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Afeganistão: 1. Conheça os hazaras, descendentes de Gengis Khan

by Lucas Gomes

Há quase oitocentos anos, Gengis Khan, o poderoso líder dos mongóis, enviou seus embaixadores à Ásia Central. Eles não foram bem recebidos. Então, Gengis Khan e sua poderosa tribo mongol invadiram a Ásia Central para punir o governador por insultar seus embaixadores. Os hazaras dizem-se descendentes daquele exército mongol, o que não é difícil de acreditar. Com seus olhos oblíquos e arredondados e rostos achatados, eles realmente parecem com os mongóis. Até a sua língua, o hazaragi, possui muitas palavras mongóis.

Outros invasores chegaram, e os hazaras foram gradativamente impulsionados às altas montanhas do Afeganistão. A região em que vivem é chamada Hazarajat. Apartados pela geografia e pelas crenças, oprimidos pelo Talibã, os hazaras poderiam ser a maior esperança do Afeganistão.

No coração do Afeganistão há um espaço vazio, uma gritante ausência onde antes se via o maior dentre os colossais Budas de Bamiyan. Em março de 2001, o Talibã bombardeou as estátuas com foguetes por dias a fio, depois embutiu e detonou explosivos dentro delas. Das alturas, os Budas haviam contemplado Bamiyan por 1,5 mil anos. Mercadores da Rota da Seda e missionários de várias fés chegaram e partiram. Emissários de diversos impérios – mongóis, safávidas, mugais, britânicos, soviéticos – por ali passaram, muitos deixando pegadas sangrentas. Um país chamado Afeganistão tomou forma. Regimes ascenderam e decaíram. As estátuas resistiram a tudo isso. Mas os talibãs viram os Budas como ídolos não-islâmicos, heresias esculpidas em pedra. Não se importaram de ser considerados brutos. Não temeram ser ainda mais isolados. Destruir as estátuas foi uma devota imposição de sua religiosidade radical à história e à cultura.

Também foi uma projeção de poder sobre o povo que vivia sob o olhar dos Budas: os hazaras, habitantes de uma região isolada no montanhoso centro do Afeganistão conhecida como Hazarajat – sua pátria, ainda que não inteiramente por escolha própria. Os hazaras compõem até um quinto da população afegã, mas há tempos foram marcados como forasteiros. Grande parte deles é muçulmana xiita em um país muçulmano de maioria esmagadora sunita. Têm reputação de laboriosos, mas fazem os trabalhos mais indesejáveis. Seus traços asiáticos – olhos amendoados, nariz achatado, maçãs da face largas – destacaram-nos como, para todos os efeitos, uma casta inferior, e tão lembrados eles são de sua inferioridade que alguns a aceitam como verdade.

Os talibãs no poder – a maioria fundamentalista sunita, da etnia pashtun – viam os hazaras como infiéis, animais, alienígenas. Eles não tinham a aparência que devia ter um afegão e não faziam suas devoções como devia fazer um muçulmano. Dizia um ditado talibã sobre grupos étnicos não-pashtuns no Afeganistão: “Aos tadjiques o Tadjiquistão, aos uzbeques o Uzbequistão e aos hazaras o ‘goristão'”, o cemitério. De fato, quando os Budas foram destruídos, forças do Talibã estavam sitiando Hazarajat e incendiando povoados para tornar a região inabitável. No começo do outono daquele ano, o povo de Hazarajat não sabia se sobreviveria ao inverno. E então veio o ataque terrorista de 11 de setembro a Nova York – uma tragédia em outras partes que pareceu trazer a salvação ao povo hazara.

Seis anos depois da queda do Talibã, ainda havia cicatrizes na montanhosa terra dos hazaras, mas brotaram esperanças que eram impensáveis uma década atrás. Hoje, a região é uma das mais seguras no Afeganistão, livre em boa parte das plantações de papoula que dominam outras regiões. Nova ordem política reina em Cabul, sede do governo central presidido por Hamid Karzai. Os hazaras ganharam acesso às universidades, aos empregos públicos e a outras avenidas de progresso antes barradas a eles. Um dos vice-presidentes do país é hazara, assim como o parlamentar mais votado, e uma governadora hazara é a primeira e única mulher a ocupar tal cargo no país. O best-seller O Caçador de Pipas, adaptado para o cinema, descreve um personagem hazara fictício, e um hazara real venceu o primeiro Afghan Star, criado nos moldes do festejado programa de calouros American Idol.

Na exaustiva batalha do país para se reconstruir após décadas de guerra civil, muitos acreditam que Hazarajat poderia ser um modelo do que é possível não só aos hazaras mas a todos os afegãos. O otimismo, porém, é refreado por lembranças do passado e frustrações do presente: estradas não construídas, a ressurgência do Talibã e marés crescentes de extremismo sunita.

Um projeto para reunir milhares de fragmentos de pedra e reconstruir os Budas está em curso. Coisa parecida ocorre entre os hazaras, que tentam consertar seu passado fraturado, com uma diferença: existem imagens dos Budas destruídos. Já os hazaras não têm nem modelo, nem idéia de como seria um futuro livre de perseguições.

Musa Shafaq quer viver nesse futuro. Tem 28 anos, cabelo preto na altura dos ombros e traços típicos dos hazaras, lembrando os dos Budas.

De suéter vermelho, calça preta e óculos de grau com lentes fotocromáticas, ele estava no portão da Universidade de Cabul, ao término das aulas. Se formou logo: um feito e tanto para um afegão, considerando a instabilidade do país. Porque ele é um hazara, seu sucesso assinala nova era. Shafaq teve condições de concluir o curso como o primeiro aluno da classe, o que lhe garantiu o emprego que ele mais queria: lecionar na Universidade de Cabul.

Os hazaras estão fornecendo os jovens mais empenhados, educados e progressistas, e eles vêm aproveitando com avidez as oportunidades“, diz Michael Semple, um irlandês de barba ruiva que exerce o cargo de representante da União Européia no Afeganistão. Musa Shafaq ajudou a fundar o Centro para o Diálogo, uma entidade estudantil hazara de 150 membros. O grupo publica uma revista, promove eventos em prol do “humanismo e pluralismo” e coopera com organizações de direitos humanos na monitoração de eleições. Semple vê o grupo como parte de uma consciência política emergente na juventude hazara.

Temos uma janela de oportunidade“, diz Shafaq, “mas não sabemos por quanto tempo ela ficará aberta.” Esse filho de Hazarajat é o proverbial rapaz do interior que foi para a cidade grande e se deu bem. O pai de Shafaq era agricultor em Haft Gody, um povoado de Waras, distrito do sul de Bamiyan. Tinha também um restaurante no centro do distrito. Os jovens de Waras costumam casar cedo e permanecer próximo de casa, cultivando batata. Mas Shafaq queria mais. Quando não estava ajudando o pai, ele lia vorazmente: romances, história, filosofia, traduções de Abraham Lincoln, John Locke e Albert Camus.

Shafaq cresceu ouvindo relatos sobre as origens de seu povo e as razões de não se parecer fisicamente com os pashtuns e os tadjiques. Ele e seus compatriotas hazaras, diz a história, descendem dos soldados mongóis de Gêngis Khan, que no século 13 irromperam no centro do Afeganistão, construíram uma guarnição e subjugaram os habitantes – que eram então uma heterogênea mistura de povos bem comum na Rota da Seda. Quando o povo se rebelou e matou o filho de Gêngis Khan, o conquistador retaliou arrasando Bamiyan e massacrando a maioria da população. Os que sobreviveram tiveram descendentes de uniões com os invasores mongóis, formando os hazaras – uma colaboração genética evidente na diversidade das características faciais hoje vistas no povo da região.

Há pouco tempo, uma minoria de hazaras passou a sentir orgulho de sua ligação com Gêngis Khan, mas o comum tem sido essa linhagem estrangeira ser usada contra eles. Para muitos, a narrativa do presente começou nos anos 1980, quando o rei Abdur Rahman, um pashtun, lançou milícias anti-hazara em Hazarajat e arredores. Impelidas pelo chauvinismo e armadas de fatwas de mulás sunitas que declararam os hazaras infiéis, as tropas de Rahman mataram milhares e escravizaram sobreviventes. Multidões de hazaras foram expulsas de propriedades agrícolas nas planícies e fugiram para as terras altas centrais. Mais tarde, governantes usaram a força, as leis e a manipulação para confinar os hazaras ao planalto: um isolamento físico e psicológico.

Relatos sobre a sofrida história dos hazaras constituem uma espécie de herança cultural. “Era embaraçoso para os hazaras revelar sua etnicidade“, diz Habiba Sarobi, governador de Bamiyan. Mohammed Mohaqeq, o ex-comandante hazara mais votado nas eleições parlamentares de 2005, lamenta: “Éramos burros de carga que só prestavam para levar coisas de um lugar a outro“.

Musa Shafaq estava na décima série quando o Talibã subiu ao poder, em 1996, prometendo segurança à população, farta do cruel conflito entre os chefes militares étnicos, inclusive de facções hazaras. Um ano antes, o Talibã assassinara brutalmente Abdul Ali Mazari, um líder carismático que alguns chamavam de pai do povo hazara. Ele ajudara a fundar o Hezb i Wahdat, ou “Partido da Unidade”, na tentativa de encerrar as lutas internas entre hazaras. Após sua morte, o partido fragmentou-se, e as forças do Talibã logo se espalharam por Hazarajat.

Eu estava trabalhando na lavoura com meu pai quando minha irmã veio avisar: ‘Os talibãs estão em toda parte’ “, conta Shafaq. Os moradores improvisaram bandeiras brancas com sacos de fertilizante. Líderes locais fizeram acordos para apaziguar os talibãs. Shafaq escondeu seus livros.

Foi uma guerra atroz. Na província de Bamiyan, combatentes do Wahdat procuraram impedir que os talibãs tomassem as poucas partes do país que ainda não haviam conquistado. Escolas fecharam. Plantações ficaram abandonadas. Famílias fugiram para o Irã ou para as montanhas. O Talibã impôs um bloqueio a Hazarajat, provocando escassez de víveres na região já assolada pela seca. Em Bamiyan, o bazar foi incendiado, e famílias refugiaram-se nas cavernas vizinhas dos Budas.

No começo de 2001, nos dias mais gélidos de um inverno terrível para Hazarajat, o horror chegou ao distrito de Yakawlang. Em 8 de janeiro, os talibãs prenderam rapazes hazaras em Nayak, o centro distrital. “Pensamos que eles seriam levados a julgamento“, recorda-se Sayed Jawar Amal, professor em Kata Khona, um povoado próximo. “Mas, às 8 da manhã, foram mortos. Todos eles.” Os homens foram enfileirados e fuzilados em público. Os anciões que indagaram sobre os moços de sua comunidade foram assassinados também. Ao todo, concluiu a ONG Human Rights Watch, foram executados mais de 170 pessoas em quatro dias. “Porque éramos shias. Foi a única razão“, reflete Mohsin Moisafid, 55 anos, morador de Kata Khona que perdeu dois irmãos nesse dia.

Quando autorizaram os líderes locais a enterrar os corpos, foi preciso separar os cadáveres congelados com água fervente. Duas semanas depois, a luta recomeçou. Os homens do Talibã incendiaram mais de 4 mil casas, lojas e prédios públicos. Destruíram cidades inteiras no oeste da província de Bamiyan.

Os moradores fugiram para as montanhas e de lá ficaram vendo o fogo consumir suas casas. Muitos se refugiaram em Waras, onde a família de Shafaq – mãe, pai e sete irmãos – se desdobrava para encontrar alimento. Shafaq parou de estudar e começou a ensinar – hoje as escolas de Hazarajat têm muitos professores que não concluíram o ensino fundamental. Os sonhos de Shafaq perdiam a força. “Eu não tinha muita esperança, pois pensava que o Talibã permaneceria por mais dez ou 20 anos“, diz.


World Trade Center: o atentado

Os ataques do Talibã estavam no auge quando os aviões foram lançados contra o World Trade Center e o Pentágono. Foi um ex-machina, comenta Michael Semple, que documentou com grande risco pessoal o massacre de Yakawlang, em 2001. Depois que as forças americanas expulsaram o Talibã do poder, as esperanças cresceram. Os hazaras pensaram que a salvação estava a caminho. “Atuei nos dias em que os hazaras se sentiam praticamente em um sistema de apartheid“, conta Semple. “Agora a coisa é bem outra.”

Contudo, para hazaras como Shafaq, momentos como esse foram pouco confiáveis. “Eu gostaria de ver um lugar em que os sonhos dos jovens sejam atingíveis“, diz ele, “onde haja uma igreja e um templo hindu, em que outras religiões possam existir. Pluralismo é isso.” Ele sonhava com o trabalho de professor na Universidade de Cabul e em casar com uma moça de sua terra. Ela vem de uma família de amigos xiitas da seita Sayed que descendem do profeta Muhammad. As famílias não costumam deixar as filhas casarem com hazaras. Mas, nesta nova era, tudo é possível.


Lago Band-e Amir

Vista do céu, Hazarajat parece uma sucessão de slides com paisagens impressionantes: os desfiladeiros purpúreos ao redor de Bamiyan, as profundas águas azuis do lago Band-e Amir, as gargantas montanhosas vizinhas de Waras erguendo seus picos para perfurar as nuvens. Mas, no chão, a história é diferente. Para quem vive ali, é uma terra implacável com uma história implacável da qual é preciso arrancar a subsistência.

O inverno em Hazarajat, quando chega, permanece por seis meses. A neve fecha as gargantas montanhosas que separam os distritos e bloqueia os caminhos até para os veículos com tração nas quatro rodas e pneus acorrentados. Apesar das promessas que anos antes fizeram o governo e doadores internacionais – de pavimentar as estradas de Cabul a Bamiyan e de Bamiyan a Yakawlang -, boa parte delas ainda não é melhor que trilha de mulas. No inverno, morrem muitas mulheres durante o parto por não alcançarem ajuda a tempo. Mesmo quando o clima contribui, os agricultores não conseguem levar a colheita ao mercado. “Tentamos carregar melões e pêssegos a Cabul, mas, quando chegamos, só tinha suco“, diz Chris Eaton, diretor da sucursal da Fundação Aga Khan no Afeganistão.

Mohammed Akbar é um agricultor hazara de olhos cinza-azulados combinando com seu turbante justo e rosto miúdo cingido de barba branca. Ele vive em Lorcha, um remoto povoado no oeste de Yakawlang. Na ribanceira de um rio estreito, há um aglomerado de casas de paredes de barro grudadas umas nas outras. Elas estão entre as que o Talibã queimou em 2001. Cada homem de Lorcha pode apontar a montanha para onde sua família fugiu e descrever suas árduas jornadas através da neve. Hoje, a maioria das casas está reconstruída. Os moradores fizeram doações para uma nova mesquita. O dinheiro é pouco, mas o ancião da aldeia persuadiu os agricultores a resistirem à tentação de cultivar papoula. “É haram“, diz Akbar, o Islã proíbe.

Quando a neve começou a derreter na primavera passada, uma inundação letal assolou algumas áreas. Mas Akbar – na verdade, toda a Hazarajat – esperou que a cheia marcasse o fim da feroz estiagem que nos últimos anos limitara as colheitas e forçara muitas famílias a vender animais. Em uma tarde amena no fim da primavera, Akbar irrigava um pequeno trigal na orla do povoado. O vale circundante era uma colcha de retalhos de plantações semelhantes, com batata, feno e trigo começando a crescer. A estrada mais próxima ficava do outro lado do rio. Uma passarela que levava à estrada fora arrancada pelas águas quando o rio se encheu com a neve derretida. Numa ponte improvisada com três troncos, os pais atravessavam com as crianças de cavalinho nos ombros para levá-las à escola.

Nesse minúsculo vilarejo, assim como em toda a Hazarajat, a educação é prioridade. Mesmo se a escola for uma tenda ou uma casa sem porta ou janela, mesmo se o professor tiver poucos anos de escolaridade, os pais querem que seus filhos estudem, mais ainda que no resto do país. Hussain Ali vive em uma gruta em Bamiyan, onde sua família dorme em exíguos sacos de dormir e as paredes são pretas de fuligem. Seus filhos poderiam trazer uma renda extra para casa, mas ele os quer na escola. “Estou velho, meu tempo já passou“, reconhece ele, “mas meus filhos têm de aprender alguma coisa.”

Muitas escolas foram construídas recentemente em Hazarajat, sobretudo por organizações de ajuda e pelo Grupo de Reconstrução Provincial, sediado em Bamiyan e dirigido pela Nova Zelândia. Na capital provincial de Daykundi, um grupo de adolescentes disse que os jovens agora se recusam a casar antes de concluírem os estudos. Dos estudantes que prestam exame para ingresso na universidade, mais de um terço é hazara, e esse número – inclusive de meninas – está crescendo. Hazarajat é um lugar conservador, mas está longe de ser fundamentalista. Lá as mulheres “vão à escola, defendem seus interesses e têm liberdade“, resume Ryhana Azad, deputada distrital em Daykundi.

Talvez com o tempo essas sementes comecem a dar frutos que todos possam provar, mas por ora as famílias precisam lidar com problemas imediatos. Um dos grandes é ir para onde está o trabalho. Vilarejo após vilarejo, vêem-se mulheres – de saia longa, blusa larga e lenço verde, vermelho ou azul-claro na cabeça – tirando neve do telhado com pá ou cuidando da plantação porque os homens foram trabalhar como diaristas no Paquistão, Irã, Herat ou Cabul. É duro para quem vai e duro para quem fica. Mas às vezes adaptar-se ao terreno significa encontrar um novo.

Para muitos, o novo lugar é Cabul, onde, hoje, cerca de 40% da população é hazara. Nas ruas da parte oeste da cidade, vêem-se crianças hazaras uniformizadas a caminho da escola, vendedores hazaras montando bancas de verdura, lojistas e alfaiates hazaras abrindo as portas. Hossein Yasa, editor do jornal Daily Outlook, frisa que há emissoras de TV hazaras, jornais de donos hazaras, um grande complexo em construção que terá um madraçal e uma mesquita xiita. “A classe média dos hazaras está crescendo rápido“, diz Yasa.

Para alguns observadores, a discriminação que os hazaras sofrem em Cabul poderia forjar um sentimento de unidade há tempos inatingível, e também a ânsia por democracia. “Acho que em Cabul há um grau maior de nacionalismo hazara em comparação com a Hazarajat rural, pois aqui as pessoas sentem no cotidiano a disparidade entre hazaras e não-hazaras“, diz Ibrahimi.

O diretor da Comissão Afegã Independente para os Direitos Humanos, Sima Samar, concorda: “Os hazaras são mais adaptáveis à democracia porque sentem mais a dor que os outros. Eles sentem a discriminação. Querem a igualdade social.”

Se os Budas ainda existissem em maio passado, teriam fitado lá embaixo um moço andando pela rua principal de Bamiyan, um caminho sem calçamento ladeado por lojas que vendem óleo de cozinha, remédios e materiais de construção.

Um grande painel com a imagem de Mazari, o líder hazara martirizado, domina uma elevação.

O moço é Musa Shafaq, de volta à terra natal dos hazaras. Não conseguiu o emprego que desejava na Universidade de Cabul. “Se vou viver no Afeganistão, tem de ser em Cabul”, diz ele. Seu brilhante histórico escolar possibilitaria isso. “Ele foi um dos melhores alunos. Devia ter sido contratado”, diz Issa Reai, consultor do Ministério do Ensino Superior. Mas o preconceito contra os hazaras continua forte na universidade. Professores pashtuns ainda predominam, e entre eles há fundamentalistas que lideraram facções acusadas de atrocidades contra civis hazaras. Sayed Askar Mousavi, autor de The Hazaras of Afghanistan, afirma que essa discriminação evidencia que houve pouca transformação essencial. Em Bamiyan, diz ele, “temos duas mudanças: havia dois Budas, e agora não existe nenhum.”

Shafaq teve outra má notícia: não poderá casar com a namorada que deixou em Waras. “Eu a amo, e ela me ama”, diz ele. “Mas, quando enviei minha mãe para pedir a mão dela ao pai, ele recusou. Porque sou um hazara.”

E assim Shafaq está só, de volta a Hazarajat, lecionando na Universidade de Bamiyan, onde todos os outros professores também são hazaras. Como seus alunos, eles são diligentes, motivados, inteligentes – e têm certo medo. Desde que reabriu em 2004, a universidade cresceu. Passando a entrada, há um pátio poeirento em que grupos de alunos e alunas elegantemente vestidos seguem para as aulas de livros na mão. O letreiro diante da escola está em três línguas: inglês e dari, o idioma mais comum no Afeganistão, e, com letras mais graúdas, em pashtu, a dos pashtuns.

Shafaq ensina história do Afeganistão durante o Iluminismo e a Revolução Industrial. Fala sobre John Locke e Abraham Lincoln, sobre liberdade e democracia. Recebe 2 000 afeganis por mês – cerca de 40 dólares.

Depois de tanta esperança, de tantas promessas, os hazaras sentem-se menosprezados pelo novo governo, encabeçado por um presidente pashtun. Por toda a Hazarajat ecoa uma pergunta: por que não houve mais desenvolvimento e mais interesse em uma área que é segura, onde a população apóia o governo, onde a corrupção não é disseminada, onde as mulheres têm um papel na vida pública, onde a papoula não grassa? É comum ouvir agricultores matutarem sobre cultivar papoula para vender no mercado de heroína, talvez até causando violência, porque assim, quem sabe?, eles chamem a atenção do governo.

Construir naquele terreno é difícil, reconhecem, mas Hazarajat poderia ser um modelo do que é possível quando uma região se empenha no processo de construção da nação. Mas passou tempo demais. O ressurgimento do Talibã, que recentemente hostilizou líderes hazaras em vários distritos sitiando seus redutos no sul, já remexe em lembranças penosas. “Quando ouvimos no rádio uma notícia sobre o Talibã, nosso sangue gela”, diz Mohsin Moisafid, de Kata Kona.

Talvez surja nova geração de líderes afegãos que finalmente conduza o povo para longe da mentalidade belicosa, dos chefes guerreiros e da jihad. Muito depende de o Talibã continuar ou não a crescer, de se manter o interesse da comunidade internacional, de as tensões entre os Estados Unidos e o Irã, também xiita, acabarem por afetar adversamente os hazaras. Seja como for, está em jogo muito mais que o destino do povo hazara. Dan Terry, americano que trabalha em uma organização de ajuda e viveu no Afeganistão por 30 anos, resume: o que acontece com os hazaras “não é só a história desse povo. É a história do país inteiro. É a história de todos”.

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