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Auto da Lusitânia, de Gil Vicente

by Lucas Gomes

O Auto da Lusitânia, uma das últimas peças de Gil vicente, foi escrito em 1531 e representado pela primeira vez em 1532, perante a corte de D. João III quando nasceu seu filho, D. Manuel.

A peça trata das bodas de Lusitânia e Portugal (personagens mitológicos), mas Gil Vicente, como muitas vezes faz, mistura no enredo e nos diálogos muitos temas, personagens, e cenas que constituem como “diversões” à margem do tema maior.

Lusitânia é filha de Lisibea (Lisboa) e do Sol, e por ela se apaixonou um caçador grego de nome Portugal. Quando os amores parecem desencaminhar-se, acorrem às deusas (diesas) gregas, com cuja proteção se decide então o casamento. Este o tema, que se desenrola da seguinte maneira: comça o auto com vários diálogos e recitativos de pessoas comuns acerca dos assuntos de amor e outros, alguns picarescos como convém a uma farsa, até que entra em cena o Licenciado, que faz o papel de narrador e representa Gil Vicente; ele introduz o tema das bodas dizendo que o Sol viu Lisibea nua sem nenhuma cobertura (…) e houve dela uma filha tão ornada se sua luz, que lhe puseram nome Lusitânia, que foi diesa e senhora desta Província. Passados tempos, um famoso cavaleiro grego de nome Portugal ouviu falar da boa caça na serra de Sintra (serra da Solércia), e como este Portugal, todo fundado em amores, visse a formosura sobrenatural de Lusitânia, filha do Sol, improviso se achou perdido por ela.

O texto tem ressonâncias no presente de Gil Vicente, que busca formar um panorama de sua terra, apreendendo a totalidade de suas raízes culturais.

O Auto da Lusitânia classifica-se como uma fantasia alegórica. A peça é dividida em duas partes distintas:

– na primeira parte, assiste-se às atribuições de uma família judaica;

– na segunda parte, assiste-se ao casamento de Portugal, cavaleiro grego, com a princesa Lusitânia. Dois demônios, Belzebu e Dinato, que aparecem no texto vêm presenciar o casamento e escutam o diálogo entre Todo o Mundo e Ninguém.

O autor deu o nome de Todo o Mundo e Ninguém às suas personagens principais desta cena. Pretendeu com isso fazer humor, caracterizando o rico mercador, cheio de ganância, vaidade, petulância, como se ele representasse a maioria das pessoas na terra (todo o mundo). E atribuindo ao pobre, virtuoso, modesto, o nome de Ninguém, para demonstrar que praticamente ninguém é assim no mundo.

“Todo o Mundo” era um rico mercador, e “Ninguém”, um homem pobre. Belzebu e Dinato tecem comentários espirituosos, fazem trocadilhos, procurando evidenciar temas ligados à verdade, à cobiça, à vaidade, à virtude e à honra dos homens.

Vejamos:

Entra Todo o Mundo, rico mercador, e faz que anda buscando alguma cousa que perdeu; e logo após, um homem, vestido como pobre. Este se chama Ninguém e diz:

Ninguém: Que andas tu aí buscando?

Todo o Mundo: Mil cousas ando a buscar:
                         delas não posso achar,
                         porém ando porfiando

                         por quão bom é porfiar.

Ninguém: Como hás nome, cavaleiro?

Todo o Mundo: Eu hei nome Todo o Mundo
                         e meu tempo todo inteiro
                         sempre é buscar dinheiro
                         e sempre nisto me fundo.

Ninguém: Eu hei nome Ninguém,
               e busco a consciência.

Belzebu: Esta é boa experiência:
             Dinato, escreve isto bem.

Dinato: Que escreverei, companheiro?

Belzebu: Que Ninguém busca consciência.
              e Todo o Mundo dinheiro.

Ninguém: E agora que buscas lá?

Todo o Mundo: Busco honra muito grande.

Ninguém: E eu virtude, que Deus mande
               que tope com ela já.

Belzebu: Outra adição nos acude:
              escreve logo aí, a fundo,
              que busca honra Todo o Mundo
              e Ninguém busca virtude.

Ninguém: Buscas outro mor bem qu’esse?

Todo o Mundo: Busco mais quem me louvasse
                         tudo quanto eu fizesse.

Ninguém: E eu quem me repreendesse
               em cada cousa que errasse.

Belzebu: Escreve mais.

Dinato: Que tens sabido?

Belzebu: Que quer em extremo grado
              Todo o Mundo ser louvado,
              e Ninguém ser repreendido.

Ninguém: Buscas mais, amigo meu?

Todo o Mundo: Busco a vida a quem ma dê.

Ninguém: A vida não sei que é,
               a morte conheço eu.

Belzebu: Escreve lá outra sorte.

Dinato: Que sorte?

Belzebu: Muito garrida:
              Todo o Mundo busca a vida
              e Ninguém conhece a morte.

Todo o Mundo: E mais queria o paraíso,
                         sem mo Ninguém estorvar.

Ninguém: E eu ponho-me a pagar
               quanto devo para isso.

Belzebu: Escreve com muito aviso.

Dinato: Que escreverei?

Belzebu: Escreve
              que Todo o Mundo quer paraíso
              e Ninguém paga o que deve.

Todo o Mundo: Folgo muito d’enganar,
                         e mentir nasceu comigo.

Ninguém: Eu sempre verdade digo
               sem nunca me desviar.

Belzebu: Ora escreve lá, compadre,
              não sejas tu preguiçoso.

Dinato: Quê?

Belzebu: Que Todo o Mundo é mentiroso,
              E Ninguém diz a verdade.

Ninguém: Que mais buscas?

Todo o Mundo: Lisonjear.

Ninguém: Eu sou todo desengano.

Belzebu: Escreve, ande lá, mano.

Dinato: Que me mandas assentar?

Belzebu: Põe aí mui declarado,
              não te fique no tinteiro:
              Todo o Mundo é lisonjeiro,
              e Ninguém desenganado.

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