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Água de cabaça, de Vladimir Souza Carvalho

by Lucas Gomes

O livro Água de Cabaça, de Vladimir Souza Carvalho, é uma coletânea
de contos.

Podemos aplicar aos contos de uma divisão de ordem prática, os de caráter fantástico,
isto é, os que têm um ponto de sobrenatural (“Retorno”, “Encontro”, “O Retrato”,
“Plenitude” etc) e aqueles que possuem muito da memória coletiva. Muitas dessas
histórias do Água de Cabaça são contadas e recontadas ainda hoje em Itabaiana
e região, por alguns cidadãos (“Praça”, “Quadro da Falecida”, entre outras).
Isso em nada diminui a importância de Vladimir de Souza, muito pelo contrário,
Vladimir mostra a sua capacidade e maestria de ser o transmissor para o papel
da tradição de sua gente.

Quanto ao título, o próprio autor disse: “O título, sim, o título, ÁGUA DE
CABAÇA, nasceu de uma frase do compadre Luiz Carlos (Andrade), num dia qualquer
da vida, embora, no livro, não se toque em água, nem em cabaça. Água de cabaça
representa um líquido puro, com condições de ser ingerido, apesar de não se igualar
à água mineral, nem à que vem da torneira. No fundo, água, que, à míngua de outra,
dá para ser utilizada por determinadas pessoas, em certas e limitadas áreas. Na
falta de outro livro, a leitura destes contos pode ser recomendada. É este o sentido
do título. Não sei se deu para entender. De qualquer maneira, é bom, ainda, registrar
que, revelados pelo compadre, aproveitei alguns casos, com a permissão dele, como
já tinha procedido no livro anterior.

A temática e o estilo de Água de Cabaça não difere muito de Mulungu Desfolhado. Pequenos
dramas cotidianos, existências sem perspectiva, seres perplexos, viventes de carne e osso, cenários
simples, no palco o amor, o ódio, a alegria, a tristeza, inveja, ambição, preconceitos, enfim rotineiros e
determinantes sentimentos natos à enigmática criatura humana, da mais rude a mais sofisticada. Narrados na
forma de dizer característica do autor: linear, direto, sem complicações. Há também, como já visto, novas
incursões ao fantástico, a uma irrealidade, ao desregramento do racional, e em “Pés Atados” e “Encontro”
nota-se um tratamento romântico, cremos que até então ausente nos trabalhos do autor.

Resumos dos contos

O Retorno

Temos nessa história narrada em terceira pessoa a especulação do retorno de Jesus
Cristo à terra e em nossa época. “Jesus voltou” foi a notícia que se espalhou
numa cidade do interior, depois que um pregador vestido com uma calça jeans, barba
rala e camiseta de propaganda declarou seu nome: “Jesus”.

Ele que vivia dos atos de caridosos da comunidade constantemente debaixo de
um cajueiro, chamou atenção não só dos mais simples como das ditas “autoridades”.
Essas prenderam-no sob o argumento de “averiguação”, pois o padre da paróquia
vizinha se sentiu incomodado com a presença desse diferente pregador e incitou
o delegado a fazer isso. A descrição de Vladimir faz com que se associe a imagem
de “profeta” de nossos dias à figura de Antonio Conselheiro.

Ao sair da delegacia, Jesus foi cercado pela multidão. Um grupo de rapazes tenta
humilhá-lo, querendo saber se ele aceita bebida, cigarro, mulher ou mesmo homem,
esfregam-se nele, quiseram transformar o pregador no escárnio popular. Um relâmpago
que ninguém viu cortou o céu, Jesus empurrou os rapazes que lhe impediam o caminho
e se dirigiu ao açude e rapidamente foi embora… sobre as águas.

Piedade

Um ‘coronel’ do interior se impôs na região por meio da violência e vivia sob
a tensão do medo de ser pego em emboscada. Sua vida era marcada pelas mortes que
causou para crescer na vida: posse de terras, compra de terras de viúvas desamparadas,
entre outras coisas… suas mãos estavam sujas do sangue de muita gente, era repudiado
no lugar. No entanto, como forma de uma triste ironia, ao visitar a casa de um
seu empregado, a esposa deste lhe ofereceu para preparar comida, dizendo que providenciaria
a morte de uma galinha. E a surpresa veio quando o impiedoso assassino/mandante
disse para que ela não se desse ao trabalho de ser cruel matando o pobre bicho,
nada de puxar o pescoço da galinha, ele se contentaria com ovo frito, afinal a
galinha era bicho inocente e ‘nada de mal tinha feito’.

Capricha no pastel, Aparício

Narrativa em terceira pessoa, “Capricha no pastel, Aparício” é um conto baseado
nas reminiscências de Aparício ao voltar a terra natal depois de mais quarenta
anos. Buscou tão logo chegou encontrar coisas e pessoas de seu tempo. Intimamente
queria ser reconhecido como natural daquele lugarzinho. Tentou mostrar a carteira
de identidade ao recepcionista do hotel, em vão. Foi em busca do seu passado
na cidadezinha que em nada se parecia com o que fora em sua época de menino,
começou a relembrar o tempo em que vendia pastéis e lutava pela vida. Recordou
com carinho de quatro velhinhos que compravam seus pastéis, brincavam com ele
e o protegiam. Aparício menino via neles um pouco de avós.

Este conto dificilmente deixará de marcar o leitor, pois os seus vários apelos, no
bom sentido, encontram a oralidade do autor em um dos seus melhores momentos. O saudosismo, a expectativa,
o desejo irrefreável de voltar ao cenário de uma infância marcante quarenta anos depois, nos apresenta uma
personagem simpática, cativante, que acompanhamos comovidos no seu perambular pelas ruas e praças
testemunhas, à procura dos seus instantes vividos, de suas alegrias, tristezas e sonhos.

Areia no prato

A bem humorada história de um homem interiorano que “conquista” todas
as mulheres que aparecem na sua frente. Vindo a cunhada cuidar da irmã no período
do resguardo pós-parto, o protagonista enrabichou-se por ela e pouco tempo depois
a cunhada estava grávida. Houve uma reviravolta na família. Ao nascer a criança,
uma outra mulher da família veio cuidar daquela que havia dado à luz: a
sogra, a qual também foi “conquistada”, e logo estava grávida também.
O sogro, a cunhada e a ex-mulher passaram a detestá-lo ainda mais. No final, para
seu desgosto, nenhuma mulher da família foi liberada para tomar conta da sogra
que era sua atual mulher, e ele teve que se contentar com o que lhe restara.

Pés atados

O fascínio entre professor e aluna se manifestou nessa curta história de Vladimir
Souza. Ele a encantava com suas histórias e dela sentia falta nas férias fascinado
que era com sua beleza singular, ela, que era chamada de princesa por ele, fixava
os olhos naquele que, tendo o dom da palavra, enchia-a de devaneios.

Havia entre eles abismos de idade e posição social. Ele sentia ciúmes dela ao
pensar na possibilidade de ‘sua princesa’ arrumar um príncipe e, logo, trocasse
a companhia do professor pela do rapaz. Em seu ciúme, temeroso da resposta, perguntava:
‘Princesa, cadê o príncipe?’ e ela sempre respondendo que não havia ninguém para
alívio do sonhador mestre. Até que uma oportunidade de nova pergunta e diante
da nova negativa da moça, o professor confessa: – Se eu não estivesse de pés atados,
seria seu príncipe.

Tendo o professor lançado tal declaração, os dois ficaram mudos, sem saber o que
falar: ele querendo que ela abrisse espaço para que ele continuasse a confissão,
ela, por sua vez desejosa que voltasse a tocar no assunto, mas nunca mais falaram
nisso.

A Boneca

Sargento Ozinando, homem violento, impiedoso, capataz, pau mandado do poderoso
deputado Euletério, não podia ver mulher, que não desejasse. Coagia se
preciso fosse para tê-la, não importava se era casada ou moça virgem, se ele queria,
teria a qualquer custo.

Uma frustração, porém, acompanha o cruel Ozinando: é infértil. Nunca teria filhos.
Esse era seu segredo. Incumbido de uma missão de “caráter político”: acertar contas
com Nilo das Candeias que teve a ousadia de votar contra o deputado Euletério
e ainda mais com desplante de contar na bodega a insubmissão. Numa Kombi, Ozinando
foi com capangas (soldados) para pegar Nilo. Chegou à casa do adversário, este
não estava. Na frente da casa, só a filha de Nilo brincando de bonecas. A menina
respondeu que o pai não estava e não deu maior importância à presença estranha,
tratou-o com simplicidade apresentando as bonecas a Ozinando, que estava desconcertado
com as atitudes da menina, por exemplo, a de lhe dar ordens:

– Me passe essa boneca aí!

E ele obedeceu.

Ela lhe perguntou qual a mais bonita, isto ou aquilo, ele respondeu como que enfeitiçado.
Os soldados o observavam. Ele continuou a conversar e obedecer a menina. Ozinando
notou que estava sendo visto e voltou a si. Os soldados estavam confusos. Ozinando
entrou na Kombi e os soldados o seguiram para irem embora dali, não entendo
o que aconteceu. Muito menos Ozinando entendia, mas o narrador deixou transparecer
que a frustração de Ozinando se transformou em encantamento pela criança do outro,
uma vez que ele nunca poderia ser pai. Isso o impediu de prosseguir com os planos
de violência, pois ele perdeu esse instinto ao ficar confuso invejando Nilo.

Plenitude

Tem-se no conto “Plenitude” uma narrativa em primeira pessoa e nele pode-se perceber
a influência machadiana. O narrador estava morto (assim como o Brás de Memórias
Póstumas de Brás Cubas
) e, neste caso, não retomou sua vida por inteiro como
o fez Cubas, mas apenas durante seu velório e seu enterro. Descreveu a situação
geral do ponto de vista de quem nada pode fazer devido à morte e levou, com uma
visão bem humorada, a pensar sobre a morte. O terno de uma cor que o incomodava,
as histórias sobre futebol que o filho contava à porta da casa, o desleixo geral
com a vontade que teria o morto, fazem dessa narrativa uma nova forma de ver a
morte. A descrição segue até o fechamento da gaveta no cemitério, quando sozinho
e deixado de uma vez por todas, o defunto-narrador se declarou “enfim, morto”.

Primeiro diálogo

Um telefonema depois de décadas. É assim que começa um diálogo inusitado. Uma
senhora de mais de 60 anos telefonou primeiro e deixando um recado, recebeu retorno.
Um homem que contaria com mais de 80 anos lhe telefonou em resposta. Conheceram-se
na juventude em Macambira, ele não se lembrava mais dela, fez esforço e só depois
de ouvir o nome do pai, soube quem era ela: a bela filha de Gardiano do Vapor,
Laurinda, que trocava olhares com ele em tempos que não poderam se manifestar.
Ele tinha ido para Macambira depois de ficar órfão. E de lá se foi sem nada dizer,
foi arriscar-se na vida para crescer. Agora ambos estão viúvos, ele morando
longe no sudeste do pais e ela ainda morando em Macambira. Ela afirmava que não
tinha interesse em casamento, tinha conseguido o número com uma parenta dele,
só queria conversar, nada mais.

Relembraram os velhos tempos, mas o assunto se esgotou. Despediram-se, ela reafirmou
que ele podia voltar a ligar, a cobrar, se quisesse. Pensou em voz alta que depois
de tanto tempo e de tanto se olharem, era a primeira vez que conversavam.

Sonho

História que envolve um triângulo amoroso, mágoa entre mãe e filha e desejos não
realizados. A filha recebeu uma carta que desvendava uma historia diante de si:
sua mãe e seu marido eram apaixonados desde antes de seu casamento. Seu pai dono
de farmácia recebeu a visita de um representante comercial que se encantou com
a beleza da esposa do comprador de seus produtos. De tudo o vendedor fazia para
ficar perto da mulher desejada. Como foi ineficaz, pediu e conseguiu a mão da
menina de 16 anos, filha do dono da farmácia e que se parecia muito com a mãe.
Ficar perto da sogra era seu desejo.

Depois dessa descoberta, a vida dessa moça passou a não ser mais a mesma.
A tristeza tomou-lhe conta, o sexo era raro, o marido não fazia tanta questão
dela assim. Na verdade, quando a beijava, queria estar ligado à boca daquela que
o atraía desde o início, mas lhe era impossível. A magoa entre a
mãe e filha cresceu.

O farmacêutico morreu, o genro assumiu seu lugar na farmácia, mas não na cama
da sogra. Subitamente, o genro morreu enquanto passava um troco. A cidade toda
queria ver o velório: todos sabiam da história que envolvia genro e sogra, queriam
todos ver a atitude da sogra diante do corpo, queriam saber se ela se desesperaria
ao ver ‘seu amor morto’. Mas ela manteve a dignidade. Mãe e filha passaram a morar
juntas, mas ainda havia um abismo entre elas. Depois a mãe morreu, velou-se o
corpo, encaminhou-se para o cemitério ao sepultamento. Mas lá acontece o inesperado:
o caixão não entrava na sepultura que era do farmacêutico. Tinham tamanhos diferentes.
Constrangimento. A filha querendo se livrar daquela situação. Alguém teve uma
idéia: colocar o féretro na sepultura do genro, assim caberia. Mais uns minutos
e tudo estaria resolvido. Assim se procedeu. O caixão dela foi colocado na sepultura
do genro. A filha que até então permanecera em silêncio, disse: – Agora estão
juntos para sempre.

Revelação

Tem-se neste conto as visões de Belarmino e as conseqüências que isso teve. O
corpo começou a fraquejar. Caiu, ralou-se, viu animais passando em galopada, água
de açude ficar vermelha como sangue, e lançou-se ao chão para se proteger. Lutava
contra si mesmo e as visões que teinha. Apareceu-lhe a dor de cabeça. Tentou ir
para casa. Sentiu-se como se estivesse bêbado. Chegou emsua casa despencando-se
no chão, “desmanchando-se como jenipapo maduro”. No outro dia, acordou dizendo
que tinha visto coisas estranhas, mas ninguém acreditou.

Herança

Nasceu e, por conveniência de seu pai, ficou com o nome do irmão dois anos mais
velho, já falecido: Atenaldo da Silva de Jesus. Sua vida foi marcada pela infelicidade.

A mãe que tinha partos (doloridos) um atrás do outro, não resistiu a vida que
levava. Como a professora Dona Firmiana lhe disse: sua mãe tinha sido levada pelo
Criador. Como o eufemismo não funcionou, ela foi textual: – Sua mãe morreu.

Logo o pai arrumou outra e continuou a fazer filhos. Atenaldo era apenas mais
um. Detalhe: com nome de outro. Ademais não sabia lidar com serviços de sítio.
Na vida rural era um inútil. O pai vendo isso, despachou-o para Itabaiana para
morar com a tia Esmeralda. Esta o recebeu com carinho, ele tentou dar-lhe orgulho,
mas terminou pulando de função em função sem ter êxito em nada. Lançou por fim
mão de sua força física e fama de valente, acreditando que seria feito polícia.
Eis sua cartada final para dar orgulho a tia que iria vê-lo vestido de soldado.
Não passou nos testes.

Isso só agravou sua situação, tendo em vista que passaria a perambular na cidade
sem ocupação. Meteu-se em encrenca, foi às vias de fato com outro do mesmo tipo
dele: prisão.

Um dia foi levado à presença do prefeito Hermengado Patrício de Anunciação. A
autoridade lhe fez uma proposta: matar Jonas Sapateiro, um seu desafeto em troca
de proteção e duzentos contos. Atenaldo cometeu o crime em local público. Foi
preso, interrogado, respondeu, sem citar o nome do prefeito, claro, e com freqüência
recebeu recados do prefeito para que ficasse tranqüilo ‘tinha proteção, não iria
ficar muito tempo na cadeia etc’. Contudo, algo o desarmou: o prefeito morreu
num acidente. Não teve escapatória, Atenaldo foi julgado e condenado através de
júri popular pela morte de Jonas Sapateiro, figura querida da localidade.

Ao narrar esta história, Atenaldo já estava preso há quinze anos, mas não se importou
com a prisão, importou-se em amaldiçoar a herança que recebeu do irmão: nome,
registro e azar.

A Praça

“_ Entra! Muro não é lugar para moça direita”, é o que acompanhou Marivalda desde
a mocidade. Hoje, ela de cabelos brancos contemplava a praça. Sempre fora prisioneira
em sua própria casa: o pai, a repreensão em pessoa, censurava-a desde a infância.
Marivalda se tornando moça, seios crescendo, formas arredondando e o pai reprimindo
a filha. Nunca saindo de casa, Marivalda viveu sem escola, sem amizades.

O corpo se avolumou, engordou demais devido à vida sedentária. Também lhe faltou
carinho de homem, seu corpo pedia sexo, mas criada com tanta repressão, não soube
direito o que sentia ao certo. Chegou a andar nua pela sala, desesperada. Morreu
a mãe, e Marivalda viu o movimento em casa. Estranhamente gostou do velório: viu
gente (note-se o desequilíbrio mental). O pai agora sofreria com os delírios dela,
chama-a de filha safada, amaldiçoa a vida e deseja a morte. Tanto deseja que o
destino de todos os homens lhe vem ao encontro.

Morto o pai, Marivalda já de cabelos brancos, olhou a praça. Fez mais: foi à praça,
imaginou-se criança. Andou, brincou na praça, sentiu-se leve (embora fosse gorda),
mas na sua imaginação era apenas uma criança de sete anos. As pessoas a olhavam,
crianças a seguiam. No olhar das pessoas, ela sentia mais uma vez a proibição
do pai. E lembrou: ‘não é lugar para moça direita’.

Não desistiu, continuou na praça. O pai que se danasse: no inferno ou no céu,
ele não proíbia mais nada – ela continuou na praça.

Jantar

Viúva. Bonita, jovem e desejada. Cortejada por muitos, mas se sentia desvalorizada,
pois os homens a viam como objeto sexual. Viam nela alguém que devia estar há
muito sem sexo, precisando aliviar as tensões. Não a respeitavam, não a notavam
como alguém que desejava ser amada, receber atenção. Fez tentativas, mas se frustrou.
Ao perceber que era vista dessa forma, pensou e repensou isso enquanto decidia
se ia ou não a um jantar. Decidiu não ir mais, despiu-se da roupa, retirou a maquiagem.
Nesse instante tocou o interfone. Atendeu. O porteiro avisou: ‘Senhor Teobaldo
já chegou’. De súbito retornou ao quarto refez a maquiagem, vestiu-se de novo.
“Pedra que rola não cria limo. Precisava se arriscar”. Desceu.

Conexão

Um novo coreto na praça. A grande atração do lugarejo. A cidade ficou em polvorosa.
Todos queriam estar perto do coreto, tirar foto com ele. O padre desejava celebrar
missa, o bispo também, o maestro da banda queria tocar lá, enfim todas as atenções
se voltaram para o ‘ilustre cidadão’ que o coreto se tornara. Teve até quem passava
e dizia: – “Bênção, senhor Coreto”.

Mas o coreto possuía uma portinhola guardada com todo o cuidado. Por ela
entrava Zequinha Rosário, resguardado pelas autoridades policiais. A beleza do
coreto ainda estaria por se tornar em medo, quando Zequinha Rosário ficou mudo
e cego. Todos temeram o coreto, ninguém mais o fotografava, nem padre nem bispo
queriam celebrar missa nele, a polícia não mais o vigiava, o maestro o
esqueceu, as pessoas se mudaram da praça em que ficava a construção temida.

Aproveitando a oportunidade de que as forças policiais não vigiavam mais a entrada
do Zequinha Rosário no coreto, o narrador, que viveu essa experiência em seu tempo
de criança, entrou. Lá dentro havia máquinas, barulho ensurdecedor. A porta se
trancou, o menino se desesperou, viu a boca do mudo cheia de baba, sujou-se de
graxa, gritou, debateu-se, sentiu coisas caindo sobre si, sem saber como conseguiu
quebrar a porta e sair todo arranhado daquele lugar infernal.

Escapou, mas nunca entendeu direito o que lhe aconteceu: “A boca do mudo se
abrindo naquele som horrífero, a escuridão, as máquinas se desmanchando em cima
de mim, a figura de Zequinha Rosário, como se tudo fosse um aviso que até hoje
não consegui desvendar”.

Quadro da falecida

Novo casamento. Antonio iria casar depois da viuvez e das filhas terem seguido
o rumo de suas vidas. Gastos e arrumações na casa para que se pudesse receber
a noiva.

Ele achando tudo isso bobagem, mas mesmo assim concordando para aplacar sua solidão
e a falta de cuidado feminino em que se encontrava. No meio dessas modificações
na casa, chegou-se ao quarto. Lá imponente na parede estava a foto de Josefa,
a falecida. Quadro que Antonio toda a noite olhava com saudade. Quadro em que
ele contemplava a beleza de Josefa aos quinze anos. A noiva queria tirá-lo
de lá. Discutiram. Ele relutou em tirar dali a imagem da primeira esposa.
A noiva insistiu em afastar as recordações da mulher anterior. Ela se negou mais
uma vez e disse que no quarto o quadro não ficava. Ele, tranqüilo, resolveu a
seu modo:

“– O quadro fica no quarto. E pronto. Quem não fica no quarto, nem na casa,
é você, porque casamento não vai haver mais. Acabou. Acabou”.

Desejo

Contado em primeira pessoa por um guerrilheiro condenado à morte por fuzilamento
por se opor ao regime ditatorial. Perdeu a mãe devido aos choques que esta levara.
Seu pai, além da esposa, perdeu a voz com a língua cortada. Tudo isso para pressionar
o rebelde. A perseguição a ele prosseguiu, foi capturado, humilhado, condenado
ao fuzilamento. Aguardou a morte que lhe sorriu “com seus dentes esquálidos”.

Segundo o narrador, “Nada deseja. Queria apenas que os fuzis falhassem na hora
do fuzilamento. Como ia rir na cara desses palermas”.

O Ato

Após doença e de uma ausência razoável, o marido aguardou a esposa voltar do hospital.
Havia cuidados e recomendações médicas para que a mulher permanecesse em repouso.
No entanto, o desejo sexual os impeliu à prática. Ao ajudá-la a trocar de roupa,
eles se desejaram. O ato transcorreu e quando concluído pelo orgasmo, ele pôde
notar que ela não se movia: estava morta. Vestiu-a, vestiu-se e chamou parentes
e vizinhos para comunicar o óbito. Sentia na roupa ainda os resquícios do ato.
Ocorreram velório e enterro, como de costume. Muita gente. Durante o sepultamento,
mais exatamente no momento da descida do caixão, o viúvo teve uma crise de choro.

Enterro encerrado, o viúvo voltou só para casa. Sua primeira providência foi tomar
banho e, enfim, tirar do corpo ‘os resíduos do ato’.

As Cartas

Neste conto, um dos melhores contos da coleção, o leitor, aos poucos, vai se envolvendo no processo
que acaba por levar a personagem central a rever a sua posição em relação ao problema que sempre a
angustiara.

Sua vida dedicada aos livros e à sua amada morta – noiva que perdeu afogada. Conservava,
mesmo já estando casado, uma fotografia dela em sua biblioteca, e mantinha também
o hábito de visitar e cuidar do túmulo de seu grande e falecido amor. A esposa
sempre ficou magoada com isso, ainda mais porque o marido dedicava muito de seu
tempo para escrever cartas à falecida Érica. O caso era sabido em toda a cidade.
Aquele professor mantinha seu amor por anos a fio por uma mulher que já morrera.

Agora tanto a mulher magoada quanto o seu marido estão mortos. A filha que acompanhara
o pai após a morte da mãe, estava agora no escritório a remexer e procurar as
cartas para saber-lhes o conteúdo.

Sensível, fora a única entre os filhos do casal que sofreu, antes da morte do pai, com a condição da mãe,
esposa de um homem, todos sabiam, loucamente apaixonado pela memória de uma noiva perdida em acidente,
ninguém entendendo porque viera a se casar. Sofrimento esse pelo sofrimento e passividade da mãe que, é
claro, lhe provocavam profundo agastamento, incontrolado ressentimento contra a falecida. Morto o pai,
abre-se à sua curiosidade o gabinete, até então fechado para o mundo, que abrigava a incurável solidão do
apaixonado, retratos e retratos dos noivos felizes, as muitas e muitas cartas de amor, desespero e saudade
que escrevia sem parar e sem poder enviá-las à destinatária. Ao se aperceber daquela paixão sobre-humana,
excelsa, a jovem se deixa contaminar: “De repente, não sentia nenhuma raiva da falecida. O sorriso do
retrato a imobilizava. Aproximou-se, observou o seu rosto, os olhos, o cabelo, a boca, estudou os traços.
O rosto que enfeitiçara o pai. Os dedos alisaram o retrato”. – Quem sabe naquele momento desejou ter sido
filha de tamanho amor!… Contrariando o propósito anterior de ler todas as cartas, certamente para
aumentar o seu antagonismo, alimentar a sua mágoa, queimou-as naquele mesmo dia.

Arrependimento

Namoro com oposição da família dele. Ele, negro, bem de vida. Ela, branca, empregada
doméstica. Ele dirigindo o caminhão do pai e vivendo cercado pelos caprichos
das irmãs – feias, chatas e solteironas.

Quando a moça branca soube da oposição familiar, isso lhe atiçou ainda mais a
insistência nesse namoro, embora não amasse o rapaz, apenas ‘gostasse’.
Armou uma trama e engravidou. Falou em casamento, provocou briga com as cunhadas.
Todavia, o destino lhe aprontou algo: ela foi surpreendida com a notícia da morte
do namorado num acidente na região de Minas Gerais. Como não tinha família,
teve que aceitar o convite que o pai do namorado lhe fez: morar com eles, ocupar
o quarto do rapaz na casa e fazer com que a criança que ela carregava no ventre
tivesse os devidos cuidados. O inconveniente era morar com as cunhadas insuportáveis,
feias e encalhadas.

A criança nasceu, era parecida com as tias feias, conforme a mãe desejava. A menina
não era “sua filha”, era a sobrinha das tias, a neta da avó. Ela inexiste. A menina
era chata como as tias, as quais encheram a garota de mimos tornando-a uma menina
malcriada. Mãe e filha não tiveram laços. Eram quase estranhas. A mãe chegou a
desejar mal a filha, queria que ela se parecesse ainda mais com as tias. O que
de fato aconteceu: aos vinte anos, a filha estava gorda, cabelos descuidados,
negra como as tias, esperando um namorado que nunca vinha, mas na mãe isso trouxe
um sentimento contraditório e, por tudo que aconteceu desde o início, nasceu o
arrependimento.

A Sobrinha

História de um abuso sexual de caráter incestuoso do tio em relação à sobrinha.
A garota teve que, por decisão da família, ir morar com um tio, irmão de sua mãe,
o Aniceto, para cuidar da esposa deste, Etelvina, a qual sofrera um derrame e
ficou em total dependência dos outros, nesse caso, da jovem. O tio era um homem
extremamente ensimesmado, falava muito pouco. Dirigia a palavra à sobrinha em
raríssimos momentos e sempre sobre assuntos da casa. A rotina do lugar era sempre
previsível.

A narradora (a sobrinha) afirmou no seu relato que numa das noites seu tio entrou
no quarto, disse para não se assustar e começou a tocá-la no escuro, em seguida,
consumando o ato sexual. Afirmou, outrossim, que aquilo se repetiu algumas vezes
sem que no outro dia, o tio demonstrasse quaisquer sinais ou lembranças do que
acontecera na noite anterior. A situação de abuso terminou por resignar a moça,
que se vendo sem escapatória, inclusive com medo de ser acusada pelos parentes
(em caso de alguém tomar conhecimento) de ter provocado sexualmente o tio. O desfecho
veio subitamente: o tio morreu em frente de casa. A jovem passou a ser curadora
da tia e recebeu pensão do falecido.

Acerto de contas

Abandonado aos sete anos pela mãe, a qual largou do marido para viver com outro
homem, o garoto teve seu destino completamente modificado. O pai, que havia sido
próspero, entrou em depressão devido à traição e definhou em pouco tempo. Depois
disso, o garoto, sem ter parentes do lado materno, teve que ser criado pelos parentes
do pai. Estes, a contragosto, receberam-no e não perderam a oportunidade para
humilhá-lo e vê-lo sempre como um estorvo. A semelhança física do menino
com a mãe aumentava-lhe a quantidade de esconjuros a que era submetido. O menino
cresceu nessa humilhação e com o desejo de vingança contra a mãe e o vaqueiro
com quem ela fugira. Saiu da casa dos parentes por preferir o mundo desconhecido
e perigoso a viver sob o mesmo teto com aqueles que o menosprezavam. Arriscou-se,
tornou-se mendigo, lavador de carro, perseguido da policia, preso várias vezes,
foi usado como mulher para sobreviver. A ele incomodava ser parecido com ela,
isso só lhe trouxera infelicidade: acusações de ter puxado à raça ruim da mãe
e humilhações em ser usado como mulher por causa de seus traços delicados.

O tempo passou e o menino virou rapaz. Com ele, além do desejo de vingança, estava
um embrulho. Nele, um revólver para ser usado na vingança. O rapaz sabia os hábitos
da mãe, onde morava e o que ela e o atual companheiro estavam fazendo para sobreviver:
vendendo e entregando leite. Até que um dia a vingança se consumou: se aproximou
da mãe perguntando se ela se lembrava do marido e do filho que abandonara,
ao mesmo tempo disparando o revólver três vezes contra ela e mais três
contra o amante da mãe. Saiu fugido, desapareceu no meio da feira, e só um pensamento
lhe restara “ela era mesmo bonita”.

O retrato

Narrativa em primeira pessoa de caráter fantástico. Gumercindo se declarava ser
capaz de se comunicar com as pessoas que estavam em fotografias. Teve um primeiro
contato ao folhear um livro de história e ouvir a voz do Marechal Deodoro da Fonseca
pedindo-lhe para ler direito o trecho de sua história e os motivos de sua renúncia.
Nesse instante, sem saber o que fazer nosso narrador fechou o livro. Assim acontecera
com outras pessoas fotografadas. Até que numa de suas conversas, recebeu o convite
de ir conhecer o mundo das fotos. Entrou misteriosamente numa foto de 1917. Lá
continuou a conversar com a mulher que o chamara para ver seu mundo de foto. Ao
terminar o diálogo tentou voltar, mas foi inútil. Não havia escapatória, ficou
preso no mundo da imagem, torcendo para que alguém abrisse o álbum e o visse antes
de que as traças comessem toda a fotografia.

O Parto

Este é mais um dos contos de Vladimir Carvalho trabalhando com o elemento fantástico
da narrativa. O conto começa com uma descrição de ato sexual. Uma moça se entrega
a um homem que é seu grande amor. Contudo, percebe depois do “ato” que tudo não
passou de um sonho, que mesmo vendo evidências de sexo em si, Carlito, seu chefe
na repartição, não passara a noite com ela. Aliás no outro dia mal se falariam
tamanha era a distância entre eles, tudo se limitava às relações de trabalho.
Entretanto, ela se descobriu grávida e não entendeu como isso ocorrera, afinal
não tinha mantido relações com ninguém exceto em seus sonhos, nos quais ela desfrutava
do corpo do homem desejado. Assim como cresceu a curiosidade de vizinhos e amigos
sobre o pai da criança, pai nunca revelado, cresceu também a barriga. Os seios
intumesceram, chegou a hora do parto. Tudo transcorreu bem. Ao acordar no quarto
da maternidade, a moça esperava para ver o filho, saber se é menino ou menina,
saber se é perfeito. Nessa ansiedade não percebeu que chegava ao seu quarto um
ramalhete de flores.

Desesperou-se perguntando a todas as enfermeiras onde estava seu filho, mas ninguém
lhe soube informar. A falta de informações gerou um ataque histérico. Teve que
tomar injeção calmante. Acordando cercada por médico e enfermeiras, perguntou
mais uma vez pelo filho, quando lhe respondem apontando para o ramalhete: “Ei-lo”.

Velhos

O amor de juventude de dois primos, Aurora e Macário, foi barrado pela vida. Ele
morando na capital, ela na cidade do interior. Ela teve que ceder a um casamento
arrumado pelo pai. Viveu infeliz no casamento, teve muitos filhos, mas era para
o marido apenas um recipiente “de seus despejos”. Sonhava com Macário, esse seria
diferente. Mas a vida não era essa, tinha que se resignar. Um dia ela enviuvou,
Macário veio para o enterro, segurou a alça do caixão.

Estava frio, nunca se conformara com o casamento de Aurora. Mas a vida ainda lhe
reservava desencontros, agora que ela era viúva, Macário era um homem casado,
tinha filhos e netos. Mas ele desistiu de seu casamento também infeliz e foi enfrentar
as línguas ferinas indo em busca de Aurora. As pessoas a denigriram: ‘viúva que
desfaz lares’; tiveram preconceito: ’onde já se viu velho namorar?’. Entre essas
pessoas estavam os filhos tanto dela quanto dele. No entanto, eles namoraram como
adolescentes. Apesar de já estarem na casa dos sessenta, voltaram a ser adolescentes.
Realizaram o que o destino lhes havia traçado. Ainda veio uma surpresa: um telefonema
para Aurora lhe trouxe uma fatídica notícia: Macário havia morrido. Com ele também
morreram seus sonhos, seus desejos. Não teve dúvidas, largou o telefone em prantos
e foi para a cadeira fazer crochê. Crochê e lágrimas. Uma filha ouvindo
gritos de choro foi à sala. Disse Aurora: – Cadeira de balanço… crochê… televisão…
estão satisfeitas agora? Estão?…

O Pai

História narrada em terceira pessoa sobre um jovem que decidiu ir embora do povoado
Bom Jardim pertencente ao município de Itabaiana para tentar a vida em São Paulo.
Deixou para trás mãe e pai, os quais ficaram inconformados com a partida dele.
Todavia, o lamento maior vinha do pai que desejava ver o filho trabalhando com
ele no sitio, dizia-se homem não dado a mudanças “não moraria nem em Itabaiana
quanto mais em São Paulo”. O tempo passou e as tristezas e os lamentos do velho
aumentaram ao ponto das pessoas da localidade o evitarem por tanta amargura que
o pai ‘abandonado’ carregava. Notícias do filho chegavam por carta, agora o rapaz
progridia, fazia planos, trabalhava “de terno e gravata”, mandava fotos também
e nelas aparecia em passeios “com roupas diferentes”. Mas só isso, nenhuma ajuda
financeira. O que fez o pai se manifestar ainda com mais ênfase sobre o tal abandono.
O filho nunca voltou, nem quando a mãe morreu. Ocasião em que o pai aproveitou
para fazer uma chantagem emocional na carta escrita pela professora do local “a
culpa da morte da mãe era do filho”. O rapaz lamentou a morte da mãe e prometeu
um dia voltar para rever o lugar de onde viera e “acender um vela na sepultura
da mãe”.

No entanto, o retorno não aconteceu. As cartas foram rareando até cessarem. Por
fim chegou uma carta comunicando a morte do filho em um acidente. Nem isso foi
suficiente para que o pai perdoasse o filho e saísse da amargura; amaldiçoava
a viagem do filho pondo nela todas as culpas: “se ele não tivesse viajado estariam
vivos tanto ele quanto a mãe…” é o que pensava. Amaldiçoou a aposentadoria pingada
do governo e passou a ser ainda mais rejeitado no convívio social – só o dono
do boteco o agüentava, pois “não poderia recusar freguês tão antigo quanto ele”.

Mas uma carta mudou tudo: um comunicado de uma seguradora avisando ao pai da fortuna
que tinha a receber. Nunca mais se lamentou: vendeu o sítio, arrumou noiva e montou
casa em Itabaiana: “ninguém não o ouviu reclamar mais nada do filho”.

Destino

Conto em terceira pessoa sobre a inevitabilidade da morte, embora esse nome não
seja citado no desenrolar da história. Chegando a sua casa, o empregado avisou
‘ela veio à sua procura’, tremeu e em disparada iniciou sua fuga. Correu
desesperado, sem rumo certo, quanto mais longe, melhor. Desembestou-se fugindo
daquela que segundo Manuel Bandeira é a “indesejada das gentes”. Sua correria
o levou a um canto distante. Cansado, parou para descansar à sombra de uma enorme
pedra, respirou aliviado, fechou os olhos, mesmo tendo na alma um restinho de
medo, e ouviu “voz gélida e arrepiante” sussurrar-lhe ao ouvido: “- Estava
à sua espera”.

O Morcego

O morcego do título, na verdade, é uma referência ao protagonista, que estranhamente
possui a capacidade de ‘sugar’ das pessoas seus conhecimentos.

Percebeu isso ao se consultar com um médico, fazer os exames pedidos e retornar
para que o médico verificasse sua situação, contudo o médico parecia pateta, tonto,
abobalhado. Em seguida, o narrador (narrativa em 1ª pessoa) pediu à atendente
que trouxesse outros pacientes, atendeu-os e começou a receitar. Enfim, ocupou
naquele dia o lugar do médico.

Foi processado por exercício ilegal da medicina. Foi a julgamento e em favor da
acusação há muitas provas, laudos expedidos por ele, receitas assinadas etc.

Durante o julgamento foi inquirido pelo juiz sobre cada um dos elementos de sua
acusação, respondeu com segurança a respeito de cada uma das receitas, exibiu
raro conhecimento de medicina. Notou no juiz algumas manchas nas mãos e em outras
partes do corpo, começou uma consulta com o magistrado, o qual repeliu a idéia
de ser atendido pelo protagonista.

Semanas depois voltando ao fórum, encontrou o juiz com a mesma fisionomia abobalhada
do médico. E assim como fizera no consultório, assumiu o lugar do verdadeiro profissional.
No fórum, ele conduziu a audiência, ouviu testemunhas, entre outras coisas. O
mesmo aconteceu com o arquiteto que o protagonista contratara para reformar sua
casa. Então, ele passou a entender o que estava acontecendo. Acumulou dessa forma
as mais diferentes profissões. Decidiu isolar-se, passou a não falar com mais
ninguém a não ser por gestos. Não quer mais causar-lhe problemas de seus ‘resquícios
de morcego’, como ele mesmo chamava.

Reação

Disputa entre escrivão e delegado por causa de menina-moça de interior. A avó
da menina foi à delegacia prestar queixa sobre o furto de umas galinhas
de seu sítio. Lamentou-se por não poder dar uma vida melhor à neta, pois viviam
da venda de ovos na feira para comprarem ‘um tiquinho de carne’.

Acompanhada da neta no distrito policial, a velha chorava. O delegado vendo a
neta, começou desejá-la, chegando a colocar colírio nos olhos, talvez
para vê-la melhor enquanto consolava a velha, dizendo que tudo seria resolvido,
mas seus olhos ‘passeavam’ no corpo da jovenzinha. Ele a desejava. Mas o escrivão
também. Este último venceu a disputa. Logo ganhou a confiança da velha, os beijos
e o corpo da jovem. O delegado, descrito como homem casado, de farta barriga,
larga careca e bacharel em Direito, não admitiu ter perdido a tentadora menina
para um escrivão de interior de pouco estudo. Perseguindo administrativamente
o escrivão fez com que ele desse plantão nos fins de semana na delegacia. Enquanto
ele, o delegado ia ao sítio, para conversar com dona Isidora, avó da menina, querendo
fazer com que ela assinasse um documento denunciando o escrivão por sedução, uma
vez que a menina era menor. No entanto, isso não impediu que ele aproveitasse
a presença no sitio para tentar seduzir a menina, levando-lhe chocolate e outros
presentinhos. Sabendo disso por meio da menina, o escrivão desejou vingança: não
admitia que mexessem com a menina-moça ‘sua’.

Com a idéia fixa de que ‘não buliu com ninguém e estava quieto no seu canto’,
o escrivão trabalhou normalmente. Até que um dia enquanto recebia declarações
de um indiciado, o delegado repetiu o gesto costumeiro, colocou colírio no olho,
berrou, desesperou-se: estava a perder um olho. Depois se soube por um médico
da capital: só solução de bateria causaria tamanho estrago. O escrivão tomou Deus
por testemunha ao relembrar os fatos: – Eu estava quieto no meu canto.

Encontro

Texto pleno de descrições sexuais em caráter metafórico, esse conto possui também
o elemento de desfecho fantástico. Um casal de amantes teve seu primeiro contato
sexual. Ele, homem já casado, experiente, ela, moça virgem, terminaram se apaixonando
e tiveram em seu instante de amor clandestino no motel a celebração dessa paixão
proibida. Esqueceram do mundo exterior e voltaram-se apenas para si mesmos. Desejaram
que aquele tempo não passasse, queriam que o mundo parasse.

Subitamente, pararam eles mesmos, pois “um anjo da boca mole disse amém” e como
traz a história: ”Muito tempo depois, o quarto foi aberto. O dono do motel ainda
hoje não sabe o que fazer com as duas estátuas abraçadas…”

Gato e lagartixa

Em primeira pessoa nos é contada a fuga do personagem protagonista cujo nome
nos é revelado.

Estava no segundo dia de perseguição e se encontrava muito cansado. Seu algoz
não dava trégua, sentia-se uma lagartixa que é vítima de um gato – daí o título
do conto – assim como um gato brinca antes de matar a presa, assim era seu inimigo.
Até que foi atingido por um tiro na coxa ficando imobilizado. Desfaleceu. Ao acordar
viu ao seu lado duas sacolas: uma com comida e outra com material para curativo.
Sem opções, decidiu utilizar o que lhe deixaram. Seguiram-se dias assim: o perseguido
dormindo e quando acordava encontrava comida e material de curativo, até que o
protagonista conseguiu se movimentar e assim reiniciou a perseguição.

Lugar na missa

Narrativa em terceira pessoa que esboça um perfil dos preconceitos sociais em
relação a uma mãe solteira.

Uma jovem criada sob a repressão dos pais decidiu romper com o tradicionalismo,
saiu de casa e foi à cidade com um namorado. Este tendo obtido prazer com a moça,
sumiu ao descobrir a gravidez. A ela, após ser expulsa por falta de pagamento
do hotel não restou nada mais do que retornar ao lugarejo interiorano.

Sem dinheiro, pediu esmola na rodoviária para ter como retornar. Conseguiu. De
volta à casa dos pais, sentiu o peso de suas inconseqüências, devido ao preconceito
vigente na cidadezinha. O pai mal a olhou, a mãe a abraçou e a acolheu. As demais
pessoas ao vê-la, prendiam o olhar à barriga. No entanto, no meio dessas dificuldades,
a maior era ir à missa: havia locais marcados para velhos, homens mais novos,
crianças, mulheres casadas, moças solteiras e mulheres perdidas que, segundo as
convenções locais, era o lugar adequado para a protagonista, uma vez que não era
mais virgem nem casada. O domingo de missa às oito horas foi seu desafio. No caminho
da igreja, indo à frente dos pais, começou a sofrer a rejeição dos que passavam
e ignoravam seu cumprimento.

Num misto de vexame e conflito interior, ela terminou por sentar em um dos bancos
do fundo, lugar destinado “às perdidas”. Sentindo a vergonha de ser objeto das
atenções e rejeição, derramando seguidas lágrimas, de cabeça baixa, sentiu mãos
segurando as suas: seus pais sentaram ao seu lado.

Fonte parcial: Prof. Wagner Lemos, licenciatura em Letras, Universidade Federal de Sergipe (UFS)

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