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Bichos, de Miguel Torga

by Lucas Gomes

Escrito em 1940, Bichos é um clássico da literatura portuguesa.
O grande escritor português – também poeta, teatrólogo, contista e memorialista
– Miguel Torga, inventa um mundo de bichos humanizados.

São catorze contos, onde o mistério da vida nos aparece no seu esplendor,
perfilando bicho, homem e natureza numa comunhão fraternal, em que todas as
peças são necessárias ao puzzle da vida.

Bichos é, também, o retrato fiel do viver trasmontano; uma vida de suor e lágrimas,
por entre escolhos e lobos, mas sempre repleta daquela alegria que só o sofrimento
pode justificar: a alegria de ser, de viver em comunhão total coma natureza, em
fusão permanente com os elementos.

Miguel Torga fez desta obra um testemunho impar da união natural entre os Homens
e os Bichos – a simbiose da vida. No meio dos dois, a terra, o traço que lhes
dá vida. No trabalho, nas paixões e nas dores, os bichos compartilham com os homens
as esperanças e as desgraças.

Curiosa a palavra: “bichos” e não “animais”. Bichos são, talvez, os animais
humanizados, irmanados com o homem na mesma luta; na vida.

A rudeza das torgas, a aspereza das montanhas, a magreza das terras e a solidão
do tempo, misturam-se num universo, cantado em poesia por um mestre que foi
apenas um homem. Um homem que viveu e lutou contra um mundo ainda mais agreste,
ainda mais hostil: o mundo da ditadura.

São Bichos animais e Bichos homens que se entrelaçam nas
páginas deste livro de contos. Bichos personagens, mas sentindo e agindo como se
de humanos se tratassem, tornando o leitor seu cúmplice.

Amizade, traição, amor, ódio e ambição desfilam pelo livro,
sendo tratados como uma lição essencial de vida.

Linguagem

A linguagem, simples mas cuidada é uma das mais belas expressões da cultura
popular: um vocabulário fidelíssimo à realidade trasmontana. Quem conhece
aquelas terras, reconhece-se em Torga. Mas a poesia latente por detrás destas
estórias não é de Torga. É da terra. Por isso, este livro não é só uma criação
do seu autor; é muito mais do que isso: é uma emanação da terra. E neste
conceito de “terra” podemos englobar os homens e os seus irmãos “bichos” – os
três elementos constituem um todo, um cosmos único onde Torga participa como
mensageiro, personagem e intérprete.

Livro simples, transparente, honesto e sentido. Um grito
amargo e profundo da terra que encerra os homens. Uma fusão total entre a terra
e o ser humano, como se tudo emergisse de uma amálgama onde terra, bichos e
homem fossem a pasta de onde nasceu a ordenação universal das coisas e dos
seres.

Enredo

É através dessa pequena arca de Noé, feita de bichos e gente, que Torga aponta
as injustiças do dia-a-dia, trazendo novos modos de olhar. Esta coletânea constitui
um marco do conto em Portugal. Encontramos na obra, um Miguel Torga paradoxal,
contraditório, inexplicável, que mistura o sagrado e o profano, que é simultaneamente 
fruto e espelho das fragas maternas.

Animais com sentir
humano ou seres humanos vestidos de animais. Ou uma irmandade de animais e
homens. Tudo numa argamassa de vida. O cão Nero, o galo Tenório, o jerico
Morgado, o Ladino, o Ramiro. E a Madalena, caminhando na contra mão da
contradição entre cultura e vida. A
salvação do Homem e da Humanidade reside, para Miguel Torga, num regresso às
origens e ao seio da Natureza-Mãe, “dama de grande senhoria” que dignifica tudo
o que vive na sua intimidade, para que ela devolva ao Homem a naturalidade, a
grandeza, a verticalidade e a natureza instintiva que caracterizam os animais
íntegros e monolíticos que povoam a coletânea Bichos. É também
impossível não observar o papel da natureza e do espaço amplo do campo na vida
dos personagens.


Conto escolhido:

Mago

Mago respirou fundo.
Abriu  o nariz e encheu o peito de ar ou de luar, não podia saber ao certo,
porque a noite era clara como o dia e parada como uma montanha. Mas fosse de
frescura ou de luz a onda que bebera num trago, de tal modo o inundou, que em
todo o corpo lhe correu logo um frêmito de vida nova. Esticou-se então por
inteiro, firmado nas quatro patas, arqueou o lombo, e deixando-se ficar assim
por alguns instantes, só músculos, tendões e nervos, com os ossos a ranger de
cabo a rabo. Arre, que não podia mais! Aquele mormaço da sala dava cabo dele.
Deixava-o sem ação, bambo, mole e morno como o cobertor de papa onde dormia. A
que baixezas a gente pode chegar! Ah, mas tinha que acabar semelhante
degradação! Não pensasse lá agora a senhora D. Maria da Glória Sância que estava
disposto a deixar-se perder para sempre no seu regaço macio de solteirona. Não
faltava mais nada! E, se lhe restavam dúvidas, reparasse no que estava a
acontecer naquele momento: ela a ressonar sozinha, na cama fofa, enquanto ele
enchia os pulmões de oxigênio e de liberdade. É certo que a deixara primeiro
adormecer, e só então, brandamente, deslizara de seus braços para o tapete e do
tapete para a rua, através do postigo da cozinha. Uma questão de delicadeza,
apenas. Porque, afinal, não havia vantagem nenhuma em fazer as coisas à bruta e
ofender quem só lhe queria bem… Que diabo, sempre a senhora D. Maria Sância, a
que até um fio de oiro lhe comprara para o pescoço! Que, considerando bem, por
essas e por outras é que chegara àquela linda situação…

– Ouvi dizer que já nem sardinhas comes?!

– Essa agora! É todos os dias…

– E que nunca mais caçaste?

– Ainda esta manhã…

Piadinhas do Lambão. É claro que os mimos de D. Sância lhe haviam deformado o
gosto… Metia-lhe os petiscos ao focinho, tentava-se! E havia por onde escolher,
de mais a mais! Quanto a ratos, que necessidade tinha de perder o tempo, debruçado
três horas sobre um buraco, sem mexer sequer a menina dos olhos, à espera dum
pobre diabo qualquer que ressonava lá no fundo? Deixá-los viver! As coisas são
o que são. Em todo o caso, ainda comia a sua pescada crua e deitava honradamente
a mão a uma ou outra borboleta branca, sem falar nas andorinhas novas e nos pardalecos
que filava por desfastio na primavera. Que demónio!

– Mas que não saias de casa, sempre agarrado às saias…

Na verdade, saía pouco. Outros tempos, outros hábitos. Banqueteava-se e
ficava-se pelas almofadas… Digestões difíceis, vinha-lhe um migalho de
sonolência… Às vezes tentava reagir. Mas o raio da velha, mal o via pôr o pé
na soleira da porta, perdia a cabeça! Parecia uma sineta!

– Mago! Mago! Bicho, bichinho!

Regressava aos lençóis, claro. Contrariado, evidentemente. Mas quê! Era o pão…
O pãozinho na boca! Que remédio senão torcer caminho e, com as unhas
discretamente recolhidas, continuar as carícias de algodão em rama no cachaço da
dona…

– E que deixaste a Faísca!…

– Eu?

– Que anda metida com o Zimbro… Pelo menos é o que consta. Que teve até cinco
pequenos dele…

– Meus! Muito meus! Do meu sangue!

Pantominice. Um triste chanato na honra do convento. Paleio de chavelhudo
manso… a ninhada pertencia inteirinha ao Zimbro. Até pela pinta se via. Todos
com o mesmo olhinho  remelão… O que ele era era um parrana, um infeliz, embora
o não confessasse. Os mimos de D. Sância tinham-no desgraçado. Ah, mas a coisa
ia mudar de figura! Estava farto de ser desfeiteado. Ainda há pouco…
chegara-se ao pé da mulher, disposto a impor sua autoridade.

– Ouve lá: disseram-se que mos andas a pôr para aí com todo mundo?

E recebe esta pelas ventas:

– Bem haja eu!

– Bem hajas tu?!

– Nunca guardei respeito a maricas!

Só a tiro! Mas a verdade é que a Faísca tinha razão. Lá de ano a ano é que vinha
procurá-la, e isso de gado fêmeo quer assistência.

Além disso, pesadão, desconsolado. E até esquecido dos ganidos dessas horas…
Uma vergonha!

– Aparece logo à noite, pelo Tinoco… Há reunião. E adeusinho…

– Adeus, Lambão.

Foi no quintal, à tarde, quando a D. Sância dormia a sesta. O Lambão,
empoleirado no muro, rondava a cozinha da vizinhança, onde assavam carapaus. Por
acaso chegara à janela nesse momento, vira-o e fizera-lhe sinal. E o outro, de
boa ou má fé, abrira o saco. Mas há males que vêm por bem. Depois da conversa,
pensara maduramente no caso, e ali estava agora disposto a ressuscitar daquela
vida perdida em que o destino o metera.

Sim, ali estava, a dois passos do Tinoco, o clube da gataria de meia-idade. Bem
situado, com saída para dois bairros da cidade, fora fundado pelo maior
valdevinos da geração: o Hilário. Era um telhado corrido, quase plano, amplo,
alto, mas de onde se podia cair de qualquer maneira numa aflição. Um achado.
Como a casa servia de armazém, o Hilário viu de relance as condições do local. E
logo no outro dia, os beijos, as mordedelas, os arranhões e os queixumes do cio
foram ali.

Bons tempos esses! Namorava então  a Boneca, uma gatinha borralheira de a
gente se perder.

– Ora viva!

– Miiau…

– Seja bem aparecida, a minha bonequinha!

– Miiau…

Mimo da cabeça aos pés. Mas um rebuçadinho! Depois enrodilhara-se com a
Moira-Negra, um coiro velho, curtido e batido. Cada guincho que abria a noite!

– Cala-te lá com isso, mulher!

Isso calava ela! Acabou por se aborrecer. Por fim veio a lambisgóia da Perricha…
Uns trabalhos. Ciúmes, fraqueza, dores de cabeça, o diabo!

– Matas-te, filho, arruinas-te…

Palavras sensatas da mãe.

– Muda de vida, homem! Essa excomungada leva-te à sepultura.

Mas quê! O vício pode muito.

Até que a mãe morreu de velhice e desgosto, a Perricha desapareceu do bairro e
ele foi cair por acaso no quintal da D. Sância.

– O bichinho está doente. Se calhar é fome…

E a ternura da senhora nunca mais o largou. A princípio ainda tentou reagir, mas,
por fim, o corpo, o miserável corpo, acostumou-se ao ripanço. A parva da santanaria
cuidava que era amor correspondido. Palerma! Amizade sincera não é com gatos.
Simplesmente, quem brinca aos afogados, afoga-se. Com o andar do tempo, a moleza
foi tomando conta dele… E pronto. Quando reparou, estava perdido. Às vezes tinha
tentações do inferno. Infelizmente, as vidas iam ruins. Virava-se um balde de
restos, e não se aproveitava uma espinha. Que remédio, pois, senão contemporizar…
Mas cara aposentadoria! Considerando bem, melhor fora que o estafermo de solteirona
nunca lhe tivesse aparecido. Mais valia andar pelado e a cair de fome e ser capaz
de responder ao pé da letra aos sarcasmos que agora lhe atiravam.

– Olha o Mago!… Olha o milionário!…

O patife do Tareco. Era de o derreter logo ali! A desgraça é que não podia
passar da mansa indignação que o roía. Nem forças, nem coragem para mais. E,
logo por azar, com o clube à cunha! Parecia de propósito. Raios partissem a D.
Sância, e mais quem lhe gabava as almofadas! Por causa delas, pouco faltava para
lhe cuspirem na cara!

– Com que então de visita aos bairros pobres? Obra de assistência ao desvalidos,
não?

Até o bandido do Zimbro. Vejam lá! O engraçado! Não contente de lhe roubar a mulher,
de lhe pregar um par deles do tamanho duma procissão, vinha ainda com provocações
à vista de toda a gente. Ah, mas estava redondamente enganado, se cuidava que
não recebia o troco devido.

– O cavalheiro seja mais delicado…

– Reparem nas falinhas dele… A tratar os amigos por cavalheiros!

– Amigos? Eu não tenho amigos da sua laia!

– Pesam-lhe na testa, coitado!

Desembestou. Cego da cabeça aos pés, atirou-se ao abismo. Infelizmente as ensanchas
do Zimbro eram outras. Tinha raiva, tinha dentes, tinha unhas e fôlego. Contra
tais armas, que podia a simples indignação dum pobre mortal, gordo e lustroso?
Servir de bombo da festa… É que nem a primeira acertou! Ágil e musculado, e
com a maleabilidade de uma cobra, o inimigo furtou-se à sua fúria, e ripostou
a valer ao golpe esboçado. Depois, foi o bom e o bonito! A seguir, uma saraivada
de investidas traiçoeiras, meia dúzia de navalhadas de liquidar um homem. Só visto!
No fim da luta, quando já não podia mais e se confessou derrotado, sangrava e
gemia tanto, que até um polícia, em baixo, na rua estreita, se comoveu. O clube,
esse, parecia doido de alegria. A Faísca rebolava-se no chão, de contente.

Fugiu desvairado pelos telhados. A lua, cada vez mais branca lá no alto, olhava-o
com desdém. A cidade, adormecida, parecia um cemitério sem fim. Da torre duma
igreja, saía um pio agoirento.

Jogara naquele lance o resto da dignidade. E perdera. Dali por diante, seria
apenas uma humilhação, sem esperança. Ele, que tivera nas mãos possantes e
nervosas o corpo fino e submisso da Boneca, ele, o escolhido da Moira-Negra,
ele, o companheiro de noitadas do Hilário, ele, Mago, relegado definitivamente
para o mundo das pantufas e dos tapetes! Proibido para o resto da existência de
pensar sequer numa baforada da úmida frescura que agora lhe atravessava as
ventas e lhe deixava cantarinhas no bigode… Condenado para sempre ao bafio da
maldita sala de visitas da D. Sância! Negra sorte! E tudo obra do coirão da
velha… Se não fosse ela, em ver de ir ali esquadrilhado e a mancar da mão
esquerda, estaria no Tinoco a soltar ganidos com os outros, depois de ter feito
o Zimbro em pedaços… Assim, arrastava-se penosamente por aquele caminho de
desespero, tal e qual um moribundo a despedir-se da vida… Miséria de destino!
Vexado, vencido, retalhado no corpo e na alma…E tudo obra do estupor da
sanataria!

Vinha rompendo a manhã. Um sino ao longe deu cinco horas. Abriam-se as primeiras
janelas. Grandes laivos avermelhados anunciavam a chegada próxima do sol.

Parou. Lambeu a pata doente e sacudiu-se, num arrepio. Uma lassidão profunda
começava a invadi-lo. Maldita D. Sância! Se nunca tivesse conhecido a tal
sujeita…

Olha, olha, a enevoar-se-lhe a vista! Queriam ver que ia desmaiar?!

Encostou-se a uma chaminé, e ficou algum tempo sem dar acordo de si, a arfar
penosamente. Até que uma onda de energia o trouxe de novo ao mundo. Arregalou os
olhos. Estava melhor, felizmente! Já enxergava claro outra vez. Podia continuar.

Em que trabalhos o metera o raio da senhoreca! E louvar a Deus safar-se com vida
da brincadeira… Coça valente… Por um triz que não se ficava… Muita
resistência tinha ele ainda!

A alguns metros apenas do jardim da casa, cuidou que tornava a desfalecer. E só
então é que reparou: deixava um rastro de sangue por onde passava…

Fez das tripas coração e lá conseguiu equilibrar-se e chegar ao pequeno muro que
vedava o paraíso da sua perdição. Saltava? Não saltava? Que infâmia, regressar
aos mimos da D. Sância! Que nojo! Que ordinarice!

Mas a que propósito vinham agora as perplexidades e as recriminações? Sim, a que
propósito? Fartinho de saber que nem sequer lhe passara pela cabeça a idéia de
resolver o caso doutra maneira! Ao menos fosse sincero! De resto, que esforço
concreto fizera para se libertar? Nenhum. Ainda não havia uma dúzia de horas,
ouvira a voz de Lambão como um eco da própria consciência… E, afinal, ali
estava outra vez! E viera de livre vontade… Ninguém o obrigara… Já roído de
remorsos? Ora, ora! Outro fosse ele, nem aquela casa encarava mais. E voltara!
Sim, voltara miseravelmente… E à procura de quê? Da paz podre, dum conforto
castrador… Que abjeção! Que náusea!

E, sem querer, sem poder aceitar a sua degradação, Mago entrou pelo postigo da
cozinha e foi-se deitar entre os braços balofos da D. Sância.

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