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Anarquismo: 1. Anarquismo e a Colônia Cecília

by Lucas Gomes

A palavra ANARQUISMO tem origem no termo grego ánarkhos, cujo significado
é, aproximadamente, “sem governo”. O anarquismo é freqüentemente
apontado como uma ideologia negadora dos valores sociais e políticos prevalecentes
no mundo moderno: o Estado laico, a lei, a ordem, a religião, a propriedade
privada etc.
De fato, como ideologia libertária e profundamente individualista, o
anarquismo defende a ruptura com todas as formas de autoridade política
e religiosa, a propriedade privada e quaisquer outros tipos de normas institucionais
que cerceiem a liberdade do indivíduo em sociedade e na esfera da vida
privada.

Origens do anarquismo

Não há consenso entre os historiadores sobre as origens da ideologia
anarquista. Mas é possível afirmar que alguns pensadores e teóricos,
como o inglês William Godwin, que em 1793 publicou o livro “Enquiry
Concerning Political Justice” (cuja tradução é Indagação
relativa à justiça política), o francês Pierre-Joseph
Proudhon, que em 1840 publicou “Qu’est-ce que la propriété?”
(cuja tradução é Que é a propriedade?), e o alemão
Max Stirner, que publicou “Der Einzige und sein Eigentum” (cuja tradução
é O indivíduo e sua propriedade), influenciaram decisivamente
o conteúdo da ideologia anarquista.

O anarquismo influenciou importantes movimentos sociais no transcurso do século
19 até a metade do século 20.

Movimentos anarquistas


Bakunin sistematizou princípios que
comporiam a ideologia anarquista

A crítica da propriedade privada e do Estado burguês feita pelos
ideólogos anarquistas resultou no desenvolvimento do trabalho de conscientização
e mobilização das massas proletárias (ou seja, o operariado).
Em muitos aspectos, a ideologia anarquista se assemelhava à ideologia
socialista – principalmente no tocante a luta de classes, a defesa das classes
oprimidas, a crítica da propriedade privada, da sociedade e do Estado
burguês. Por conta disso, durante décadas os anarquistas e os comunistas
se aliaram na organização dos movimentos revolucionários.

Na Europa do século 19, destacou-se o trabalho do intelectual e revolucionário
russo Mikhail Bakunin, responsável pela sistematização
de muitos princípios, idéias e valores que vão compor a
ideologia anarquista. Bakunin inspirou inúmeros movimentos anarquistas
por todo o continente.

Anarquismo no Brasil

No Brasil, a ideologia anarquista foi introduzida pelos imigrantes europeus,
principalmente os italianos e espanhóis. Os anarquistas foram os responsáveis
pela organização dos primeiros movimentos operários e sindicatos
trabalhistas autônomos. Eles lideraram as greves de 1917, 1918 e 1919,
ocorridas em São Paulo e no Rio de Janeiro.

Entre os militantes e líderes anarquistas brasileiros, destacam-se o
jornalista Edgard Leuenroth, o filólogo e professor José Oiticica
e o intelectual Neno Vasco. A partir da década de 1920, os anarquistas
progressivamente se afastam dos socialistas e, cada vez mais, perdem influência
social e política. Após a Segunda Guerra Mundial, a ideologia
anarquista entra em declínio em praticamente todos os países.

As doutrinas de inspiração anarquista defendem a idéia
de que a supressão de todas as formas de dominação e opressão
vigentes na sociedade moderna daria lugar a uma comunidade mais fraterna e igualitária.
Mas a igualdade e a solidariedade comunitária seriam resultados de um
esforço individual a partir de um árduo trabalho de conscientização.

Os movimentos anarquistas do século 20 promoveram a criação
de núcleos comunitários denominados de “ateneus”, para
onde eram encaminhados os adeptos desta ideologia e que servia de aprendizagem
e aperfeiçoamento intelectual. No Brasil, a primeira experiência
desse tipo foi a criação da Colônia Cecília, em 1890,
que foi dirigida por imigrantes italianos.

A Colônia Cecília


Homens da Colônia Cecília
(1890)

Em finais do século XIX, Milão despontou no panorama artístico
europeu pela grandiosidade de seu teatro, por sua vivência cultural e
pelo requintado gosto de seu povo. Neste contexto, Giovani Rossi expôs
idéias arrojadas a ouvintes atentos. Em conferências e artigos
semanais no jornal Lo Sperimentale, de Bréscia, notabilizou-se
por seu humanismo e alta compreensão dos problemas sociais dos artesãos,
professores e lavradores da região onde vivia. Filósofo anarquista,
pronunciava palestras a ouvidos atentos.

D. Pedro II, por causa de sua doença, foi aconselhado pelos médicos
a se tratar na Europa, e depois de várias escalas chegou a Milão,
em 29 de abril de 1888. Por intermédio do conde de Mota Maia, o Imperador
tem conhecimento da obra Il Commune in Riva al Mare, de Rossi, e mostra-se interessado
pelo conteúdo humano de seus escritos – que descreviam uma hipotética
experiên cia anarquista em país americano, onde individualismo
livre só cederia ao coletivismo se estivesse totalmente impregnado de
egoísmo, onde o ideal de liberdade suporia amor livre, inexistência
da propriedade privada, ausência de qualquer dogmatismo. Já em
agosto, após o regresso ao Brasil, D. Pedro II escreve ao jovem professor,
oferecendo-lhe oportunidade de efetivar, na região Sul brasileira, na
Província do Paraná, a objetivação de seu ideal.

Quais seriam as causas de medida tão inesperada?

Diversos documentos e referências de época comprovam o descontentamento
de D. Pedro II com os resultados efetivos da política imigracionista
brasileira em geral, e particularmente na província do Paraná.
Visconde de Taunay, a respeito da tentativa frustrada de colonização
russo-alemã afirma: A primeira entrada foi de mil trezentas e sessenta
e seis pessoas, em 31 de dezembro de 1878, começando desde aí
os abusos. Uma fazenda ajustada por três réis a braça quadrada,
foi posteriormente paga a seis réi s. Amontoados na vila da Palmeira,
sem possibilidade de se mexerem dali, pois lhes eram negados os meios de locomoção,
levantaram-se afinal e exigiram repatriação, porquanto as terras
que lhes impunham eram imprestáv eis e más, conforme haviam verificado
com instrumento de sondagem e reagentes químicos. (…) Houve necessidade
de sustentar à custa do tesouro público milhares de bocas inutilmente
por dois meses inteiros e fretaram-se afinal vapores para levar toda essa gente
para Hamburgo.

O desgaste internacional provocado por tal episódio pode ter sido a
causa principal para que o Imperador, preocupado em demonstrar que o Brasil
oferecia condições vantajosas aos imigrantes, em relação
à Argentina e aos Estados Unidos, tenha concedido terras a elementos
considerados “nocivos” à ordem política dominante na
Itália. Seria correto afirmar que tal medida constituiria considerável
ganho diplomático e poderia, ao mesmo tempo, provar que nosso país
era realmente capaz de efetuar política imigratória idônea.
No entanto, tais interpretações carecem de um estudo mais aprofundado.

Servindo-se do semanário Lo Sperimentale, de Bréscia, Rossi incitou
intelectuais, obreiros e lavradores, à viagem experimental. Não
descansava, propagando o anarquismo. Freqüentando sedes de corporações
operárias, aconselhando lavradores pressionados pelos desajustes econômicos
da Itália, animando os temerosos, foi engrossando o número de
interessados. Pequenos artesãos e intelectuais aderiram facilmente à
idéia, alguns e outros desiludidos com as lutas cansativas pela unidade
política italiana. Foram sensíveis, desta forma, aos acenos de
uma terra nova, com múltiplas possibilidades de uma vida nova. Trezentos
alqueires de terras – mais do que poderiam obter em qualquer região da
Itália – pareciam mais do que suficientes para que aquelas famílias
pudessem buscar a aplicação prática de seus ideais.

Em 20 de fevereiro de 1890 zarparam em Gênova cerca de 150 anarquistas
italianos. Chegando ao planalto dos campos gerais, instalaram-se no que seria
o núcleo Cecília em abril de 1890.

O obstáculo com que se defrontou, inicialmente, o núcleo anarquista
foi o da organização para o trabalho. Os componentes da imigração
vinham precedidos de vocações profissionais, afirmadas em tradições
seculares. Giovanni Rossi pressentia naquele instante que até mesmo lavradores
sentiriam dificuldades, acostumados a outro tipo de solo. O caso dos artes ãos
se tornava ainda mais complicado, sendo que a solução encontrada
foi justamente dar-lhes tarefas aproximadamente similares às suas profissões.
Concluídas as habitações individuais e coletivas, dividido
racionalmente o trabalho, entre o contingente de mais de 150 pessoas, os anarquistas
se depararam com um fato real: o milho, produto ideal para o cultivo naquelas
circunstâncias, não nasce da noite para o dia. No começo,
tiveram condições de subsistirem e laborarem a terra graças
ao dinheiro que trouxeram, aos instrumentos de trabalho que adquiriram e à
compra de sementes e mantimentos. No entanto, viram-se obrigados, mais tarde,
a procurar tarefas que lhes proporcionassem o sustento até que pudessem
viver tão somente das atividades do núcleo. Os anarquistas concentrados,
uns na lavoura, outros em empreitadas contratadas junto ao governo para a construção
da estrada de rodagem Serrinha-Santa Bárbara, recebiam salários
semanais que auxiliavam os companheiros da Colônia. No suor de cada dia,
os anarquistas plantaram mais de oitenta alqueires de chão, na área
em que lhe foi cedida, mais dez quilômetros de estrada construíram,
em época onde inexistiam possantes máquinas, nem tratores, muito
menos guindastes de transporte de terras para ajudar. Um barracão coletivo,
vinte barracões individuais, celeiros, casa da escola, moinho de fubá,
tanque de peixes, pavilhão coletivo, que também servia de consultório
médico, viveiro de mudas, poços, valos, pomar de pêras,
estábulos, grande lavoura de milho, tudo denunciava dinamismo. Proporcionalmente
ao suor do trabalho cresceu o respeito recíproco e puderam as famílias,
na colônia e fora dela, assentar profundas raízes de solidariedade
humana.

De princípio, em 1890, a estratificação social não
chegou a ser perceptível no interior da Colônia, porque tudo precisava
ser feito e todos queriam fazer, dentro das possibilidades pessoais e grupais.
Chefias e subordinações eram substituídos por estímulos
constantes e recíprocos que entre si faziam seus membros. No entanto,
os colonos não puderam manter-se afastados das condições
existenciais das comunidades, próximas e distantes. Com elas interaram-se
os anarquistas, através de ligações comerciais e espirituais.
A imprescindível compra de trigo, fubá, feijão, carne,
implicou em revisões de conceitos teorizantes de anarquismos, e a estratificação
social se fez. Diferente, sem dúvida, daquela maior, avassaladora, fundamento
das comunidades rurais brasileiras, a estratificação que se observava
nos campos gerais, feita de rígida hierarquia social, a qual se sentia
e ainda se sente – preponderância de elos de dependência da grande
massa de trabalhadores a limitado número de proprietários rurais.
Quando a assembléia precisou delegar responsabilidades a alguém
para gerir todo o dinheiro do núcleo, criou um estrato que seria, mais
tarde, responsável em grande parte pelo fracasso da experiência.
Contudo, é importante destacar que tal estratificação complementou-se
com convenção objetiva, determinada pela aceitação
e consenso geral.

Entregues à agricultura, à edificação de casas,
às tarefas educacionais, os anarquistas não dispunham de maior
oportunidade de relacionamento com o meio externo. O núcleo consumia-lhes
toda a atenção, e mostravam euforia nas ocupações.
Giovani Rossi inicialmente supunha que a área de trezentos alqueires
reservada à Colônia possuísse uma superfície bem
delimitada, vizinhos conhecedores de seus direitos e respeitadores das confrontações
estabelecidas. Sem a posse dos documentos que comprovassem a propriedade foi,
no entanto, surpreendido por um terreno inculto, não medido, de vizinhos
inconscientes do que lhes pertencia e, ainda, com o regime imperial extinto
em nome da República. Diante de tal conjuntura, desinteressou-se de fazer
gestões para medir, transferir domínio ou qualquer relação
jurídica com a propriedade. Nela simplesmente viveria com seus companheiros;
trabalhariam os campos, fariam riquezas comuns, levantariam edificações
comuneiras, oficinas, escolas, uma colméia de trabalho e de satisfações
espirituais. Não contava desta forma com uma política de concessão
de terras, com os favores oficiais e com um processo político interno
que buscaria reorientar a administração.

Durante o Império, na constância da política imigratória,
D. Pedro II, através de seus Ministros, estimulara por todas as formas
a instalação de colônias e núcleos de imigrantes,
auxiliando com recursos financeiros e materiais a formação de
comunidades. Todavia, pela Lei 3396, de 24 de novembro de 1888, todas as dívidas
dos colonos foram transferidas para o Estado do Paraná. Em razão
disso, o Governador Américo Lôbo Leite Pereira baixou o Decreto
58, de 31 de março de 1890, que dizia, entre outras coisas: Artigo 1º
– Todas as dívidas dos colonos estabelecidos no Estado do Paraná,
e ainda não pagas, ficam reduzidas ao preço da aquisição
dos lotes rústicos, inclusive as vivendas, perdoados todos e quaisquer
outros adiantamentos, assim como os 20% adicionais e mais outros tantos 20%.

Em plena fase de formação de núcleos, muitos chefes de
colônias, a maioria sem conhecer a língua nacional, foram incitados
a pagar, por vezes com multas, ao arbítrio de autoridades, dívidas
que não se justificavam, por vivendas feitas pelos colonos com esforço,
suor, trabalho de toda a família. Se esta política imigratória
não espantou colonos, sacrificou núcleos, tais como o da Colônia
Cecília, Colônia Leopoldina, Colônia Nova Itália,
etc.

Ao tomar conhecimento da lei, Rossi preferiu não se desgastar, de imediato,
com a autoridade que lhe informava da situação. Preferiu deixar
a delegacia de Palmeira e discutir a situação com seus companheiros,
antes de tomar qualquer atitude contra tamanha injustiça. Exarcebados
pela notícia, os colonos individual e coletivamente comportaram-se com
paixão, independência e dignidade, cada um deles expondo seu modo
de ver a questão, os exaltados a gritar contra a burguesia exploradora,
a exigir reparos na arregimentação dos colonos não só
de Cecília, mas de outros lugares, os corajosos menos dogmáticos
a entender que não deveriam pagar, os mais prudentes, grupo predominante,
a imaginar soluções conciliatórias. Todos, porém,
a protestarem contra a excessiva tributação, anulatória
de seu trabalho e confiscatória de seus bens, se não pagassem.
Por fim, prevaleceu o entendimento de que pagariam a dívida, se obtivessem
rendimento das colheitas. Caso contrário, abandonariam a terra.

Até então, o que acontecia fora do núcleo não os
atraía, a não ser, evidentemente, o conhecimento das notícias
internacionais, em particular, notícias italianas. Agora porém,
estavam em face de perigo objetivo, de perder a terra arada e plantada, de abandonar
seus pousos e o sustentáculo econômico construído com esforço,
no suor de cada dia, de deixarem para outros que nada fizeram aquilo que legitimamente
obtiveram. Então, pela primeira vez em conjunto, pensaram seriamente
em propriedade, em medi-la e estabelecer divisas naturais, menos como interesse
egoístico de possuí-la, do que para afirmá-la contra quem
dela queria servir-se, em nome do novo regime político dominante. Ironicamente,
apenas em 1897, quando já então os anarquistas haviam abandonado
o núcleo, a burocracia vinha a apresentar pedido de medição
de terras.

A produção agrícola foi razoável, dentro das previsões
dos colonos, em 1890 e 1891. Pequena, mas compensadora ao que se plantou. No
entanto, todos os esforços do núcleo foram concentrados na safra
de 1893. Cem alqueires de chão foram plantados. Os anarquistas selecionaram
trabalhadores para o corte do capim – futuro feno -, para a derrubada das espigas,
para seu transporte até o pátio do celeiro. Empilhadas em gigantesco
pavilhão, construído ao lado do barracão coletivo dos solteiros,
as espigas de milho estavam preparadas para a venda. Gariga, misto de argentino
e italiano, seria o responsável pelas negociações de venda
do milho na cidade.

Entregues ao trabalho de colheita, os anarquistas não pressentiram
a desgra ça iminente. O crupe, de caráter epidêmico, deixou
cicatrizes nos barracões anarquistas. Sete crianças do núcleo
anarquista faleceram. Todo o otimismo da comunidade havia sido arrasado. Rossi
perdera duas filhas, e a estrutura dos espíritos estavam abaladas.

Por sua facilidade em fazer amigos, Gariga era o homem do leva e traz, da Colônia
à cidade e vice-versa. Responsável pelas compras e vendas de mercadorias,
trazia da cidade as cartas, jornais, embrulhos e novidades. Toda a produção
de milho foi por ele transportada. Todas as possibilidades não de lucro,
mas de sobrevivência do núcleo repousavam no aproveitamento racional
do cereal. No entanto, passaram-se dias e José Gariga havia sumido. Para
Rossi e os outros idealizadores do projeto o furto representou a destruição
de seus ideais postos em termos práticos. Quando Gariga apresentou-se
pela primeira vez ao núcleo, apenas indagaram-no se gostaria de viver
em colônia anarquista e, respondido que sim, deram-lhe encargos e posição
de prestígio. O furto dera a certeza da precariedade moral dos homens,
de seu despreparo para experiência do tipo que idealizavam. Na somatória
de crises que vivia o núcleo, o furto representou a mais ponderáv
el, porque violentou a ordem anárquica dominante. A semente da desconfiança
nascera com o episódio, e poucos demonstraram interesse em tentar tudo
de novo, partindo do zero. Oportunidades de trabalho em outras comunidades,
vantagens materiais em cidades servidas de luz, água, diversões,
fizeram com que o núcleo fosse, aos poucos, abandonado.

Considera-se que a Colônia Cecília não foi um fracasso.
Se, materialmente, não atingiu tudo o que se exige de um aglomerado social,
serviu, pela ação doutrinária e pelo trabalho de seus membros
para consolidar valores. Afirma-se, antes, nas idéias germinadas, na
tradição operária de lutas que criou e estimulou. Seus
líderes não foram poucos, e cada anarquista deu sua contribuição
efetiva ao movimento operário do Paraná, no fim do século.

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