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Autores: 6. Simbolismo – A obra de Augusto dos Anjos

by Lucas Gomes

Obra:
Eu

, 1912;
Reedição: Eu
e Outras Poesias
, 1919.

Augusto
dos Anjos
é um poeta único em nossa literatura. Publicou quase toda a sua
obra poética no livro Eu, que saiu em 1912. O livro foi depois enriquecido
com outras poesias esparsas do autor e tem sido publicado em diversas edições,
com o título Eu e Outras Poesias. Se bem que nos tivesse deixado apenas
êste único trabalho, o poeta merece um lugar na tribuna de honra da poesia brasileira,
não só pela profundidade filosófica que transpira dos seus pensamentos, como pela
fantasia de suas divagações pelo mundo científico. São versos que transportam
a dor humana ao reino dos fenômenos sobrenaturais. O estilo de Augusto dos Anjos
é correto e suas composições são testemunhos de uma primorosa originalidade.

Ninguém o compreendeu, ninguém lhe leu os versos nos cafés superficialmente afrancesados do Rio de Janeiro,
e é conhecida a cena de um dos seus raros admiradores que leu um soneto de Augusto dos Anjos a Olavo Bilac
e recebeu a resposta desdenhosa: “É este o seu grande poeta? Fez bem ter morrido!” Foi uma época de eclipse
do sal, de trevas ao meio-dia.

Quem salvou a fama póstuma de Augusto dos Anjos foi seu povo, o do Nordeste e do interior do Brasil. A
abundância de estranhas expressões científicas e de palavras esquisitas em seus versos atraiu os leitores
semicultos que não compreenderam nada de sua poesia e ficavam, no entanto, fascinados pelas metáforas de
decomposição em seus versos assim como estavam em decomposição suas vidas. Nada menos que 31 edições do seu
livro Eu dão testemunho dessa imensa popularidade que é o reverso da medalha – repeliu os leitores
exigentes, de tal modo que, até durante a fase modernista da literatura brasileira, os versos de Augusto
dos Anjos passaram por exemplos de mau gosto de uma época superada.

A obra de Augusto dos Anjos retrata um mundo que se desagrega, em contraposição a um outro, que surge das
ruínas. Pode ser dividida, não com rigor, em três fases:

– A PRIMEIRA FASE muito influenciada pelo simbolismo e sem a
originalidade que marcaria as posteriores (a essa fase pertencem “Saudade” e “Versos
Íntimos” que transcrevemos aqui:

Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão – esta pantera –
Foi tua companheira inseparável!

Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.

Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.

Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!
(“Versos Íntimos”)

– A SEGUNDA FASE possui o caráter de sua visão de mundo peculiar
(um exemplo dessa fase é o soneto “Psicologia de um Vencido”:

Eu, filho do carbono e do amoníaco,
Monstro de escuridão e rutilância,
Sofro, desde a epigênese da infância,
A influência má dos signos do zodíaco.

Profundissimamente hipocondríaco,
Este ambiente me causa repugnância…
Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia
Que se escapa da boca de um cardíaco.

Já o verme – este operário das ruínas –
Que o sangue podre das carnificinas
Come, e á vida em geral declara guerra,

Anda a espreitar meus olhos para roê-los,
E há de deixar-me apenas os cabelos,
Na frialdade inorgânica da terra!

– A TERCEIRA FASE (última) corresponde à sua produção
mais complexa e madura, que inclui “Ao Luar”:

Quando, à noite, o Infinito se levanta

A luz do luar, pelos caminhos quedos

Minha tactil intensidade é tanta
Que eu sinto a alma do Cosmos nos meus dedos!

Quebro a custódia dos sentidos tredos
E a minha mão, dona, por fim, de quanta
Grandeza o Orbe estrangula em seus segredos,
Todas as coisas íntimas suplanta!

Penetro, agarro, ausculto, apreendo, invado,
Nos paroxismos da hiperestesia,

O Infinitésimo e o Indeterminado…

Transponho ousadamente o átomo rude
E, transmudado em rutilância fria,
Encho o Espaço com a minha plenitude!

CONSIDERAÇÕES GERAIS

1. “Ah! Um urubu pousou na minha sorte!”

Transformado em catecismo dos pessimistas e em bíblia dos azarados e malditos, o livro Eu é de uma
instigante popularidade, resistente a todos os modismos, impermeável às retaliações da crítica e aos vermes
do tempo. Foi o poeta mais original de nossa literatura, no período que vai de Cruz e Sousa aos modernistas,
e sua popularidade deve-se:

…ao caráter original, paradozal, até mesmo chocante, da sua linguagem, tecida de vocábulos esdrúxulos e
animada de uma virulência pessimista, sem igual em nossas letras.
(Alfredo Bosi)

2. “Eu, filho do carbono e do amoníaco”

As leituras precoces de Darwin, Haeckel, Lamark, Schopenhauer e outros, feitas na biblioteca de seu pai,
fundamentaram a postura existencial do poeta; a adesão ao Evolucionismo de Darwin e Spencer e a angústia
funda, letal, ante a fatalidade que arrasta toda a carne para a decomposição. Fundem-se a visão cósmica e o
desespero radical, produzindo uma poesia violenta e nova em língua portuguesa:

A IDÉIA

De onde ela vem?! De que matéria bruta
Vem dessa luz que sobre as nebulosas
Cai de incógnitas criptas misteriosas
Como as estalactites de uma gruta?!

Vem da psicogenética e alta luta
Do feixe de moléculas nervosas,
Que, em desintegrações maravilhosas,
Delibera, e depois, quer e executa!

Vem do encéfalo absconso que a constringe,
Chega em seguida às cordas da laringe,
Tísica, tênue, mínima, raquítica…

Quebra a força centrípeta que a amarra,
Mas, de repente, e quase morta, esbarra
No molambo da língua paralítica!

3. “Não sou capaz de amar mulher alguma!”

“Se algum dia o prazer vier procurar-me, dize a este monstro que eu fugi de casa!”

O asco do prazer é expresso de maneira contundente; a relação entre os sexos é apenas “a matilha espantada
dos instintos” ou “parodiando saraus sínicos, / bilhões de centrossomas apolínicos / na câmara promíscua do
vitellus.”

Reduzindo o amor humano à cega e torpe luta de células, cujo fim não é senão criar um projeto de cadáver, o
poeta aspira, como Cruz e Sousa, à imortalidade gélida, mas luminosa, de outros mundos onde não lateje a
vida-instinto, a vida-carne, a vida-corrupção:

As minhas roupas, quero até rompê-las!
Quero, arrancado das prisões carnais,
Viver na luz dos astros imortais,
Abraçado com todas as estrelas!
(“Queixas Noturnas”)

4. “As palavras se desintegram na minha boca como cogumelos mofados” (von Hofmannsthal)

Augusto dos Anjos vale-se muitas vezes de técnicas expressionistas na montagem de seus textos. O
Expressionismo, corrente estética situada nos limiares do Modernismo, representou uma reação contra o
Impressionismo, contra o gosto pela nuance, contra o refinamento e sutileza na captação do momento.

A imagem é intencionalmente deformada e agrupada de maneira desconcertante, através de transfiguração da
realidade. Em lugar da delicadez e da suavidade, a imagem é deformada, por meio de um desenho violento, que
acentua e barbariza a forma, aproximando-se, às vezes, do grotesco e da caricatura.

Daí o “mau gosto”, o “apoético” que, em Augusto dos Anjos, são convertidos em poesia. O jargão científico
e o termo técnico, tradicionalmente prosaicos, não devem ser subtraídos de um contexto que os exige e os
justifica. Fazia-se necessária uma simbiose de termos que definissem toda a estrutura da vida (vocabulário
físico, químico e biológico) e termos que exprimissem o asco e o horror ante a existência.

Alfredo Bosi relaciona algumas dessas aproximações nominais:

…miséria anatômica, espécies sofredoras, desespero endêmico, mecânica nefasta, estranguladora lei,
agregados perecíveis, apodrecimentos musculares, herança miserável de micróbios, cuspo afrodisíaco,
intracefálica tortura, aspereza orográfica do mundo, fonemas acres, fotosferas mortas, gêiser deletério,
sangue podre, câmara promíscua do
vitellus, microorganismos fúnebres, atômica desordem, energia
abandonada.

Apoiando-se em hipérboles e paradoxos, e na exploração de efeitos sonoros, Augusto dos Anjos funde a
inflexão simbolista e a retórica científica, criando uma dicção singular, que projeta a hipersensibilidade
e a visão trágica e mórbida da existência.

Observe nos fragmentos a seguir o jogo de aliterações e efeitos sonoros:

Tísica, tênue, mínima, raquítica.

Sáxeo, de asfalto rijo, atro e vidrento.

Cinzas, caixas cranianas, cartilagens

de aberratórias abstrações abstruosas.

Arda, fustigue, queime, corte, morda!

Bruto, de errante rio, alto e hórrido, o urro Reboava.

A híspida aresta sáxea áspera e abrupta.

……………………………………………………………………………

Como visto, cético em relação às possibilidades do amor (“Não sou capaz de
amar mulher alguma, / Nem há mulher talvez capaz de amar-me”
), Augusto dos
Anjos fez da obsessão com o próprio “eu” o centro do seu pensamento. Não raro,
o amor se converte em ódio, as coisas despertam nojo e tudo é egoísmo e angústia
em seu livro patético (“Ai! Um urubu pousou na minha sorte”). A vida e
suas facetas, para o poeta que aspira à morte e à anulação de sua pessoa, reduzem-se
a combinações de elementos químicos, forças obscuras, fatalidades de leis físicas
e biológicas, decomposições de moléculas. Tal materialismo, longe de aplacar sua
angústia, sedimentou-lhe o amargo pessimismo (“Tome, doutor, essa tesoura e
corte / Minha singularíssima pessoa”
). Ao asco de volúpia e à inapetência
para o prazer contrapõe-se porém um veemente desejo de conhecer outros mundos,
outras plagas, onde a força dos instintos não cerceie os vôos da alma (“Quero,
arrancado das prisões carnais, / Viver na luz dos astros imortais”
).

A métrica rígida, a cadência musical, as aliterações e rimas preciosas dos versos
fundiram-se ao esdrúxulo vocabulário extraído da área científica para fazer do
Eu um livro que sobrevive, antes de tudo, pelo rigor da forma. Com o tempo,
Augusto dos Anjos tornou-se um dos poetas mais lidos do país, sobrevivendo às
mutações da cultura e a seus diversos modismos como um fenômeno incomum de aceitação
popular.

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