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Amar-te a ti nem sei se com carícias, de Wilson Bueno

by Lucas Gomes

Amar-te a ti nem Sei se com Carícias

, de Wilson Bueno, poeta e ficcionista paranaense, à primeira
vista, parece um romance bem-comportado, que trata do Brasil do século 19. O título, revela um decassílabo,
o verso de dez sílabas de que se faz um soneto. Mas o livro encerra várias camadas de denúncia e de
provocação.

A obra também pressupõe uma investigação lingüística, mas, agora, direcionada ao português de nossos
ancestrais oitocentistas, brasileiros e lusitanos.

Em um texto rebuscado, caracterizado por metáforas sumarentas e por alusões a clássicos refinadas,
adentra-se numa cidade que ainda tinha Imperador, com as indefectíveis fofocas palacianas e que conhece,
então, as saudades dos faustos do Império. Conhece-se também uma cidade marcada por posturas conservadoras
que não sabe conviver, por exemplo, com a situação de tornar libertos os escravos.

Amar-te a ti nem sei se com carícias é redigido à moda de Memorial, onde o Conselheiro evoca a
esposa falecida, divide as saudades com a irmã que lhe faz companhia, convive com as ameaças de cólera na
cidade e tenta se acostumar com novidades como as maravilhas da eletricidade, abandonando-se na nostalgia
dos lampiões a gás.

O texto, marcado por uma retórica bacharelesca e por alfinetadas irônicas e com recriações de ambiências,
às vezes, burlescas, exige uma leitura que merece ser sorvida com vagar e, como disse alguém, apreciado
como um vinho produzido de cepas raras e de cuidadosa colheita, pois o mote é Amar-te a ti nem sei se
com carícias
.

Leocádio Prata, o protagonista, é educado, culto, sedutor, mas também escravista, pernóstico, reacionário.
Segundo Bueno, o personagem representa o século 19 brasileiro, “contraditório, cruel e alguma vez bestial”,
que “não terminou, a rigor”.

Supostamente escrito por Leocádio Prata, o caderno de notas manuscritas encontrado num palacete prestes a
ser demolido, no bairro do Botafogo, pode ter sido adulterado, digamos, por Licurgo Pontes, rival do
protagonista.

Há um triângulo amoroso, à Machado, entre Leocádio, Licurgo e Lavínia. Mas, em vez do ciúme do primeiro
pela última, o que entrevemos é um desejo recolhido desse “mimoso e mimado” representante da elite nacional
(Leocádio), cujo avô negociava escravos e o pai transacionava “uns negócios obscuros” na corte, pelo jovem
oficial, recém-chegado da Guerra do Paraguai (Licurgo).

O romance apresenta muitos pontos de contato, tanto de conteúdo quanto de forma, com a obra machadiana,
mas sempre numa visada subversiva. E o leitor pode divertir-se à procura dos possíveis paralelos.
A borboleta negra de “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, por exemplo, vira uma aranha cinza, de “olhar
inominável”, com as devidas transformações de sentido que a troca acarreta.

Narrativa confusa desde o início, porque o autor propositadamente mistura os dois tipos de narrativa que
existem (primeira e terceira pessoas), deixando uma história que já se mostrava confusa, adquirir um tom
cada vez mais desencontrado.

Na verdade o termo desencontrado parece ser o mais apropriado para um romance construído, segundo o autor,
baseado em relatos verdadeiros depositados em um caderno, com título do qual seu livro é homônimo.

O leitor se depara com uma história sem a pretensão de obedecer aos parâmetros cronológicos e temporais,
já que os capítulos do livro não seguem um padrão normal de sucessão de acontecimentos, permitindo certo
embaralhamento de informações. O leitor menos atento deixa passar despercebido detalhes importantes da
obra.

Nota-se também que Wilson Bueno procura recriar, mesmo que de forma branda e quase que imperceptível,
personagens (incluindo o comportamento) e situações que foram colocados em outras obras.

É o caso do principal enfoque da obra: a desconfiança que Leocádio tinha de Lavínia, sua esposa, entendendo
que a mesma tem um caso extraconjungal com Licurgo. Isso tudo não lembra um certo Bentinho, uma certa
Capitu e um certo Escobar de um certo livro chamado D. Casmurro?

Também se nota na narrativa a intenção do autor de homenagear(mesmo que de forma esdrúxula e espalhafatosa)
figuras da Literatura, como Lorde Byron, ícone do Romantismo inglês e fonte de inspiração para muitos
escritores brasileiros, através da figura de Góes Alencastro.

Suas investidas ainda compuseram um pai super-autoritário, cujos filhos resolvem se casar para poder
escapar da figura paterna (um pouco de Lavoura Arcaica?).

A obra modernista ainda cita os parnasianos e trechos machadianos ao longo dela. Outro ponto a destacar: a
colocação de vários termos em inglês ou francês.

Interessante ressaltar que apesar da obsessão de Leocádio em saber se a esposa o traiu ou não, a morte de
Lavínia, que o choca e o joga em uma vida boêmia, promíscua e errônea, não é abordada com a profundidade
merecida, muito provavelmente em função do estilo que o autor escolheu para contar sua história.

Qualquer outra movimentação do protagonista se dá sem qualquer embaraço ao longo da história, com ou sem a
participação dos personagens secundários.

O final do livro também soa de forma estranha: Leocádio está no quarto de hotel (Majestic) quando lê uma
notícia, que segundo ele ocasionaria na Primeira Grande Guerra; o que de fato acontece em seguida.

Enfim, a obra é uma sucessão de acontecimentos que não traduzem uma ligação entre si, dando a impressão que
o livro começa ou termina em qualquer estágio da história, sem temática aprofundada, sem iniciativa,
desprovido de fundamentação, além de dar mostras de insensatez em sua Miscelânea Literária.

Trechos da obra: Prólogo e Capítulo inicial

À MANEIRA DE PRÓLOGO

Na recente demolição de aristocrática casa no bairro de Botafogo, no Rio de Janeiro, os manuscritos deste
Amar-te a ti nem sei se com carícias (note-se – um decassílabo perfeito…), protegido por uma capa de
couro, gravada com as entrelaçadas iniciais L.P., que faz supor seja o monograma de Leocádio Prata, mas
também o de Lavínia Prata ou mesmo, cruel coincidência, não se descarte, o de Licurgo Pontes, vieram dar
às mãos deste vosso escriba, conhecido cultor de prosa antiga.

O manuscrito, – novo e intrigante dado -, pela caprichosa caligrafia e higiene geral do texto, leva a crer
seja uma cópia do verdadeiro original. Contudo, em nenhum momento de suas exatas 200 folhas, ostenta a
indicação de autoria. Depreende-se, pela leitura, pertença a Leocádio José de Azeredo Prata Filho, o L.P.
das iniciais gravadas à guarda de couro, mas não vai aí nenhuma certeza e nem há como provar, sob qualquer
hipótese, constitua mesmo produto de sua pena ou engenho. Quem, em sã consciência, poderia desprezar a
possibilidade de que tudo não passe de mais um ardil do cínico Licurgo Pontes, fraudando à posteridade as
confidências de um seu caríssimo desafeto? A epígrafe machadiana, no livro desde o começo, parece dizer
mais do que simplesmente comunica.

Isto posto, não hesitei em oferecê-lo ao primeiro editor, não sem antes proceder a uma reescritura em
diagonal do texto. Miúdas emendas, um que outro detalhe de somenos importância. Dono de estilo correto
ainda que preciosista, um maneirismo de época, consideramos quase um dever ético dar a público a uma
legítima voz do século XIX brasileiro. Para que lance, quem sabe, alguma luz sobre o desde já tumultuário
início deste nosso terceiro milênio.

Agradeço à colaboração da família Souza Mello de Miranda, proprietária, em terceira ou quarta mão, do
palacete recém desaparecido da bucólica rua Dona Mariana, a quem devemos, a rigor, a posse do manuscrito,
e, por extensão, sua publicidade.

Em vão buscou-se algum descendente de Azeredo Prata. Não o enconrando em nenhum logar, houvemos por bem
tornar suas reflexões, mais que públicas, notórias; e, bem mais ainda, notáveis, pelo que esbanjam em gozo
literário insubstituível.

W.B.

GENTES D’ANTANHO

Eglaê Medeiros e Vaz, aonde você? Aonde você, Aparícia, de mimosos olhos azuis contrastando a tez
porcelana, alheia ao sol e aos desejos dos homens, um sol em si de rara cornucópia? E tu, bazófio Goes
Alencastro Guimarães, produto feliz do casamento entre sciencia e arte, e de todos quantos existiram um
dia, o nosso melhor e mais afoito habitante da “ilha excelsa da poesia”, como o classificava o também
saudoso Ascenso Motta, poeta decadentista? Aonde você, bazófio, e suas farfalhices hibernais? Cadê você,
seus sonetos e suas botânicas? Mal o primeiro frio que nem frio era, só um frescor de entardecer e já os
extravagantes capotes? Nesta cidade do Rio? Que de ocultações, meu nunca esquecido Goes? A alma não há
quem a guarde consigo para sempre. Que de solução esconder-se atrás do capote ou da capa byroniana? Nada
encobre o medo de viver e se o tinha à muita não seriam lá os panos que o preservariam do que na vida é
exposição e vigília. Se nada mais fica, ficou-lhe a completa catalogação de uma espécie rara de flor –
Eburnea fustigata brasiliense e, claro, a sonetaria luxuriante, os caprichosos quartetos e tercetos, os
imprevistos fechos d’ouro, o spleen, os poemas feridos de amor e morte, oh vate oscilante sempre entre a
nevrose e a doudice mais douda.

As recordações são bastantes e igual a saudade de Capistrano. Ah, Dr. Capistrano Souza, especialista em
moléstias epidêmicas, pioneiro na especialidade cá neste burgo de São Sebastião… O saber scientifico não
logrou livrá-lo de nossa crua impermanência. Há esta superstição esquiza que nos faz supor um médico ao
largo das insídias da indesejada das gentes, como bem a classificou o admirável Machado. Nem sciencias nem
filosofias, nada nos defende do certo fim.

O Dr. Capistrano, ao menos uma vez, revelou-nos, ardente, na roda vespertina do Café Leme, no Largo do
Machado, que inda alcançava o Bromelius Citricus, a panacéia quase alquímica que promete aos humanos viver
para além dos cem. Que um homem da rua, de baixo estrato, venha a crer em semelhante parvoíce, é o certo,
mas que o Dr. Capistrano, scientista e homem versado em humanidades, o creia, causa espanto. Toleremos –
quem não há de apostar em qualquer cousa, desde que esta mantenha em si a ilusão de nossa imortalidade? O
Bromelius, nos explicava, cheio de dedos, entre um croissant e outro, pego com as finas mãos e levado à
boca a movimentos medidos, explicava-nos a nós o Capistrano, há de livrar a Humanidade de tantas e tão
várias enfermidades, justo as que mais matam, tardia ou precocemente, que não será impossível levar alguém
adeante dos 120…

Pobre Capistrano que foi-se dessa depois de uma gripe fortíssima complicada em pneumonia, com menos de
quarenta. Levou consigo os sonhos vãos do Bromelius Cítricus e outros sonhos que não convém expor aqui
neste caderno de notas, reflexões de um velhusco que já se entende com a Morte feito ela fosse uma
lamentosa vizinha, e que se avém com a escrita movido quiçá por outra utopia, talvez mais vã e mais
debalde – a utopia de aprisionar não o futuro, mas o passado que já se nos fugiu como um doudo foge nos
dramas musicados do Varella, pontuais pelas sextas-feiras nos teatros da cidade.

E você, amigo velho, compadre depois, antes colega das noites pândegas do Largo de São Francisco, você,
meu bom Vaz? Aonde você, Américo Coutinho Vaz que tão cedo nos trocou pelas leis que regem o silêncio dos
campos santos? Tinhas um brilhante futuro no Cível mas quis o destino poupá-lo das leis cá dos homens para
em troca oferecer-vos as jurisprudências do céu.

Ah, meu bom Américo Vaz – vale a pena ser aqui, nesta noite do Majestic, tão e só o sobrevivente? Que de
solidão mais látego! Daqui desta secretária postada à janela do 302 deste hotel debruçado sobre o morro de
Santa Tereza, ao longe vislumbro a cidade esparramando-se, o casario do centro, e um pedaço do porto. Vez
em vez um vento insistente mexe-me os papéis sobre a mesa e se apuro ouvidos capaz ouça os roncos infames
do Villaça que cedo dorme e cedo acorda para tornar a dormir, larga parte da manhã, nas chaises longues da
varanda do hotel. Diz que sonha com os mouros, o professor Villaça; só não nos diz que mouros são estes
os de suas viagens oníricas. Se convertidos à fé do Cristo ou ainda maometanos… Os mouros do Villaça,
pensando melhor, são só a velhice…

Ficaria horas desta noite do exangue mil novecentos e treze a nomear e a perguntar por todos os que já
partiram, nenhum deles, creiam, capaz de se nos apertar num abraço de despedida para dizer que iam.
Foram-se; só isso – foram-se e nos deixaram, além do estupor renovado de que morremos, a saudade que muita
vez não sendo melancolia, é pura aflição e o desespero medido de minhas noites de agora. E cá não refiro
os íntimos, os muito íntimos, que a partida destes são mais que saudades, são o aguilhão na carne de
alguém que mesmo sem haver tomado o Bromelius Citricus sobre a soturna Terra insiste. Vá lá também as
dores do sobrevivente, e a desonra de estar vivo, assim aqui inteiramente confessadas…

(Fragmentos do romance Amar-te-ia a ti nem sei se com carícias)

Fontes: Folha de S. Paulo (Ilustrada) | Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo |
Secretaria de Educação do Estado de Mato Grosso do Sul

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