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As pérolas (Conto da obra Antes do baile verde), de Lygia Fagundes Telles

by Lucas Gomes

Este conto está inserido na obra Antes
do baile verde
, de Lygia Fagundes Telles.

Em As Pérolas, conto de 1958, o pano de fundo para tratar o tema é novamente
um diálogo entre marido e mulher. Entretanto, diferentemente dos protagonistas de
Eu Era Mudo e Só, as personagens que formam o casal apresentado em As
Pérolas
, Tomás e Lavínia, se amam.

O que gera a tensão no conto é o fato de Tomás estar doente, e ambos sabem que a
morte do marido está próxima.

No período inicial da narrativa, o narrador compara a situação atual da mulher
observada com outra, que o leitor pode deduzir ser a de um tempo passado.

“Demoradamente ele a examinava pelo espelho. ‘Está mais magra, pensou. Mas está
mais bonita.’ Quando a visse, Roberto também pensaria o mesmo: ‘Está mais bonita
assim.’” (p. 101). De forma sutil, são apresentadas ao leitor as três personagens
principais, o marido (Tomás), que observa a mulher (Lavínia), enquanto ela se
prepara para sair. Tomás, doente, ficará em casa. Na reunião, Lavínia irá
encontrar-se com Roberto, também mencionado nesse trecho inicial. Está formado
um triângulo amoroso.

O narrador heterodiegético descreve a cena alternando as focalizações externa e
interna. Lança uma pergunta: “Que iria acontecer?” (p. 102). Quem faz a pergunta?
E a quem ela se dirige?

Entretanto, ele pressente a cena que acontecerá nesta noite entre Lavínia e
Roberto, um amigo do casal, que esteve viajando, e com quem não se encontram há
mais de um ano.

Empregando a focalização interna, o narrador permite ao leitor acompanhar os
pensamentos de Tomás, que visualiza cada detalhe da cena que acontecerá entre
Lavínia e Roberto, ainda naquela mesma noite. Os dois conversando na varanda, a
sós, olhando a noite e, ao fundo, o som do piano. “Conversariam? Claro que sim,
mas só nos primeiros momentos. Logo atingiriam aquele estado em que as palavras
são demais. (…) Só os dois, lado a lado, em silêncio. O braço dele roçando no
braço dela. (…)” (p. 102).

Lavínia preocupa-se com o estado de saúde de Tomás, como pode-se perceber pelas
atitudes descritas pelo narrador. Assim, ela “o examinava pelo espelho” (p. 102),
pergunta ao marido “Você está bem?” (p. 102), pensa que ele pode estar “com
alguma dor” (p. 102), afirma “Queria tanto ficar aqui com você.” (p. 103).

Tomás sabe a resposta que Lavínia dará a Roberto, quando este perguntar-lhe
pelo marido, “(…) a confissão que nem a si mesma ela tivera coragem de fazer:
‘Está cada vez pior.’” (p. 105). Tomás está morrendo. Ele sabe que a esposa
ainda o ama, “(…) ela ainda o amava. Um amor meio esgarçado, sem alegria. Mas
ainda amor.” (p. 103).

O leitor não consegue definir o que é pior para Tomás, se a certeza da proximidade
da morte ou a iminência da traição. Ele sabe que a situação entre os dois irá
mudar depois dessa noite, depois do encontro que acontecerá entre Lavínia e
Roberto: “Depois ela não lhe diria mais nada. Seria o primeiro segredo entre os
dois, a primeira névoa baixando densa, mais densa, separando-os como um muro,
embora caminhassem lado a lado.” (p. 104). Essa certeza o deixa desesperado, mas
o grito de angústia não é verbalizado, fica apenas dentro da mente de Tomás:
“‘Lavínia, não me abandone já, deixe ao menos eu partir primeiro!’(…) ‘Não podem
fazer isso comigo, eu ainda estou vivo, ouviram bem? Vivo!’” (p. 104-105).

Em uma analepse utilizada pelo narrador, Tomás recorda-se de um jantar ocorrido
“há quase dez anos” (p. 106), do qual Lavínia “nem se lembrava mais” (p. 105):

Dois dias antes do casamento. Lavínia estava assim mesmo, toda
vestida de preto. Como única jóia, trazia seu colar de pérolas, precisamente
aquele que estava ali, na caixa de cristal. Roberto fora o primeiro a chegar.
Estava eufórico: “Que elegância, Lavínia! Como lhe vai bem o preto, nunca te vi
tão linda. Se eu fosse você, faria o vestido de noiva preto. E estas pérolas…
Presente do noivo?” Sim, parecia satisfeitíssimo, mas, no fundo do seu sorriso,
sob a frivolidade dos galanteios, lá no fundo, só ele, Tomás, adivinhava qualquer
coisa de sombrio. Não, não era ciúme nem propriamente mágoa, mas qualquer
coisa assim com o sabor sarcástico de uma advertência: “Fique com ela, fique
com ela por enquanto. Depois veremos.” Depois era agora.
(Telles, 1982, p. 106)

Nesse trecho, chama a atenção o fato de Roberto dizer a Lavínia que ela deveria
fazer o “vestido de noiva preto”. Os vestidos de noiva, atualmente, até são
confeccionados em cores diferentes, mas na época em que o conto foi escrito, 1958,
a cor tradicionalmente usada para esse tipo de roupa era o branco. Nos países
ocidentais o preto é a cor associada à morte, utilizada pelas pessoas enlutadas.
Além do comentário de Roberto poder ser considerado inadequado para a situação,
Tomás percebe algo de “sombrio” nele, “com o sabor sarcástico de uma advertência”.
Roberto poderia saber o que estava por acontecer?

Na prolepse empregada a seguir, que focaliza a cena na varanda, Roberto faz
menção ao mesmo jantar ocorrido há dez anos. Refere-se aos versos de Geraldy, que
recitou para saudar Lavínia, na ocasião, “você lembra?”. Lavínia perturba-se com a
recordação, leva a mão ao colar de pérolas. “Lembrava-se perfeitamente, só que o
verso adquiria agora um novo sentido, não, não era mais o cumprimento galante para
arreliar o noivo. Era a confissão profunda, grave: ‘Se eu te amasse, se tu me amasses,
como nós nos amaríamos!’” (p. 106).

Se Tomás sabe o que vai acontecer na reunião dessa noite entre Roberto e Lavínia, a
mulher está “inconsciente ainda de tudo quanto a esperava” (p. 106). Mas, Tomás pode
alterar a situação: “Por incrível que parecesse, estava em suas mãos impedir” (p. 103).
Está em suas mãos evitar o encontro e a cumplicidade que surgirá entre a esposa e o
rival, e que dará início a uma nova história de amor. “No entanto, se lhe pedisse,
‘Lavínia, não vá’, se lhe dissesse isto uma única vez, ‘não vá, fica comigo!’”
(p. 106-107).

Até essa parte do conto, o leitor pode pensar que as previsões de Tomás não passam
de um delírio, talvez em conseqüência da doença que lhe acomete – e, sobre a qual, o
narrador dá poucos detalhes. Entretanto, em nova analepse, o leitor recebe uma
informação importante:

(…) Ninguém podia ajudá-lo, ninguém. Pensou na mãe, na
mulherzinha raquítica e esmolambenta que nada tivera na vida, nada a não ser
aqueles olhos poderosos, desvendadores. Dela herdara o dom de pressentir. “Eu
já sabia”, ela costumava dizer quando vinham lhe dar as notícias. “Eu já sabia”,
ficava repetindo obstinadamente, apertando os olhos de cigana. “Mas, se você
sabia, por que então não fez alguma coisa para impedir?!” – gritava o marido, a
sacudi-la como um trapo. Ela ficava menorzinha nas mãos do homem, mas
cresciam assustadores os olhos de ver na distância. “Fazer o quê? Que é que eu
podia fazer senão esperar?”
(Telles, 1982, p. 107)

Tomás possui o dom de pressentir, herdado da mãe. A cena que ele sabe que vai
acontecer naquela noite, entre a esposa e Roberto, não é um delírio, mas uma
premonição.

Entretanto, os acontecimentos que são previstos não podem, ou não devem, ser
alterados.

Realizando um último esforço, Tomás retira o colar de pérolas da mesa onde
estava e o coloca no bolso. “Tudo ia acontecer como ele previra, tudo ia se
desenrolar com a naturalidade do inevitável, mas alguma coisa ele conseguira
modificar (…) Tinha a varanda, tinha Chopin, tinha o luar, mas faltavam as
pérolas.” (p. 108)

Tomás não pode alterar o destino que lhe cabe. A morte está próxima. Lavínia e
Roberto ficarão juntos. “(…) Seria triste pensar, por exemplo, que enquanto
ele ia apodrecer na terra ela caminharia ao sol de mãos dadas com outro?
Hein?…” (p. 102). Entretanto, ele pode se permitir uma pequena maldade, a
subtração de um detalhe importante na cena.

Tomás aperta o colar de pérolas, tenta triturá-lo com as próprias mãos, mas vê
que as pérolas resistem, escapam-lhe por entre os dedos. “O entrechocar das
contas produzia um som semelhante a uma risada.” (p. 109). Com “os olhos
escancarados” – como os da mãe, que cresciam assustadores, os olhos de ver
na distância – Tomás percebe que de nada adianta lutar contra a realidade dos
fatos.

Tomás grita por Lavínia, corre até a janela, lança “um olhar demorado e
tranqüilo para a mulher banhada de luar” (p. 109) e devolve o colar de pérolas
para a esposa. O que ele poderia fazer além de esperar?

Fonte: Biblioteca Digital da UNESP

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