Home EstudosLivros Ana e a margem do rio, de Godofredo de Oliveira Neto

Ana e a margem do rio, de Godofredo de Oliveira Neto

by Lucas Gomes

Em Ana e a margem do rio, publicado em 2002, o autor, Godofredo de Oliveira
Neto, cria um universo onde mitos indígenas brasileiros se chocam com valores
da civilização ocidental. Uma narrativa fluida e elegante conduzida através de
fábulas repletas de paixões, revoltas, frustrações, raivas, medos e ambições presentes
nas sociedades, primitivas ou não, do mundo inteiro.

Ana e a margem do rio conta a história de Ana (a narradora), índia da nação
Nauá, educada numa missão de freiras em plena floresta amazônica. Ana possui um
talento inato: o de escrever. E isso foi notado não apenas pelos professores locais,
mas por pesquisadores do Brasil e do exterior. Ana registra em um caderno uma
das velhas histórias que ouviu da mãe: a da parceria entre um jacaré e uma jibóia,
com o concurso de outros animais e de dois índios que vagam à procura de sua gente,
uma odisséia que parece não ter fim, tão complexa é a questão da identidade para
os nativos americanos. Assim é também para Ana, cuja história vai sendo contada
à medida que sua narrativa avança e se aprofunda, mesclando à lenda Nauá elementos
de outras tradições e da própria cultura do colonizador. Quem é essa jovem, tão
sensível, tão consciente e ao mesmo insegura de sua própria identidade? Qual dos
caminhos que lhe são apresentados ela vai escolher? Em que margem do rio e da
vida decidirá ficar?

Aos poucos, a jovem índia, dividida entre o mundo da oralidade, herdado de sua
tribo, e a religiosidade, imposta pelo sistema educacional, divide com os amigos
as aventuras fabulosas tantas vezes ouvidas de sua mãe. Mas a história vai sendo
modificada pela influência que Ana recebe das freiras salesianas.

Em Ana e a margem do rio, o autor intercala, como recurso literário, a
vida de Ana e a lenda narrada (A jibóia e o jacaré), separando-as em capítulos
escritos na primeira e na terceira pessoas. O efeito é revelar ao leitor as dificuldades
da índia de etnia Nauá em montar sua própria identidade, tornando-o cúmplice desse
conflito interno. Nessas narrativas, o autor demonstra a dificuldade que Ana enfrenta
para montar sua própria identidade. Além disso, como já citado, há narrações
de várias lendas amazônicas realizadas por animais, evidenciando o respeito à
diferença.

Ana e a margem do rio aborda, ainda, a explicação indígena para os mais diferentes fenômenos
naturais e segredos do universo. Com a fala hipotética de animais, Godofredo explora como a tolerância
pode, e deve, coexistir com a diferença.

No começo da obra, Ana tenta delinear uma identidade segregada, dividida:

Resolvi, então, escrever uma lenda que sempre ouvi de minha mãe, lenda que ela dizia ter ouvido da minha
vó, e assim para trás, até as origens da nossa nação. Eu escutava aquela história maravilhada e tomava
cuidado para que mamãe repetisse exatamente os mesmos detalhes […] Uma viva emoção me invade só de pensar
que vou passar para o papel imagens impregnadas do perfume da minha infância e assim perpetuar uma parte
da história do povo Nauá […] Sei que, na lenda, irá também, necessariamente, muito de mim em pedaços de
personagens, trechos de rio, pétalas de flores e em fragmentos de reações animalistas humanamente
plasmadas. Tudo bem. E vou tentar fugir no texto, do sonho que sempre vem, em que me vejo cercada por
animais da floresta que obedecem ao meu canto, rios que escoam sob meu comando, raios que se fixam no céu
escuro por minha simples ordem.
(2002: 13-14)

Mas, no decorrer da escrita, percebe o intercurso, o entrelaçamento de sujeitos, posições, diferenças e
identidades que fazem parte dela, que a constituem como um ser em pleno processo identitário. Mas essa
percepção não foi fácil, pois ao mesmo tempo em que decidia aceitar e negar o outro, tinha medo de se
perder, de se desfigurar.

Ana está em plena floresta amazônica, mais especificamente Xapuri – Rio Branco. E este lugar é uma das
regiões ameaçadas do mundo; e junto com a região, a cultura, as lendas, as histórias, os costumes. Quando
percebe que sua escrita está sendo esperada ansiosamente por pesquisadores sulistas e estrangeiros,
sente-se ameaçada, vigiada, controlada, e, a partir daí, tenta estabelecer uma territorialização fechada,
una, centrada.

Posts Relacionados