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As mentiras que os homens contam, de Luís Fernando Veríssimo

by Lucas Gomes

As mentiras que os homens contam

, de Fernando Veríssimo, foi publicado em 2000 e reúne 41 histórias, algumas inéditas
em livro.

O livro demonstra diversas situações, algumas comuns e outras hipotéticas, sobre o universo masculino.

Depois de percorrer suas páginas, o leitor certamente vai se lembrar de algumas situações parecidas que ocorreram em
sua vida. Quem nunca se deparou com um estranho na rua com a constrangedora pergunta: “Lembra de mim?” E você, mesmo sem
saber de quem se trata, responde: “Claro.” E, aí, tenta ganhar tempo e mais algumas dicas para decifrar a identidade do
inconveniente sujeito. Quem nunca inventou, para a mãe, uma dor ou mal-estar pra fugir de um dia de aula? Quem nunca usou o
trânsito para justificar o atraso a um compromisso? Afinal, quem nunca contou uma mentira que atire a primeira pedra. Ou
então se junte a essa deliciosa galeria de mentirosos inventados por Veríssimo.

Segundo o autor, as mentiras que os homens contam já começam na infância. E a primeira vítima é invariavelmente a própria mãe.
Depois vêm as namoradas, a esposa, a sogra, a amante, os amigos, o chefe. Torna-se uma incrível compulsividade masculina. Em uma
pesquisa de mercado:

“-O senhor tem amante?
– Foi minha mulher que o mandou?
– Onde é que está o microfone? É chantagem, é?
– Não, cavalheiro. Nós…
– Está bem, está bem… Tem uma moça que eu vejo, mas nem se pode chamar de amante. Pelo amor de Deus! É só meia hora de três
em três dias. E ela é bem baixinha.“

O autor quase faz crer que mentirinhas que os homens contam provam a teoria de que os fins justificam os meios. Livram a cara.
E isto é tudo. Até parece que todas as mentiras são apenas pecadinhos não mais do que veniais. Pois, mente-se até por amor ou
para preservá-lo. Tornam-se em histórias claramente mal contadas, em que historiador e ouvinte se convencem de que, embora
algo não esteja muito certo, vamos e venhamos… dá para tolerar na boa. E já que não faz tanto mal, o que tem demais uma
mentirinha qualquer? E que seria de nós se contássemos e ouvíssemos a verdade sempre e nada mais que a verdade? Os fins são
múltiplos: evitar constrangimento, se livrar de broncas, necessidade de ser gentil, apenas levar a vida na gozação. Fazem parte
integrante do dia-a-dia. Mentiras no texto são defendidas a todo o custo, ainda que isto cause muitas e muitas lágrimas… de
tanto rir…

Veríssimo apresenta com grande perceptividade e ironia criativa, todos as dicas, os macetes, as desculpas mais esfarrapadas que
a sociedade utiliza. É uma crítica arguta da visão machista do marido brasileiro típico. No fundo, será que a mulher não curte a
mentira dos seus maridos para a sua (dela) única conveniência? É leitura divertida, agradável do início ao fim, totalmente livre
de moralismos ou estereótipos.

Crônica escolhida: HOMEM QUE É HOMEM

Homem que é Homem não usa camiseta sem manga, a não ser para jogar basquete. Homem que é Homem não gosta de canapés, de cebolinhas
em conserva ou de qualquer outra coisa que leve menos de 30 segundos para mastigar e engolir. Homem que é Homem não come suflê.
Homem que é Homem — de agora em diante chamado HQEH — não deixa sua mulher mostrar a bunda para ninguém, nem em baile de carnaval.
HQEH não mostra a sua bunda para ninguém. Só no vestiário, para outros homens, e assim mesmo, se olhar por mais de 30 segundos,
dá briga.

HQEH só vai ao cinema ver filme do Franco Zeffirelli quando a mulher insiste muito, e passa todo o tempo tentando ver as horas
no escuro. HQEH não gosta de musical, filme com a Jill Clayburgh ou do Ingmar Bergman. Prefere filmes com o Lee Marvin e Charles
Bronson. Diz que ator mesmo era o Spencer Tracy, e que dos novos, tirando o Clint Eastwood, é tudo veado.

HQEH não vai mais a teatro porque também não gosta que mostrem a bunda à sua mulher. Se você quer um HQEH no momento mais baixo
de sua vida, precisa vê-lo no balé. Na saída ele diz que até o porteiro é veado e que se enxergar mais alguém de malha justa, mata.

E o HQEH tem razão. Confesse, você está com ele. Você não quer que pensem que você é um primitivo, um retrógrado e um machista, mas
lá no fundo você torce pelo HQEH. Claro, não concorda com tudo o que ele diz. Quando ele conta tudo o que vai fazer com a Feiticeira
no dia em que a pegar, você sacode a cabeça e reflete sobre o componente de misoginia patológica inerente à jactância sexual do homem
latino. Depois começa a pensar no que faria com a Feiticeira se a pegasse. Existe um HQEH dentro de cada brasileiro, sepultado sob
camadas de civilização, de falsa sofisticação, de propaganda feminina e de acomodação. Sim, de acomodação. Quantas vezes, atirado na
frente de um aparelho de TV vendo a novela das 8 — uma história invariavelmente de humilhação, renúncia e superação femininas — você
não se perguntou o que estava fazendo que não dava um salto, vencia a resistência da família a pontapés e procurava uma reprise do
Manix em outro canal? HQEH só vê futebol na TV. Bebendo cerveja. E nada de cebolinhas em conserva! HQEH arrota e não pede desculpas.

Se você não sabe se tem um HQEH dentro de você, faça este teste. Leia esta série de situações. Estude-as, pense, e depois decida como
você reagiria em cada situação. A resposta dirá o seu coeficiente de HQEH. Se pensar muito, nem precisa responder: você não é HQEH.
HQEH não pensa muito!

Situação 1

Você está num restaurante com nome francês. O cardápio é todo escrito em francês. Só o preço está em reais. Muitos reais. Você
pergunta o que significa o nome de um determinado prato ao maître. Você tem certeza que o maître está se esforçando para não rir
da sua pronúncia. O maître levará mais tempo para descrever o prato do que você para comê-lo, pois o que vem é uma pasta vagamente
marinha em cima de uma torrada do tamanho aproximado de uma moeda de um real, embora custe mais de cem. Você come de um golpe só,
pensando no que os operários são obrigados a comer. Com inveja. Sua acompanhante pergunta qual é o gosto e você responde que não
deu tempo para saber. 0 prato principal vem trocado. Você tem certeza que pediu um “Boeuf à quelque chose” e o que vem é uma fatia
de pato sem qualquer acompanhamento. Só. Bem que você tinha notado o nome: “Canard melancolique”. Você a princípio sente pena do
pato, pela sua solidão, mas muda de idéia quando tenta cortá-lo. Ele é um duro, pode agüentar. Quando vem a conta, você nota que
cobraram pelo pato e pelo “boeuf’ que não veio. Você:

a) paga assim mesmo para não dar à sua acompanhante a impressão de que se preocupa com coisas vulgares como o dinheiro, ainda mais
o brasileiro;

b) chama discretamente o maître e indica o erro, sorrindo para dar a entender que, “Merde, alors”, estas coisas acontecem; ou
c) vira a mesa, quebra uma garrafa de vinho contra a parede e, segurando o gargalo, grita: “Eu quero o gerente e é melhor ele vir
sozinho!

Situação 2

Você foi convencido pela sua mulher, namorada ou amiga — se bem que HQEH não tem “amigas”, quem tem “amigas” é veado — a entrar para
um curso de Sensitivação Oriental. Você reluta em vestir a malha preta, mas acaba sucumbindo. O curso é dado por um japonês,
provavelmente veado. Todos sentam num círculo em volta do japonês, na posição de lótus. Menos você, que, como está um pouco fora
de forma, só pode sentar na posição do arbusto despencado pelo vento.

Durante 15 minutos todos devem fechar os olhos, juntar as pontas dos dedos e fazer “rom”, até que se integrem na Grande Corrente
Universal que vem do Tibete, passa pelas cidades sagradas da Índia e do Oriente Médio e, estranhamente, bem em cima do prédio do
japonês, antes de voltar para o Oriente. Uma vez atingido este estágio, todos devem virar para a pessoa ao seu lado e estudar seu
rosto com as pontas dos dedos. Não se surpreendendo se o japonês chegar por trás e puxar as suas orelhas com força para lembrá-lo da
dualidade de todas as coisas. Durante o “rom” você faz força, mas não consegue se integrar na grande corrente universal, embora
comece a sentir uma sensação diferente que depois revela-se ser câimbra. Você:

a) finge que atingiu a integração para não cortar a onda de ninguém;
b) finge que não entendeu bem as instruções, engatinha fazendo “rom” até o lado daquela grande loura e, na hora de tocar o seu rosto,
erra o alvo e agarra os seios, recusando-se a soltá-los mesmo que o japonês quase arranque as suas orelhas;
c) diz que não sentiu nada, que não vai seguir adiante com aquela bobagem, ainda mais de malha preta, e que é tudo coisa de veado.

Situação 3

Você está numa daquelas reuniões em que há lugares de sobra para sentar, mas todo mundo senta no chão. Você não quis ser diferente,
se atirou num almofadão colorido e tarde demais descobriu que era a dona da casa. Sua mulher ou namorada está tendo uma conversa
confidencial, de mãos dadas, com uma moça que é a cara do Charlton Heston, só que de bigode. O jantar é à americana e você não tem
mais um joelho para colocar o seu copo de vinho enquanto usa os outros dois para equilibrar o prato e cortar o pedaço de pato,
provavelmente o mesmo do restaurante francês, só que algumas semanas mais velho. Aí o cabeleireiro de cabelo mechado ao seu lado
oferece:

— Se quiser usar o meu…
— O seu…?

— Joelho.

— Ah…
— Ele está desocupado.

— Mas eu não o conheço.
— Eu apresento. Este é o meu joelho.
— Não. Eu digo, você…
— Eu, hein? Quanta formalidade. Aposto que se eu estivesse oferecendo a perna toda você ia pedir referências. Ti-au.

Você:

a) resolve entrar no espírito da festa e começa a tirar as calças;
b) leva seu copo de vinho para um canto e fica, entre divertido e irônico, observando aquele curioso painel humano e organizando um
pensamento sobre estas sociedades tropicais, que passam da barbárie para a decadência sem a etapa intermediária da civilização; ou
c) pega sua mulher ou namorada e dá o fora, não sem antes derrubar o Charlton Heston com um soco.

Se você escolheu a resposta A para todas as situações, não é um HQEH. Se você escolheu a resposta B, não é um HQEH. E se você escolheu
a resposta C, também não é um HQEH. Um HQEH não responde a testes. Um HQEH acha que teste é coisa de veado.

Este país foi feito por Homens que eram Homens. Os desbravadores do nosso interior
bravio não tinham nem jeans, quanto mais do Pierre Cardin. O que seria deste pais
se Dom Pedro I tivesse se atrasado no dia 7 em algum cabeleireiro, fazendo massagem
facial e cortando o cabelo à navalha? E se tivesse gritado, em vez de “Independência
ou Morte”, “Independência ou Alternativa Viável, Levando em Consideração Todas
as Variáveis!”? Você pode imaginar o Rui Barbosa de sunga de crochê? O José do
Patrocínio de colant? O Tiradentes de kaftan e brinco numa orelha só? Homens que
eram Homens eram os bandeirantes. Como se sabe, antes de partir numa expedição,
os bandeirantes subiam num morro em São Paulo e abriam a braguilha. Esperavam
até ter uma ereção e depois seguiam na direção que o pau apontasse. Profissão
para um HQEH é motorista de caminhão. Daqueles que, depois de comer um mocotó
com duas Malzibier, dormem na estrada e, se sentem falta de mulher, ligam o motor
e trepam com o radiador. No futebol HQEH é beque central, cabeça-de-área ou centroavante.
Meio-de-campo é coisa de veado. Mulher do amigo de Homem que é Homem é homem.
HQEH não tem amizade colorida, que é a sacanagem por outros meios. HQEH não tem
um relacionamento adulto, de confiança mútua, cada um respeitando a liberdade
do outro, numa transa, assim, extraconjugal mas assumida, entende? Que isso é
papo de mulher pra dar pra todo mundo. HQEH acha que movimento gay é coisa de
veado.

HQEH nunca vai à vernissage.

HQEH não está lendo a Marguerite Yourcenar, não leu a Marguerite Yourcenar e não vai ler a Marguerite Yourcenar.

HQEH diz que não tem preconceito mas que se um dia estivesse numa mesma sala com todas as cantoras da MPB, não desencostaria da
parede.

Coisas que você jamais encontrará em um HQEH: batom neutro para lábios ressequidos, pastilhas para refrescar o hálito, o telefone
do Gabeira, entradas para um espetáculo de mímica.

Coisas que você jamais deve dizer a um HQEH: “Ton sur ton”, “Vamos ao balé?”, “Prove estas cebolinhas”.

Coisas que você jamais vai ouvir um HQEH dizer: “Assumir”, “Amei”, “Minha porção mulher”, “Acho que o bordeau fica melhor no sofá
e a ráfia em cima do puf”.

Não convide para a mesma mesa: um HQEH e o Silvinho.

HQEH acha que ainda há tempo de salvar o Brasil e já conseguiu a adesão de todos os Homens que são Homens que restam no país para
uma campanha de regeneração do macho brasileiro.

Os quatro só não têm se reunido muito seguidamente porque pode parecer coisa de veado.

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