distintamente dos personagens desviantes de outros períodos históricos (1900, 1930/60/70…) –
agenciam as suas máquinas de guerra sem bandeiras, nem ideologias. Eles se movem pela vontade de poder, de
dominação e pelas pulsões narcisistas que os levam a ver o mundo como uma extensão de si próprios.

Há sempre um argumento defensor de uma suposta causalidade profunda, inconsciente, faminta e desejante,
tentando explicar a brutalidade das gangues e quadrilhas no morro. Em verdade, elas se nutrem do vazio, da
falta e das neuroses causadas – também – pelas privações de todas as ordens; é isso – em grande parte –
que as impulsiona para a criminalidade. O fato é que as experiências recentes dos narcotraficantes
constituem um tipo de transgressão, cuja eficácia funciona em favor do mal, da destruição e da morte.

No romance Abusado, salta aos olhos uma narrativa que mantém uma certa cumplicidade com o personagem
delinqüente e suas gangues. O autor se mostra generoso para com os tipos de fala, com a ginga e a
temporalidade do morro, com os dias de festa e de luto, exibindo também as formas de indignação e rebeldia
das tribos do morro.

Então, tem-se aqui um caso em que o jornalista-escritor-repórter, um habitante do asfalto, mergulha na
rotina diária da favela, desvendando o que há ali de beleza e horror, as sensações de pertencimento e
sensações de medo. O narrador relata os modos de organização e de desordem da favela, um ambiente com suas
próprias leis, em que os “donos do morro” se julgam no direito de matar ou deixar viver.

Substancialmente, Barcelos investe a sua pesquisa num vigor que lança luz sobre a criação das condições
básicas de existência social, incluindo a infraestrutura material que assegura a sobrevivência da tribo,
como as redes de água, energia elétrica, esgoto e saneamento.

E apresenta também o mundo simbólico do sincretismo religioso (em que católicos, evangélicos e espíritas
dividem os espaços da fé), traduz os estilos de sonoridade e musicalidade que concedem o ritmo e o vigor no
cotidiano, expõe as redes de parentesco e os regimes de afetividade que enlaçam os seres humanos numa
comunidade pobre.

Barcelos fabrica uma denúncia da sociedade, da ética violenta e excludente dos poderosos, dos habitantes do
asfalto, sem querer pintar com cores bonitas a vida cotidiana dos traficantes e os outros habitantes do
morro.

Trata-se de um romance-jornalístico com rigor na decifração dos traços psicológicos dos personagens,
descrevendo as modalidades da ira, do recalque, da vergonha, do desespero e da vingança. E ao mesmo tempo,
revela também os sentimentos de orgulho, de vaidade e as atitudes de ironia e subversão num ambiente
marcado por uma ordem social injusta e desequilibrada.

O título chama a atenção pelo desvio ortográfico: a palavra “Abusado”, grafada com um “s” ao contrário,
remete ao modo de escrever dos segmentos sociais ágrafos. Tal expediente, se por um lado denota o desejo
do autor de simular uma representação fidedigna da linguagem dos habitantes do morro, por outro lado, a
grafia de “Abusado” denuncia um sentido de transgressão à norma (lingüística), algo compactuado com o
autor, que respeita tal transgressão (comunicativa) e antecipa toda uma rede de cumplicidades entre o
protagonista da trama (o traficante, Juliano/Marcinho VP) e o narrador (o jornalistaescritor/repórter Caco
Barcelos). Mas há um nível de significação da palavra “Abusado”, que se sobressai, designando uma dimensão
de excesso, violência e ultrapassagem de todos os limites, afinal os traficantes são criminosos que assumem
o ato extremo de matar seus semelhantes.

Contudo, “Abusado” fala do estado ou da qualidade de alguém irado, rebelde, indignado, o que designa – de
algum modo – aquele que se rebela contra as normas, ao estilo de vida convencional, às regras estabelecidas
(quando estas lhe parecem arbitrárias e desumanas). Então, abriga também um lado simpático, carismático,
sedutor que envolve a imagem dos delinqüentes.

Logo o texto e o contexto de Abusado nos alerta os sentidos para percebermos o modo como uma
narrativa pode demonstrar mais ou menos sensibilidade e afinidade com a postura dos fora-da-lei, dos
marginalizados, dos “outsiders”. E, em última instância, como obra literária – virtualmente – o livro
Abusado traz consigo a possibilidade de adentrar-se nas misteriosas dobras da alma dos seres
humanos. Ali se inscrevem as formas de ternura e brutalidade, o belo e o feio, o sublime e o grotesco da
existência. É quase impossível não sentir afeto pelos personagens descritos no romance, por mais que estes
sejam letais.

A saga de Juliano (Marcinho VP), narrada por Caco Barcelos, ganha novos contornos e significações.

Convém perceber que o personagem V.P. assume uma outra corporeidade, um outro significado, na medida em que
é imortalizado no romance. Mas tudo isso ainda é pouco, se considerarmos que a sua “aura” (ou “espectro”)
se desdobra, se multiplica e se irradia em diversas direções, ao se tornar “figurinha carimbada” nos
espaços das revistas e dos telejornais. Assim, é necessário compreender o sentido desta biografia,
atentando para a complexidade de sentidos, que envolve a imagem do traficante, o papel da mídia e o culto
das celebridades.

O trabalho investigativo do jornalista se mostra apurado e amplo, mas o foco do romancista se sobrepõe ao
do imparcial homem da notícia. Marcinho VP dá lugar então ao carismático e querido Juliano VP, um
pseudônimo que parece ter nascido errado, no lugar errado e na hora errada. Adorado por muitos e
transformado em símbolo da ousadia, o protagonista desta estória de ação e crimes é um joguete do destino,
designado a sofrer os percalços do mal. Seus atos são camuflados e transfigurados em ações guerrilheiras,
em ímpetos de coragem e heroísmos. Seus bondes armados são sempre retratados como empreitadas
revolucionárias e sadias. São os cavalos de arranque de novos tempos em que os fracos e sem valia se
tornam úteis e existentes. Seus atos são valiosos e sempre socialmente válidos.

Maniqueísta como todo bom autor, Caco traz para os olhos do leitor um homem/menino comum arremessado na
desgraça de novos tempos. Tempos em que a violência brota das vielas e becos. Tempos em que biroscas e
pontos de vendas de drogas são tomados à bala. Mas principalmente, tempos em que matar se torna necessário
e até recomendável. A maldade está presente em todos, mas nem por isso deixa-se de amar e torcer pelo
bandido. Somos lançados ao mundo privado de uma guerra que há muito já não é tão particular assim. Tem-se a
impressão de que se está, como gosta de frisar a todo instante o personagem do livro, no lado certo da vida
errada.

Juliano é cria de um ambiente hostil mas nem por isso deixa de pensar nos amigos, moradores do morro e na
unidade de uma causa. A revolução sonhada por tantos através dos tempos se mostra uma preocupação natural
do líder comunitário. Juliano VP, o dono do morro Santa Marta, é sempre o mocinho. Por mais que Caco se
esforce para ser imparcial e mostrar com clareza e isenção a “vida louca” das “bocas de fumo”, o bandido
acaba se tornando o herói. Não só dos compaheiros de luta, mas também de leitores que sonham com uma
revolução vinda das ruas, de intelectuais que acreditam no diálogo entre as classes, de mulheres que
buscam emoções mais fortes, de crianças que ficam em seus barracos o dia todo sem nada no que pensar. Acaba
se tornando o herói da história.

Longe de ser o vilão que os jornais voltaram a pintar recentemente, após sua morte ocorrida dentro de Bangu
3 e ainda envolta em mistério, Marcinho VP não era o mocinho que Caco mostra nas páginas brancas e leves
de Abusado. Seus atos nunca são expostos com clareza e suas vítimas e crimes nunca são inteiramente
desnudados. Temos a sensação de que todos somos culpados, mas que aquele homem não tem nada a ver com a
estória, ele está apenas tentando mudá-la. O livro peca por não dissecar as verdadeiras relações existentes
no morro, e de quebra mostra apenas um lado da torpe visão de mundo de um homem que nunca existiu.

Mesmo sendo um elemento da ficção, Julano/Marcinho VP é um exemplo da espetacularização da bandidagem. Os
livros, os filmes, os documentários, os inúmeros textos escritos sobre o tema apenas têm servido para
aumentar a aura criada em volta destes novos elementos das guerras modernas. Abusado não deixa de
ser mais uma versão da história, contada com propriedade, mas sem a isenção necessária, que se perde na
tarefa de relatar, ao ilustrar com tintas coloridas e leves a vida de desgraçados sem futuro e que tornam
a vida menos importante a cada novo ato.

A construção jornalística de Barcelos é pródiga na captura do sentido de um universo em que se hibridizam
os signos do Brasil oficial, autorizado e instituído com os signos das culturas urbanas, da cultura popular
de massa, das culturas periféricas, incluindo suas sonoridades, visibilidades e oralidades, irradiadas
também pela mídia.

Astuciosamente, o humor e a ironia nas falas e conversações da comunidade (habilmente assimiladas pelo
escritor), funcionam como um modo de transcendência ao regime de exclusão e segregação, e – no fim das
contas – promovem estilos de coesão e sociabilidade internas.

Então, a literatura de Barcelos, enquanto mídia impressa, pelo viés do chamado jornalismo investigativo,
consegue flagrar o universo de Dona Marta em seus abismos sociais, econômicos e culturais, mas mostra
também o componente humano, afetivo, gregário.

O livro de Barcelos – pela sua própria voz e pelas vozes dos personagens – nos permite enxergar camadas
reativas e também camadas afirmativas.

No morro, há as redes nefastas do crime e da violência do narcotráfico, mas também as redes vitais de
integração e sociabilidade que asseguram a sobrevivência das comunidades carentes. Logo, na amplitude da
obra (dentro e fora de sua textualidade) há formas ideológicas, estéticas, éticas, sociais e antropológicas
que propiciam um conhecimento aproximado das alteridades e complexidades do cotidiano dos indivíduos no
Morro da Dona Marta; aí reside a importância de Abusado.

Não se pode esperar que se encontre relatos isentos de opinião nas 557 páginas
de do livro. Caco Barcelos toma um partido, se posiciona claramente; o que não
significa que distorça a realidade: apenas a torna menos artificial, mais humana,
com as diferenças tratadas de maneira profunda.

A apuração nos bastidores da quadrilha não foi nada simples. As dificuldades superadas por Caco iam desde
a circulação pelo “amontoado de barracos sem nome, com becos e vielas sem placa de identificação”, até a
reconstituição de histórias que não tinham memória material: nenhum diário, carta, álbum de fotografia ou
boletim escolar.

O jeito foi concentrar a apuração no relato de amigos e parentes dos que morreram nos 15 anos de guerra do
morro, com o cuidado de checar informações consultando fontes formais: arquivos de jornais, inquéritos
policiais, processos na justiça, cartórios de registros civis.

Durante a produção do livro, Caco esbarrou em uma série de questões éticas, morais e legais. Mas como era
de se esperar de um jornalista com sua trajetória, essas questões foram tratadas com muita idoneidade. Uma
das medidas adotada pelo jornalista foi omitir nomes para “evitar intriga, perseguição ou punição jurídica
às fontes”, como esclarece em nota no inicio do livro.

Fonte parcial: Cláudio Cardoso de Pauva, Prof. Adjunto do Departamento de Comunicação – UFPB

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