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Alexandre e outros heróis, de Graciliano Ramos

by Lucas Gomes

Em 1944, compendiando estórias coletadas do folclore alagoano, Graciliano Ramos
entrega ao seu público o livro Histórias de Alexandre, reunindo as
fanfarronices de um típico mentiroso. Esta obra foi reeditada postumamente,
em 1962, com o título Alexandre e outros heróis.

Sendo assim, o livro Alexandre e Outros Heróis na verdade é formado de
três composições distintas:

As histórias de Alexandre, escrita em 1938.

A terra dos meninos pelados, de 1937, que ganhou prêmio de Literatura
Infantil dado pelo governo.

Pequena história da República, datada de 1940.

Embora não concebidos como uma obra inteiriça, os três pequenos livros de que se
compõe este volume não discordam entre si. Alexandre cria pela imaginação um
mundo que o compensa da sua penúria; o Menino, conhecendo um mundo bem mais
ameno que o seu, volta e retoma as obrigações no mundo mesmo onde é hostilizado;
a História da República reflete bem essa luta, no plano da atividade intelectual.
Ao descrevê-la, Graciliano Ramos não inventa, como outro Alexandre, hábil e de
má consciência, heróis e grandezas; comprometido, como o Menino, com a sua Cidade,
fustiga-a e enfrenta-a, perscrutando-a com o olho do seu personagem Alexandre.
Não o olho de inventar maravilhas, mas o olho torto, atravessado, o de ver
claro nas coisas.”

Tem-se nesses relatos, dois níveis bem nítidos e que se opõem com clareza: o nível
real e o sonho, feito de compensações, no qual o real é superado e, por força do
contraste, salientado.

Por trás de Alexandre, locutor das histórias, há o narrador, uma figura cuja
identidade muito se discute, disfarçado na figura do seu personagem.

As descrições de Graciliano Ramos são bastante econômicas, apresentando apenas
o necessário, o essencial para a compreensão exata da personagem.

A presença de uma relação afetiva entre as personagens não é um traço comum da
obra de Graciliano. Nesse aspecto nos parece mais uma relação submissão e
tolerância do que afetiva.

No enredo não tem atualidades, pois a história é fantasia, mas os personagens
são pobres, não têm emprego, vivem à margem da sociedade produtiva, como
acontece com muitas pessoas neste mundo.

O livro traz histórias do folclore nordestino (“Histórias de Alexandre”) e dois
textos de Graciliano Ramos escritos especialmente para as crianças (“A Terra dos
Meninos Pelados” e “Pequena História da República”).

PERSONAGENS

Alexandre

Cesária – mulher de Alexandre.

Libório – cantador de emboladas.

Firmino – cego.

Gaudêncio – curandeiro.

Das Dores – benzedeira de quebranto e afilhada do casal.

ESPAÇO / TEMPO

O espaço é o sertão nordestino (alagoano). E o tempo é indeterminado, pois
percorre várias fases da vida de Alexandre.

NARRAÇÃO

As histórias apresentam um narrador em terceira pessoa, que em todos os contos
cede a voz narrativa a Alexandre, que então passa a contar suas peripécias em
primeira pessoa.

ENREDO

Alexandre é um vaqueiro contador de histórias inverossímeis. Tem sempre em sua
casa uma pequena platéia de amigos e parentes que lhe ouvem os causos fantásticos
supostamente por ele vividos.

É homem de posses miúdas: “uma casa pequena, meia dúzia de vacas no curral, um
chiqueiro de cabra e roça de milho na vazante do rio”. Quanto à mulher, Cesária,
nada possui; ela completa, juntamente com a espingarda de matar passarinhos, os
parcos bens de Alexandre. É ela quem sempre confirma (e remenda) as histórias
contadas por Alexandre.

Libório, um cantador de embolas; Mestre Gaudêncio, um curandeiro; Das Dores,
que exerce o ofício de rezadeira e Firmino, mendigo, cego e preto, formam o
constante e limitado auditório. Todos portanto na orla da mendicância declarada,
flutuando entre a magia e a arte popular sem preço, indivíduos marginais,
inofensivos, não integrados em nenhuma atividade produtiva. Os donos de terra e
de gado, os vaqueiros, os soldados, mesmo os pequenos negociantes ou lavradores,
nenhum ouve os contos de Alexandre. Alexandre apoiado por Cesária, que faz rendas,
artesanato de rentabilidade ínfima, inventa e fala para os inteiramente despojados.

Mesmo antes da apresentação de Alexandre e Cesária, Graciliano Ramos tem o cuidado
de advertir: “As histórias de Alexandre não são originais: pertencem ao folclore
do Nordeste, e é possível que algumas tenham sido escritas.” Ou seja, as histórias
que Alexandre conta só acontecem no âmbito da ficção, por seu caráter inverossímil
e ficcional.

PRIMEIRA AVENTURA DE ALEXANDRE

Neste primeiro conto de Alexandre e outros heróis há a apresentação dos ouvintes:
“Seu Libório, cantador de emboladas, o cego preto Firmino e Mestre Gaudêncio Curandeiro,
que rezava contra mordedura de cobras”. Há também Das Dores, “benzedeira de quebranto
e afilhada do casal”.

Alexandre conta que quando jovem pertencia a uma família que “possuía fortuna grossa”
e certo dia seu pai pediu para que ele procurasse por uma égua pampa que havia se
extraviado. Alexandre se embrenha na mata para procurá-la e acaba por cochilar,
quando acorda já anoitecera e fazia uma “escuridão medonha”. De repente o rapaz
distingue “dois vultos malhados, um grande e um pequeno, junto da cerca do bebedouro”.

Alexandre corre em direção do vulto maior, pensando ser a égua de seu pai, monta
nele, que sai em disparada, passando com velocidade e violência por entre árvores
e espinhos da mata fechada. Quando o rapaz chega em casa e amarra o animal todos
de sua família se espantam: “Vossemecês adivinham o que estava amarrado no
mourão? Uma onça pintada, enorme, da altura de um cavalo. Foi por causa das pintas
brancas que eu, no escuro, tomei aquela desgraçada pela égua pampa.”

O OLHO TORTO DE ALEXANDRE

Este conto é uma espécie de continuação do conto anterior. O cego Firmino (sempre
ele) questiona Alexandre, dizendo que o vaqueiro já havia contado aquela história
anteriormente, mas sem mencionar a moita de espinhos. Alexandre indigna-se com
Firmino, perguntado se ele duvida da história. Firmino diz que não e que só
queria entender melhor o acontecido.

Então Alexandre diz que nunca poderia ter esquecido os espinho, já que eles
foram tão marcantes em sua vida. Então Alexandre começa a contar o que “aconteceu”.

Diz Alexandre que depois do susto de sua família ao vê-lo montado numa onça, o pai
de Alexandre ao olhar o filho, põe as mãos na cabeça e diz com espanto: “Valha-me,
Nossa Senhora. Que foi que lhe aconteceu, Xandu?”. Alexandre estava sem um dos
olhos (o esquerdo) e só então percebeu que estava vendo apenas a metade das coisas
e das pessoas, devido a falta do olho. Então Alexandre volta no caminho que fez
montado na onça e acha seu olho cravado na moita de espinhos. Alexandre limpa-o e
coloca-o na cavidade ocular. Nesse momento o vaqueiro se espanta, pois começa a
enxergar o próprio cérebro por dentro e baixando o olhar via o coração, o fígado
e o intestino, mas tudo isso também pela metade. Então Alexandre percebeu que
havia colocado o olho ao contrário, e com o dedo desvira-o a partir daí sua vista
integral estava restituída, só que Alexandre percebeu que o olho esquerdo estava
enxergando melhor que o direito.

Quando chegou em casa, Alexandre viu no espelho que o olho esquerdo estava torto,
mas decidiu não mexer com ele. “Quando me vi no espelho, depois, é que notei que
o olho estava torto. Valia a pena consertá-lo? Não valia, foi o que eu disse comigo.
Para que bulir no que está quieto? E acreditem vossemecês que este olho atravessado
é melhor que o outro.”

No final, seu Firmino (sempre ele) questiona sobre a onça e Alexandre responde:
“Viveu pouco. Finou-se devagarinho, no chiqueiro das cabras.”

Os olhos possuem uma característica diferenciada, que será revista em “A Terra dos
Meninos Pelados”. Podemos associar a visão crítica de mundo, “olhar torto”,
irregular, desajustado, e exagerando revolucionário. O olhar defeituoso é
curiosamente o esquerdo, talvez uma tendência do próprio autor ao socialismo.

HISTÓRIA DE UM BODE

Mais uma das fantásticas estórias de Alexandre. Alexandre conta que certa vez
na fazenda de seu pai nasceu um bode do tamanho de um cavalo. Alexandre
domou-o, dotou arreios nele e transformou-o num “bom cavalo de fábrica” que
era “muito superior aos cavalos”.

Certa vez, havendo uma vaquejada na fazenda do pai de Alexandre, o vaqueiro
participou de um rodeio montando o bode. No que soltaram uma novilha para ser
laçada, Alexandre, no bode, atirou-se para o lado dela. A novilha deixou todos
os peões para trás, o único a persegui-la de perto foi Alexandre. Correram
muito a rês e o bode montado por Alexandre, até que finalmente o vaqueiro
conseguiu laçá-la, depois da vaca ter caído numa ribanceira e quebrado uma
das pernas.

Alexandre para mostrar a todos que havia conseguido pegar a vaca, mas sem poder
levantá-la, pois a mesma não podia andar devido a fratura na pata, resolveu
mostrar ao pessoal ao menos uns pedaços dela: “Não havia outro jeito, meus
amigos. Puxei a faca de ponta, sangrei a novilha, esfolei-a, tirei um quarto
dela e amarrei-o na garupa do bode.”

Quando estava voltando montado no bode e trazendo a carne e o couro da novilha,
Alexandre sente um peso na traseira do bode, quando olha para trás ele diz que
“Vi uma onça. Uma onça lombo preto, sim senhora, trepada na garupa do bode e já
com o bote armado para me agarrar.” Então diz Alexandre que “puxei o facão
devagarinho, virei-me de supetão e – zás! – no pescoço da onça. Ela caiu no
chão, meio azuretada, eu dei um salto e cortei-lhe a cabeça que foi amarrada
na maçaneta da sela, junto ao couro da novilha. Montei-me de novo e uma hora
depois estava no pátio da fazenda, conversando com os vaqueiros. Cesária pode
confirmar o que eu digo.

– Perfeitamente, Alexandre, exclamou Cesária.”

Antes de a história acabar, o cego Firmino pergunta que fim havia levado o
bode e Alexandre responde: “O bode se finou, como todos os viventes.”

PAPAGAIO FALADOR

Em alguns contos, Alexandre deixa de mostrar aos ouvintes sua superioridade e
trata de outros assuntos com a mesma postura exagerada até então.

É o caso deste, “Um Papagaio Falador”. Nele, a ave possui inteligência pouco
comum para um animal, superior a muitos humanos considerados inteligentes.

Este conto começa com Cesária narrando o casamento dela e de Alexandre. Festa
inesquecível, segundo ela, pois naquela época eram muito ricos.

Lembre-se de que Alexandre, Cesária e seus amigos são paupérrimos, seus sofás,
por exemplo, são de cepas de madeira, mas sempre o casal conta que foram abastados
no passado, o que é mais uma das “estórias” dos dois.

Após contar sobre o casamento, Cesária pede para Alexandre contar a história
do papagaio falador. O vaqueiro então conta que indo vender gado na cidade,
passou por uma casa para pedir água. Conversou com alguém que estava dentro
mas não aparecia. Depois de um bom papo, Alexandre pede um copo d’água mas a
voz diz não poder lhe dar pois estava amarrado. Alexandre espanta-se e nisso
aparece a dona da casa dizendo que o vaqueiro estava conversando com um papagaio.
Alexandre ficou impressionado com a inteligência do animal e resolveu levá-lo
para Cesária, que havia pedido um papagaio a Alexandre quando ele tinha partido.

Alexandre compra o bicho por 554 mil e 700 réis. (Perceba que em outros contos
Alexandre lembrará desse papagaio e cada vez que menciona essa compra o vaqueiro
dá um valor diferente – 625 mil e 300 réis no conto “História de uma bota”, por
exemplo.)

Para levar o papagaio para casa, Alexandre põe a ave numa sacola, na qual faz
alguns buracos para que o bicho respirasse. A viagem de volta dura muito tempo
e quando o vaqueiro chega em casa, Cesária abre todos os presentes que Alexandre
lhe trouxera e pergunta o que havia naquela sacola com buracos. Só então
Alexandre percebe que havia esquecido o papagaio ali dentro durante toda a
viagem. Quando Alexandre abre a sacola, o papagaio diz: “Sim senhor, seu major,
isto não é coisa que se faça.” Amunhecou e morreu.

ESTRIBO DE PRATA

No “Estribo de Prata”, Alexandre também deixa sua superioridade de lado para
falar sobre um estribo que o protege de uma picada de cobra.

Alexandre conta que numa de suas viagens fora picado por uma cobra, mas o bote
pegara não na sua perna, mas no estribo (lugar onde se põe o pé) da sua sela.

Após o retorno e depois de alguns dias de descanso da viagem, Alexandre pede
para encilharem seu cavalo. Tempos depois o capataz volta dizendo não conseguir
levantar a sela tão pesada ela estava. O vaqueiro vai verificar e percebe que o
estribo que fora alvejado pela cobra e que era de prata estava inchado e diz
aos seus ouvintes: “Um mês depois, com a força da lua, o estribo inchava, como
incham todas as mordeduras de cobras. Era por isso que ele estava tão crescido e
tão pesado. Mandei chamar um mestre na rua e, com martelo e escopro, retiramos
cinco arrobas de prata, antes que o metal desinchasse. Isto se repetiu durante
alguns anos: todos os meses o estribo inchava, inchava, e, conforme a força da
lua, eu tirava dele três, quatro, cinco arrobas de prata.”

E após o espanto do curandeiro Gaudêncio, do cantador Libório e da afilhada
das Dores, o cego Firmino pergunta:

“- E o estribo, seu Alexandre? O senhor ainda tem essa estribo?

– Não seu Firmino, respondeu o dono da casa. Com o tempo ele deixou de inchar
e tornou-se um estribo comum. Julgo que o veneno perdeu a valia. Natural, não
é verdade?”

MARQUESÃO DE JAQUEIRA

Em “Marquesão de Jaqueira”, o móvel citado no título, uma espécie de mesa com
cadeira acoplada, havia se transformado em quatro jaqueiras.

Alexandre conta sempre para o mesmo grupo (Das Dores, Gaudêncio, Libório, Firmino)
além de sua mulher Cesária, a história do Marquesão.

Diz o vaqueiro que comprara uma casa na cidade e mobiliara com o que havia
de mais caro na época. Na sala colocara um Marquesão de jaqueira (móvel feito
com madeira da árvore que dá jaca).

Depois disso Cesária adoece e o casal volta para a fazenda ficando muitos
anos sem aparecer na casa da cidade.

Após conseguir curar sua esposa gastando quase toda a sua “fortuna” e
recuperando-a mais tarde, Alexandre vai visitar sua casa na cidade. Quando
entra na casa vê que as quatro pernas do marquesão haviam se transformado em
quatro jaqueiras enormes, cheias de flores e frutos, muito maduros e cheirosos.

Alexandre conta que tal história foi publicada num livro por um homem de muita
sabedoria e respeito, um tal de doutor Silva. Mas Alexandre não gostou da
história que o doutor publicou porque, segundo Alexandre, nela havia muitos
“exageros”. E Alexandre não gostava de invenções, apenas da “verdade”.

A SAFRA DOS TATUS

Alexandre diz que certa vez em sua fazenda plantara 30 mil pés de mandioca
para fazer farinha, mas não conseguiu colher uma mandioca sequer. Não colher
mandioca mas colheu outra coisa.

O vaqueiro conta que a plantação depois de um tempo de progresso começou a
amarelar e perder-se por completo.

Após ficar um tempo desconsolado e pensando no que havia acontecido, Alexandre
resolve arrancar uma mandioca e descobre “uma raiz enorme e pesada que se pôs
a bulir. A bulir, sim senhor. Meti-lhe o facão. Estava oca, só tinha casca.
E, por baixo da casca, um tatu-bola enrolado.” Os tatus comiam a mandioca e
ficavam presos nas raízes. Ele continua: “Apanhei uns quarenta milheiros de
tatus, porque nos pés de mandioca fornidos moravam as vezes casais, e nos que
tinham muitas raízes acomodavam-se famílias inteiras.”

Alexandre conta que ganhou muito dinheiro vendendo a carne dos tatus e explica
o fenômeno desta maneira: “Certamente um tatu daquelas bandas cavou passagem
para a beira do açude, topou uma raiz de mandioca e resolveu estabelecer-se
nela. Explorou os arredores, viu outras raízes, voltou, avisou os amigos e
parentes, que se mudaram.”

HISTÓRIA DE UMA BOTA

Em “História de uma Bota”, Alexandre assusta seus ouvintes ao contar que, numa
noite bem escura, confundiu uma cobra com sua bota, acabando por calçá-la, sem
perceber a diferença.

Alexandre recebe a visita dos amigos Gaudêncio (curandeiro), Libório (cantador)
e Firmino (cego) e conta a história da bota, tendo ainda a audiência de Das
Dores, sua afilhada, e Cesária, sua esposa. A história é simples, mas como sempre
incrível, inacreditável, fantástica ou simplesmente mentirosa.

O vaqueiro diz que numa de suas viagens com seus empregados, Alexandre, muito
cansado, resolveu parar na mata para dormirem. A noite havia caído e a falta
de luar a deixava escura e assustadora. Alexandre dorme e ainda de madrugada
acorda e resolve seguir viagem.

Chama seus companheiros e ainda sonolento calça uma bota, só que quando vai
calçar a segunda, o vaqueiro percebe que a bota passara pela sua perna,
passara pelo joelho e já estava tomando sua coxa. Alexandre então grita para
trazerem iluminação e percebe que “uma jibóia tinha-se enrodilhado junto
da fogueira. Percebem? Calcei bem a primeira bota mas quando ia calçar a
segunda, agarrei a bicha nas queixadas e enfie-lhe a perna pela boca adentro.”

UM MISSIONÁRIO

Mais uma história de papagaio. Alexandre conta que depois da morte do primeiro,
Cesária continuava a querer um papagaio. Então Alexandre achou um papagaio na cidade
que ficava perto de um tribunal e sabia não só falar como também defender processos.

Alexandre compra o papagaio que vai a contra-gosto para a fazenda. Quando chega
vai logo destratando a mulher do fazendeiro.

“- Está aqui, Cesária, recomendei. Trate bem este vivente, como se ele fosse
cristão. Você nem avalia o que esta coisinha tem no interior. Cesária experimentou:
– Papagaio real. Vem de Portugal. Currupaco, papaco. Dê cá um beijo. Como vai meu
louro? – Mal, muito obrigado, respondeu o animal furioso. Isso não é terra de
gente.”

Tempos depois, Cesária com pena do bicho, liberta-o e ele some. Passado algum
tempo Alexandre encontra um papagaio ensinando orações e rezando o terço com
outros papagaios. Alexandre acreditava ser o papagaio sumido: “O papagaio
tinha escutado o sermão, foi o que eu pensei, e queria mostrar o caminho
do céu à parentela”.

UMA CANOA FURADA

Alexandre conta que certa vez pegou uma canoa de aluguel para atravessar
o Rio São Francisco, que segundo ele é o maior rio do mundo e que “não se
sabe onde começa,nem onde acaba, mas, na opinião dos entendidos, tem umas
cem léguas de comprimento. Quer dizer que, se em vez de correr por cima da
terra, ele corresse para os ares, apagava o sol, não é verdade, mestre
Gaudêncio?”

Acontece que na passagem a canoa fura e começa a afundar. O canoeiro é um
mal educado e os passageiros estão desesperados. Alexandre promete que se
sobreviverem ele dará uma lição no dono da embarcação.

No meio da confusão Alexandre tem uma “idéia genial”, como os passageiros
não conseguiam esgotar a água que entrava na canoa, Alexandre vai ao lado
oposto do furo, pega seu martelo e formão e faz um outro rombo na embarcação.
Todos pensam que o vaqueiro está louco, mas em poucos minutos a canoa está
seca, pois segundo Alexandre “a água entrava por um buraco e saía por outro.
Compreenderam? Uma coisa muito simples.”

Após cruzarem o rio, sãos e salvos, Alexandre conta: “Aí chamei de parte
o canoeiro, sem raiva, e dei-lhe meia dúzia de trompaços, que o prometido
é devido.”

Neste conto apresenta-se mais uma vez a superioridade do personagem principal,
em que, num momento de grande perigo, com a canoa em que estava no meio do rio
a afundar, teve uma idéia brilhante: fez “um rombo no casco da canoa. (…)
Imaginem o que sucedeu? A embarcação se esvaziou em poucos minutos. A água
entrava por um buraco e saía pelo outro. Compreenderam? Uma coisa muito
simples.”

HISTÓRIA DE UMA GUARIBA

Alexandre, certa feita, fora caçar. Como não havia caça resolveu dormir.
Tirou o gibão (casaco); o chapéu e o aió (bolsa de caça) e deitou-se. A noite
caiu e a escuridão ficou medonha, tanto que o vaqueiro não achava suas coisas.
Alexandre então pensou: “Aqui há mandinga, na certa. Das coisas deste mundo
nunca tive medo, com os poderes de Deus, mas em negócios de feitiçaria não
entro. Fujo e entrego os pontos. Deve andar na vadiação pelo menos meia dúzia
de guaribas. Fiz o pelo-sinal, rezei o credo, agarrei-me à Virgem Maria e
dispus-me a entrar em casa.”

Só que Alexandre se perde na escuridão e fica mais preocupado, até que depois
de muito andar, ele vê numa árvore uma guariba (macaco barbado) vestida com as
roupas de Alexandre e fumando seu cachimbo.

Alexandre pega sua espingarda, mira, mas antes de atirar ouve o macaco dizer:
“‘Seu Alexandre, vamos fazer um negócio? Vá criar seus filhos, que eu vou
criar os meus.’ Atirou-me lá de cima o cachimbo, o aió, o gibão, o guarda-peito
e o chapéu. Aceitei a proposta e deixei que a desgraçada fosse embora em paz”.

A ESPINGARDA DE ALEXANDRE

Talvez seja esta a mais deliciosa das estórias de Alexandre. Aqui Cesária
desenvolve um papel que sempre exercerá: o de confirmar e muitas vezes emendar
os causos do marido.

Alexandre diz que sua espingarda fora presente de seu irmão tenente da polícia.
A espingarda era velha e enferrujada, mas o vaqueiro diz ser uma beleza.

Alexandre então diz que matou duas araras com um só disparo, pois segundo ele
sua espingarda juntava o chumbo ao invés de espalhá-lo em estilhaços como
geralmente ocorre. Por essa característica o vaqueiro conseguiu matar as duas
araras que voavam uma mais alto que a outra, mas no mesmo ponto de mira.

Muito bem, Alexandre continuava falando sobre a espingarda dizendo que o alcance
da mesma era de umas 18 léguas, pois certa vez o vaqueiro vira um veado a tal
distância e acertara o animal. Quando Alexandre foi ver o bicho havia chumbo
na cabeça e no pé direito de veado. Seu Firmino se espanta e pergunta como
aquilo podia acontecer se a espingarda juntava o chumbo como Alexandre dissera
e ele só dera um tiro, como havia estilhaços na cabeça e na perna? Alexandre
fica meio sem ação, fica bravo, pergunta se Firmino duvida da sua palavra.
Firmino diz que não e só queria a explicação do fato. Quem salva Alexandre é
Cesária, dizendo: “E pergunta muito bem, gritou Cesária, salvando o marido.
Seu Firmino gosta de explicações. Está certo, cada qual como Deus o fez.
Quer saber porque o chumbo se espalhou? Não se espalhou não, seu Firmino: o
veado estava coçando a orelha com o pé”.

MOQUECA

Alexandre conta que tinha uma cachorra chamada Moqueca, animal de inteligência
fenomenal. Alexandre diz que a cachorra fazia compras na cidade sozinha… Mas
sua especialidade era a caça.

Certo dia Alexandre saiu para caçar com a cachorra Moqueca que estava prenha.
Depois de se perderem por um tempo, o vaqueiro reencontra sua cachorra lutando
ao longe com um porco-espinho, ao redor do porco havia algumas “coisinhas” que
pela distância, Alexandre não podia identificar.

Então o vaqueiro pegou sua espingarda, mirou e acerto o porco brabo. Quando
chegou perto viu realmente o que acontecia: o porco havia matado e estripado a
Moqueca, mas os seus filhotes lutavam bravamente contra o bicho que havia matado
sua mãe. Só havia uma coisa que Alexandre não entendia.

Todos os cachorrinhos latiam, mas um fazia um som diferente, sabem o que
aconteceu? Alexandre conta: “mas um diferia dos outros, fazia Hom! Hom! Hom!,
muito rouco e muito fanhoso. Pobre da Moqueca. Um fim tão triste! Fui
examinar os cachorrinhos, sabem porque um gorgolejava daquele jeito. Sabem o
que havia acontecido? No momento de estripar a mãe o porco tinha cortado o
pescoço dele. E o infeliz, sem cabeça, queria proceder como os irmãos. Coitado.
Finou-se ali, com poucos minutos de vida, roncando em cima da obrigação. Quem
é bom já nasce feito, não é verdade?”

Seu Firmino pergunta o que aconteceu com os filhotes e o vaqueiro diz:
“Andaram por aí uns tempos, mas desapareceram, acabaram-se. O que tem
valia não dura, seu Firmino.”

A DOENÇA DE ALEXANDRE

Alexandre conta aos seus amigos, ainda na cama, que na véspera pegara uma
febre e tivera um delírio. Esse delírio apresenta uma espécie de resumo de
todas as histórias contadas pelo vaqueiro.

Tomado pela febre, Alexandre cavalga em bodes e onças, tem seu olho fincado
num espinho, conversa com papagaios, etc… Ao fim do suador, Alexandre
revela aos seus fiéis interlocutores que a casa estava alagada pelo seu suor.
“O suor tinha enchido a casa, fazia um barulho feio no corredor, saía pelos
fundos e entrava no barreiro. Entendem? Horrível, meus amigos.”

No conto, “A Doença de Alexandre”, apresenta-se o máximo da superioridade do
protagonista quando, ao tomar um remédio para curar uma doença, seu suor é tanto
que enche a casa e invade o mundo. Ou seja, a doença de Alexandre, além de tentar
derrubá-lo, quer destruir o mundo!

A TERRA DOS MENINOS PELADOS

Diferentemente das histórias de Alexandre, aqui o menino pelado (Raimundo) é apenas
uma personagem que não interfere na narração, como Alexandre que sempre assume a
voz narrativa em primeira pessoa. Sendo esta uma história com narrador em terceira
pessoa, a linguagem é mais neutra e em conformidade com o padrão culto da língua.
Ao contrário das estórias de Alexandre sempre marcadas pelo falar regional nordestino.

A semelhança entre as histórias de Alexandre e a Terra dos Meninos Pelados é que
ambos os personagens (Raimundo e Alexandre – e sua família) estão à margem da
sociedade. Alexandre e os seus por causa da pobreza e Raimundo por causa da sua
aparência.

Outra diferença entre as histórias é que “A Terra dos Meninos Pelados” é um conto
feito para crianças, numa narrativa mágica em que o lugar onde se passa a narrativa
é impreciso. A cidade onde vive o menino (Cambacará) e a terra pra onde ele vai
(Tatipirun) são lugares imaginários. Há que se lembrar também que não referências
temporais explicitas nesta narrativa.

O conto narra a história de Raimundo, “um menino diferente dos outros: tinha o olho direito
preto, o esquerdo azul e a cabeça pelada”. Por ser diferente, era humilhado pelas
crianças. Vivia sozinho.

Raimundo sofria preconceito e discriminação doa colegas, que gozavam de sua aparência,
gritando sempre:

– Ó, pelado!

O menino sofria com esse tratamento, mas acabara se acostumando com a situação,
chegando até assinar nos muros da cidade com carvão: Doutor Raimundo Pelado.

Certo dia, o menino atravessou seu quintal, chegou ao morro e começou a perceber
que entrara numa terra estranha, a terra de Tatiripun. Neste lugar encantado,
Raimundo encontrou uma ladeira que ficava plana para ele passar e depois voltava
ao normal, encontrou também um carro que conversou com ele, dizendo que naquela
terra os carros não atropelavam ninguém, mas pulavam por cima das pessoas para
não as machucar.

Raimundo conversou também com uma laranjeira que não tinha espinhos e que se
abaixou para lhe dar uma laranja grande e madura. Raimundo continuou a caminhada
e encontrou um lugar chamado Serra do Taquaritu, onde havia cigarras sobre discos
de vitrola enormes, que giravam soltos no ar e que tocavam músicas estranhas.
Havia também aranhas vermelhas que teciam túnicas de seda de várias cores.

Depois disso, o menino pelado chega ao Rio das Sete Cabeças, que se abria para
as pessoas passarem e que era onde se reuniam os meninos pelados. Todos iguais
a Raimundo, sem cabelos e com os olhos de duas cores. Todos estavam descalços
e vestiam apenas túnicas.

Após um pequeno desentendimento com os meninos, Raimundo ganha uma túnica vermelha
e volta para falar com eles. Os meninos pelados disseram que não estavam gozando
de Raimundo, como ele a princípio pensara.

Então Raimundo começa uma amizade com as crianças de Tatiripun. O menino conhece
Pirenco, Talima (uma menina que muda o nome de Raimundo para Pirundo), conhece
também Sira, um anão, Fringo, e com eles sai para procurar a princesa Caralampia,
que estava desaparecida.

Depois de um tempo, conseguem encontrá-la. Caralampia era uma mAenina “vestida
numa túnica azulada cor das nuvens do céu, coroada de rosas, um broche de vagalume
no peito e pulseiras de cobra coral”.

Depois de muito brincar e conversar com seus amigos, Raimundo decide voltar para
sua terra, dizendo ter lição de Geografia para estudar. Na despedida emocionada,
Raimundo diz:

Adeus, meus amigos. Lembrem-se de mim… Fiquei gostando de vocês todos. Talvez
eu não volte. Vou ensinar o caminho aos outros, falarei em tudo isto… Vou
ensinar o caminho de Tatiripun aos meninos da minha terra, mas talvez eu
mesmo me perca e não acerte mais o caminho. Não tornarei a ver a serra que se
abaixa o rio que se fecha para a gente passar, as árvores que oferecem frutos
aos meninos, as aranhas vermelhas que tecem essas túnicas bonitas. Não voltarei.
Mas pensarei em vocês todos, no Pirenco e no Fringo, no anãozinho e no sardento,
na Sira, na Talima, na Caralampia… Longe daqui, fecharei os olhos e verei a
coroa de rosas na cabeça de Caralampia, o broche de vaga-lume, as pulseiras de
cobra coral. Adeus, meus amigos.

O menino então segue para casa e “agora Raimundo estava no morro conhecido perto
da casa. Foi-se chegando muito devagar. Atravessou o quintal, atravessou o jardim
e pisou na calçada.

As cigarras chiavam entre as folhas das árvores e as crianças que embirravam com
ele brincavam na rua.”

Nessa versão às avessas de O Patinho Feio (Hans C. Andersen), Graciliano
baseia-se no mundo infantil, onde as crianças fogem do real por meio de brincadeiras
e muita imaginação, mas precisam retornar ao universo duro e cruel dos adultos.
Observe que a situação de vida de Raimundo é tão massacrante que o torna submisso
à opressão de seu meio, o que o faz voltar para casa e abandonar seu mundo de
sonhos.

PEQUENA HISTÓRIA DA REPÚBLICA

No último escrito, “Pequena História da República”, Graciliano relata, com uma
linguagem simples, ágil e extremamente crítica, os primeiros anos da República
brasileira. Narra, como se estivesse falando para crianças, os acontecimentos
principais deste período.

Trata-se de um resumo pessoal, irônico e, por vezes, sarcástico, da história
do Brasil entre os anos de 1889 (a proclamação da República) até 1930 (ascensão
de Vargas ao poder). Quando foi escrito este texto (1940) havia um concurso
literário organizado pela revista Diretrizes para a escrita de uma história da
República para crianças.

Graciliano Ramos, na sua História da República, não o move qualquer compromisso
ou preocupação de enobrecer os fatos evocados. Sua visão é exata, fiel,
desencantada e talvez mesmo cáustica.

Em “Pequena História da República”, ao falar sobre a abrupta abolição da
escravatura, Graciliano diz, comentando as decisões tomadas sem planejamento
ou desacompanhadas do necessário apoio estratégico: “A alegria tumultuosa dos
negros foi substituída por uma vaga inquietação. Escravos, tinham a certeza de
que não lhes faltaria um pedaço de bacalhau, uma esteira na senzala (…);
livres, necessitavam prover-se dessas coisas – e não se achavam aptos para
obtê-las”
.

Numa outra passagem o destino da “negra velha” é selado: “A negra velha se retirou
definitivamente, o coração grosso, o estômago roído. Entre os numerosos filhos dela,
tipos de várias cores, havia na verdade um alvacento que se casou com moça branca
e gerou um sarará que se fez doutor e ganhou dinheiro. Mas isso foi muito mais
tarde. Naquele momento a preta velha se achou pequena e sozinha, triste. Acoitou-se
num mocambo e morreu de fome”
.

Percebemos que Graciliano tem uma postura menos objetiva da História, já que,
muitas, manifesta sua opinião sobre diversos personagens presentes nesse período
histórico. É um momento menor da obra, pois que ofuscando pelas duas primeiras
partes.

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