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Agnes Mariano e a "Invenção da Baianidade"

by Lucas Gomes


Agnes Mariano

Agnes Mariano possui graduação em Comunicação Social – Jornalismo pela Universidade Federal da Bahia (1996) e mestrado em Comunicação e Cultura Contemporânea pela Universidade Federal da Bahia (2001). Atualmente é doutoranda do Programa de Pós-graduação em Comunicação da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo e escreve textos para publicações impressas e digitais. Tem experiência na área de Comunicação, atuando principalmente nos seguintes temas: oralidade, facilitação da escrita, textos biográficos, cultura afro-brasileira, cultura baiana, história de bairro.

Confira entrevista onde ela nos fala sobre a invenção da baianidade:

Leonardo Campos – A primeira pergunta é básica e bem direta: o que seria essa dita baianidade citada em seu livro “A invenção da baianidade”?

Agnes Mariano – A baianidade é uma ideia que se difundiu sobre como os baianos são, pensam, sentem, o que é considerado valioso ou não dentro desse ambiente cultural. É um ethos: indica valores, ética, hábitos. É uma mitologia: tem a ver com os nossos sonhos, utopias. A ideia de baianidade é muito mais um modelo, uma fonte de inspiração, do que a tradução da realidade concreta. Todas as identidades culturais são apenas isso: ideias. O que não é pouco. Elas unem pessoas, facilitam o diálogo, sintetizam valores importantes, belos. Assim como podem também servir para nos afastar de outros povos, para justificar para nós mesmos os nossos defeitos e equívocos. O que é uma bobagem, pois sempre temos livre-arbítrio, a escolha. A identidade cultural não explica as nossas qualidades nem os nossos defeitos. A cada instante cada um de nós escolhe como, quando e de que modo deseja se relacionar com essa ideia. E também com as outras ideias sobre identidade com as quais nós negociamos: o que é ser homem, mulher, negro, branco, índio, pobre, rico, jovem, adulto etc. Vivemos vários papéis, várias identidades ao mesmo tempo.

LC – Jorge Amado, na literatura, foi um dos responsáveis por essa noção de baianidade. A senhora confirma esta informação?

AM – Sem dúvida, ele foi um dos responsáveis. Muitas pessoas contribuíram para a divulgação desse “modo de ser dos baianos”, que envolveria costumes muito específicos, a participação em ritos, a valorização de certos estados de espírito, entre outras coisas. Ao longo do século XIX, temos os relatos dos viajantes estrangeiros, que nos deixaram descrições detalhadas do que presenciaram dentro das casas e nas ruas de Salvador e outras cidades baianas. Lá no século XVII, Gregório de Mattos já escrevia sobre a “cidade da Bahia”. O jornalista pernambucano Odorico Tavares escreveu e publicou muitos textos sobre a Bahia e os baianos. A lista é grande. Até Gilberto Freyre tem um livro sobre o tema. Isso sem falar na tradição oral, que pode ser visitada, por exemplo, através das letras de canções, como fiz em meu livro “A invenção da baianidade”.
O que ocorre com Jorge Amado é que, além da qualidade do seu trabalho, os seus livros alcançaram uma repercussão enorme, mundial. E, quase sempre, falando da Bahia. É bom lembrar que a ideia de baianidade normalmente está restrita ao contexto cultural de Salvador e Recôncavo, área com forte influência africana. Mas Jorge foi além dela e escreveu também sobre a região do cacau, onde ele nasceu e viveu seus primeiros anos de vida. Os livros de Jorge serviram de base para novelas, filmes, canções, por isso associamos tão fortemente o seu nome à Bahia, pela repercussão que o seu trabalho alcançou. Não estou querendo dizer com isso que ele não teve um papel muito importante na divulgação dessa ideia. A questão é que ele não foi o único. A Bahia não é invenção de Jorge Amado. É uma invenção coletiva, de todos nós.
Vou citar um exemplo da música popular. Todos nós conhecemos a canção de Caymmi “O que é que a baiana tem”. O que não lembramos mais é que Sátiro de Melo e Jararaca também compuseram “A baiana tem”. Raul Torres e Serrinha fizeram “A baiana diz que tem”. Joel e Pedro Caetano: “O que é que tem a baiana”. E, antes desses, alguns diziam em canções coisas como: “Só na Bahia que tem” ou “O que tem iaiá”. Um artista sempre dialoga som o seu tempo, com a sua cultura. Não cria nada sozinho.

LC – O cinema, a literatura e a música são três poderosos setores da arte que propagam esses estereótipos de baianidade com força descomunal. Qual dessas modalidades, em sua opinião, teria mais força?

AM – Acredito que, no Brasil, um país em vias de letramento, com forte tradição oral, a música popular exerce uma influência muito maior que os livros e o cinema. Mas os livros e o cinema têm o seu papel, porque também influenciam pessoas que produzem canções e outras produções que dialogam com o nosso imaginário. Não seria realista supor que a maioria da população tem acesso ao conteúdo dos livros. Até porque, se tem, muitas vezes não compreende plenamente o que está escrito. Quem estuda leitura e escrita em nosso país sabe que os índices são impressionantes: menos de 30% de leitores proficientes, ou seja, que podem ler e compreender um texto. O que precisamos é tirar partido da força da cultura oral em nosso país e não tentar repetir experiências externas, como se houvesse um único caminho certo. Além da música popular, vejo uma importância muito grande na propagação de ideias por meio da televisão. O pobre não vai ao cinema, mas assiste TV. E a televisão brasileira se refere muito frequentemente ao baianos e aos nordestinos em geral. Uma referência que, infelizmente, tende a ser bastante reducionista, muitas vezes até grotesca. Não surpreende que, tentando dialogar com esses estereótipos e em busca de alguns trocados, tantos baianos, especialmente pobres, pareçam viver um personagem de si mesmo “para turista ver”.

LC – O baiano visto na mídia contemporânea ainda surge de forma redutora, em programas que reiteram essas noções cristalizadas de preguiça e sensualidade latente. A polêmica mais recente com Os Normais 2. Gostaria de citar algum outro caso interessante?

AM – O que assusta em relação a esse discurso é a sua eficácia na difusão de ideias redutoras. Como moro em São Paulo, posso afirmar com toda certeza que, ainda hoje, apesar de todas as facilidades de deslocamento e acesso a informações, brasileiros razoavelmente bem informados prosseguem nutrindo visões estereotipadas a respeito de outros contextos culturais do país. Por exemplo, muitos paulistas estão tão acostumados a associar a Bahia e o Nordeste a pobreza, atraso e pouca escolarização, que não conseguem disfarçar a surpresa quando conhecem um nordestino que lê, dialoga, pensa, é competente. No fundo, estão acostumados a pensar que esse papel é o deles. O nosso seria “celebrar” ou então “limpar o chão”.
Temos a nossa parcela de culpa nesse processo, pois muitos baianos das camadas médias, escolarizados, ainda têm frequentemente o “rabo entre as pernas”, achando que a “verdadeira civilização” está em algum lugar fora da Bahia. Há uma dificuldade em reconhecer o valor de quem está ao lado, enquanto aqui a dificuldade às vezes é justamente reconhecer a própria mediocridade, reconhecer que alguém, com recursos bem mais limitados, fez algo bem melhor. Mas há sempre o outro lado também, aqui e aí: pessoas fantásticas, com a mente e o coração abertos.

LC – Falamos de outras artes mas esquecemos da importância da dança nesse processo. Como abordá-la neste processo?

AM – O que não podemos fazer, em relação ao discurso da baianidade, é “jogar fora a criança junto com a água da bacia”. Ou seja, saber celebrar, ser sensual, gregário, generoso, alegre, festivo, despojado e muitas das outras ideias associadas aos baianos, são ótimas. O que não é inteligente é nos restringir a essas ideias, como se elas esgotassem tudo o que somos ou desejamos ser. Você pode ser um cientista que dança. Nada o impede. E, é claro, temos autonomia para recusar tudo isso também.
Em relação à dança, sabemos que é associada ao baiano uma particular destreza física, uma habilidade inata para a dança, que possivelmente viria do espaço que a dança, a música e as situações festivas possuem em nossa cultura, inclusive em ambientes familiares. Uma influência certamente africana. Tudo isso é muitíssimo precioso. Tem a ver com auto-expressão, bem-estar, prazer, saúde física e mental. O contrário conduz a couraças físicas, pessoas que têm muita dificuldade para viver o prazer de estar juntos, para celebrar, para se expressarem.
Mas é claro que, em relação à dança, temos momentos também de exagero, de hipersexualização, envolvendo especialmente as mulheres. Uma situação que permanece alimentando a imagem da mulher baiana como sexualmente disponível. Suspeito que tudo isso esteja relacionado ao papel da mulher em nossa cultura, ainda bastante complexo. A Bahia tem índices alarmantes de violência contra a mulher, ainda aceitamos situações e papéis que não nos favorecem. Infelizmente não se resolve isso da noite para o dia. Será um longo percurso. Mas temos bons exemplos de feministas do povo, como as baianas de acarajé, as mães-de-santo e tantas outras mulheres que souberam conquistar os seus espaços sem precisar exagerar na dose e sem perder o “jeitinho baiano”.

LC – Outro grande problema é o Candomblé, religião que há tempos vem tentando consolidar-se mas que na maioria dos discursos, aparece como adornos de narrativas, sem nenhuma preocupação ou abordagem social. O que acha disso?

AM – Falar do sagrado é falar de algo muito complicado, talvez inexprimível. Até 1976, na Bahia, um terreiro de candomblé precisava de licença da polícia para funcionar. A perseguição a tudo o que estivesse relacionado à cultura negra é muitíssimo recente. Como sabemos, nas entrelinhas, ainda não acabou. Por outro lado, nos últimos anos, como consequência das realizações dos próprios adeptos e líderes religiosos e também pela presença de tantos artistas e intelectuais dentro dos terreiros, o candomblé virou moda entre os descolados. É só ir a um grande terreiro de Salvador que você verá a quantidade assombrosa de visitantes e filhos-de-santo brancos, de classe média ou alta. Inclusive ocupando cargos importantes na liturgia. E também são numerosos os artistas, intelectuais e jornalistas que incluem aspectos e símbolos da religião em seus trabalhos, muitas vezes sem muita consciência do que fazem. Muitas pessoas reclamam de uma perda de espaço para o povo, da mercantilização da religião etc.
Não sou do candomblé, não posso opinar, mas tenho a impressão de que, em muitos casos, essa aproximação do candomblé pode estar indicando uma busca pelo sagrado. Uma busca que não se satisfez com os ritos do catolicismo e de outras religiões. Uma busca que se encanta com a sofisticação estética do candomblé e que talvez se identifique com o animismo de uma religião que cultua o trovão, as tempestades, a água, as plantas, o fogo. São pessoas que, cada uma ao seu modo e dentro das suas limitações de envolvimento, buscam respostas para as necessidades humanas de significado ou se sentir-se vivo. O mitólogo Joseph Campbell dizia que a humanidade precisa hoje de mitos universais. Quem sabe o candomblé não terá algum papel nesse sentido…

LC – O vestibular é um processo considerado nocivo por alguns especialistas, pois algumas universidades aplicam provas anacrônicas. Acha que questões como estereótipos e estudos culturais deveriam ser mais bem empregados em provas e concursos?

AM – Creio que sim, mas somente quando os concursos e vestibulares resolverem deixar de lado a ilusão da objetividade. Caso contrário, seria desastroso. Imagine uma prova: “O que é ser baiano? Assinale a reposta certa”. O sentido das discussões que as ciências humanas e a filosofia nos trazem é justamente embaralhar as nossas certezas, é nos fazer ver que há sempre um outro lado, que não é possível ter respostas prontas, conceitos prévios. O quanto antes nos aproximamos de discussões como essas, mas cedo podemos nos libertar das amarras da nossa classe social, família e cultura.

Créditos: Leonardo Campos, graduando em Letras Vernáculas com Habilitação em Língua Estrangeira Moderna – Inglês – UFBA | Pesquisador do grupo “Da invenção à reinvenção: imagens do Nordeste na mídia contemporânea” – Letras – UFBA | Pesquisador na área de cinema, literatura e cultura

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