Home EstudosLivros Boca de chafariz, de Rui Mourão

Boca de chafariz, de Rui Mourão

by Lucas Gomes

Boca de Chafariz

, de Rui Mourão, foi publicado em 1991, onde o autor conta
uma história fantasticamente mineira: imagina Ouro Preto sendo destruída por um
avassalador temporal e onde figuras que se relacionam com sua história voltam
para salvá-la. Misturam-se surrealisticamente Aleijadinho e Rodrigo Mello Franco,
Tiradentes e Aloísio Magalhães, os inconfidentes, Guignard, Tarquínio de Oliveira,
Edson Mota, Jair Inácio e muitas outras personagens vivas e mortas numa miscelânia
da história.

Portanto, é uma narrativa histórica que constrói-se na confluência entre o ficcional
e o histórico. Boca de chafariz revela-nos saborosas outridades: as personagens
históricas de Ouro Preto da Inconfidência atuam noutra situação histórica, de
1979, ano em que a cidade foi castigada por uma enchente. Nessa versão, as personagens
de Mourão assumem a “persona” de seus personagens históricos para, conhecendo-os
interiormente, figurar-lhes a essencial humanidade.

A tensão entre o passado e o presente, um dos eixos geradores da obra, é apresentada desde o início do
livro.

O romance é considerado por muitos críticos o melhor de Rui Mourão, que assume e revela a sua ligação
afetiva com Ouro Preto: “Escrevi o romance Boca de Chafariz, uma estória de renascimento.
Renascimento da cidade-monumento contra todos os fatores que tramam a sua degradação, destruição e morte.
Renascimento do escritor que, deixando para trás um passado de criatividade que nunca o desonrou, desejava
se comprometer, noutro plano, com um presente de mais conseqüente renovação, de ambição de maior
perenidade. Ouro Preto proporcionou-me talvez a aventura limite da minha carreira intelectual. Por isso eu
a enxergo sempre com olhar de encantamento.” (Suplemento Literário do Minas Gerais, Belo Horizonte,
abr. 2004).

Baseando-se em um fato real, como já visto, fartamente noticiado pela mídia,
o autor se aproveita para construir a sua versão da história ouropretana, a partir
de uma perspectiva múltipla que faz aflorar tanto a necessidade de preservação
da cidade-monumento, quanto a sintonia com a vida do cidadão comum que a habita.
O livro utiliza-se das notícias de jornais para alicerçar sua narrativa, em que
a catástrofe pluvial que se constituiu em ameaça de morte para Ouro Preto estende
sua ameaça a vários outros aspectos, relativos à ordem cultural e social da cidade.
Os estragos causados pelas chuvas e noticiados pelos jornais da época, ao participarem
do relato romanesco como base de sua construção, tornam-se bastante próximos aos
monumentos e marcas históricas que fizeram de Ouro Preto Patrimônio Cultural da
Humanidade, na medida em que destacam a possibilidade de sua ruína. No caso, um
patrimônio em risco e que necessita de defensores, necessidade que os narradores
em primeira e terceira pessoa que se pronunciam em Boca de chafariz tentam
suprir. Esses narradores, ao superarem as fronteiras que separam fictício, imaginário
e realidade, permitem que se caracterize o referencial a que se remetem, sem se
deixarem determinar por ele.

A estrutura do romance parece bem de acordo com a aventada transgressão, quando
se divide em capítulos enunciados alternadamente por narradores em primeira pessoa
e pelo narrador em terceira pessoa que canaliza a voz de seu autor implícito.
Falam no romance, em primeira pessoa, narrando a sua versão da história construída
a partir de Ouro Preto, personagens da história mineira como Aleijadinho, considerado
o maior artista colonial brasileiro com suas esculturas e trabalhos arquitetônicos
mundialmente reconhecidos; Tiradentes, partícipe da Inconfidência Mineira, elevado
a herói nacional e figura emblemática do processo de independência do Brasil face
a Portugal; Antônio Dias, bandeirante paulista que iniciou a ocupação/construção
da cidade; Luís da Cunha Menezes, capitão-general e governador da Capitania de
Minas Gerais, conhecido por seus desmandos administrativos e figura central de
uma obra satírica, Cartas
Chilenas
, da autoria de Tomás Antônio Gonzaga, poeta e participante da
Inconfidência Mineira e outros.

A essas vozes junta-se a de um narrador em terceira pessoa que ora se refere aos
governantes da década de 1970 – o Ministro da Educação e Cultura; o presidente
da Embratur; os dirigentes do Patrimônio Histórico Nacional e do Departamento
Nacional de Estradas e Rodagens; ora à população atual da cidade – Bené da Flauta,
artesão, poeta e músico; Jair Afonso Inácio, restaurador; um estudante da Escola
de Minas e de Metalurgia, Napoleão Gustavo de Souto, o Cupica; ora a figuras que
atuaram em diversos níveis na cidade, como Claude-Henri Gorceix, francês que em
finais do século XIX foi convidado a instalar a Escola de Minas e de Metalurgia;
Tarquínio J. B. de Oliveira, historiador paulista que se dedica à história de
Ouro Preto.

Por meio dessa estratégia textual, Boca de chafariz conduz o leitor a
reconsiderar, na estreita encruzilhada em que se encontram história e ficção,
a inserção do mito na realidade vivenciada por habitantes de espaços que se destinam
a preservar a memória do país. Ressalte-se que, no livro, as vozes do passado,
já preservadas pela versão oficial dos livros de História e pelos documentos referentes
à sociedade colonial ouropretana, enunciam-se em primeira pessoa, indiciando outras
possibilidades de leitura para os acontecimentos de que foram protagonistas. As
vozes desses narradores perfazem o contorno da cidade com seus símbolos, personagens,
histórias e mitos. Dessa forma, consegue-se um efeito discursivo bastante eficaz,
na medida em que se deixam perceber as várias perspectivas que intervêm na construção
do passado e do presente.

O elemento água, desde o título, perpassa o motivo principal do enredo e desenlace da
narrativa. Contamina ainda a fluidez da escrita que manifesta, a um tempo, o desejo de preservação e
de atualização deste Patrimônio Cultural da Humanidade ameaçado.

Na tentativa de exprimir toda a tensão do corpo-cidade, cindido nas partes que
refletem a sua conformação e história, Boca de chafariz acolhe tanto
o tom profético, invocativo e, pode-se afirmar, barroco, que delineia predominantemente
o romance, quanto o informativo, rápido e constatativo discurso mediático. Palavra
performática, do aedo, do profeta, dialogar constante entre as diversas vozes
de diferentes épocas, pelas águas do chafariz jorram as várias configurações que
revestem os mitos, os monumentos e o povo ouropretano, postos em contato por um
movimento que refaz/reconta continuamente a sua história.

A estrutura do livro imita a estrutura da cidade em seu movimento de construção. A
composição de seus capítulos remete o leitor às injunções políticas que contribuíram para as
modificações sofridas pelo berço de ouro que despertou a cobiça da metrópole e também possibilitou
ao Brasil adquirir forças para constituir-se em nação.

Dentre as inúmeras personagens do livro, foram escolhidas as figuras do Aleijadinho;
de Bené da Flauta; e, em menor escala, de Tomás Antônio Gonzaga e de Cupica, para
exemplificar o rico e multifacetado intercâmbio que se opera no romance. Por meio
delas, percebe-se que a superposição das imagens, selecionadas para construir
a cidade-palco da narrativa de Boca de chafariz, também desvelam facetas
inexploradas de seu referente.

Aleijadinho, artista maior do estilo barroco que a Colônia instalou nos trópicos,
aparece no romance a partir de sua primeira obra, o chafariz que dá origem ao
título do livro e que será objeto da pesquisa feita pelo historiador e também
personagem Tarquínio J. B. de Oliveira. Pela análise arqueológica da peça, o historiador
entrevê a possibilidade de haver envolvimento entre a Inconfidência Mineira e
o movimento maçônico, o que traria nova interpretação ao episódio e seria a mais
importante descoberta da área. Apesar de não ter sido comprovada, tal potencialidade
permanece enquanto índice da nova interpretação da história de que o romance pretende
participar, na releitura que faz dos eventos acontecidos na cidade. Por meio dela,
distâncias espaciais, temporais e ideológicas serão minimizadas, apesar de ameaçadas
de extinção e talvez mesmo por causa dessa ameaça.

Nesse sentido, a personagem Aleijadinho pode ser tomada também como representativa
da tensão do corpo-cidade ameaçado de desfiguração e desaparecimento, tensão que
o romance focaliza e que faz levantar as várias vozes que nele se pronunciam em
sua defesa. Aleijadinho, quando já acometido pela doença (lepra) que o maltratava,
reconhece a enorme dificuldade de sobreviver como mestiço numa sociedade escravocrata
e colonial. O aspecto pode ser inferido pelas figuras de feição grosseira e atormentada
das imagens por ele esculpidas para igrejas, capelas e adros de cidades mineiras.
Mas será delineado explicitamente em trechos narrativos que longamente discorrem
sobre os sofrimentos do artista, como os que aparecem na citação que se segue,
retirada de um dos três capítulos que o romance lhe destina:

Eu pude sofrer no meu canto, como talvez ninguém sofreu no mundo, o drama de
não ter sido apenas um homem – de ter sido acima de tudo uma contradição autodestrutiva.
(…) É possível a um mulato sair do seu canto sem problemas, num ambiente
dominado pela escravidão? Preciso reconhecer em definitivo esse fato e não continuar
insistindo na tentativa até ridícula de querer convencer a mim mesmo de que houve um
tempo em que não tive consciência da minha origem de senzala. O êxito profissional e a
proteção dispensada por meu pai acabaram sendo escudos contra tudo, mas não posso me
esquecer daquilo que, na época, se passava em meu coração. A cor da pele pesando-me
como chumbo. (…) E da mesma maneira que evitava na rua contatos com pessoas que
não conhecia e que me tratavam de cima para baixo, no fundo não desejava – essa é que
era a verdade – uma identificação de fato com minha mãe. A descoberta pelos outros
daquela filiação de certa forma me humilhava. A lembrança disso, que não me
abandonava, é que passou a atormentar-me com tanto remorso. (…) Renunciei à antiga
entusiasmada disposição para a conquista dos espaços à minha frente, compreendi afinal
que a realidade tinha múltiplos compartimentos e a nossa limitação para percorrê-los já
vinha estabelecida a partir do berço. (…) Via com desgosto que, na minha juventude, fora
do círculo de meu pai, só tive bom acolhimento no meio artístico por parte de mulatos,
como os músicos. Na irmandade dos pardos é que de fato existia ambiente para mim.
(p.
195-196-197-198)

Pelas esculturas e pelo trecho citado, percebe-se a contraditória posição que o elemento nativo
ocupava na colônia. De um lado, propenso a demonstrar fidelidade ao modelo europeu, que lhe
poderia assegurar espaço na sociedade e nos cânones da arte universal. De outro lado, o
reconhecimento de que só os elementos característicos da terra lhe confeririam identidade, o
privilégio de fundar uma expressão própria. Tal peculiaridade da tradição brasileira, presente
também nas colônias de fala espanhola, remete ao fato de que, em ambas, o desejo de compartilhar
valores ocidentais surge mesclado à busca de legitimação das particularidades locais. Essa situação
tensional pode ser percebida na narrativa através da figura de Aleijadinho e dos signos de
nacionalidade, agrupados na arquitetura, monumentos e artefatos de Ouro Preto. Se a qualidade
dessa expressão permitiu à cidade ser aceita como Patrimônio Cultural da Humandidade, o descaso
das autoridades quanto a suas características de solo permite que o reconhecido patrimônio seja
ameaçado de extinção pelas chuvas. Esse aspecto delineia, no livro, outro tipo de ameaça que, por
subrreptícia e menos visível, se torna bem mais difícil de ser anulada. Percebe-se tal nuance na
constituição da personagem Bené da Flauta.

A Aleijadinho o romance alia a figura de Bené da Flauta. Artesão contemporâneo,
Bené vende seus trabalhos a turistas na Praça Tiradentes, ao mesmo tempo em que
executa músicas de sua autoria para atrair fregueses. O narrador a ele se refere
como:

Poeta permanente, músico e compositor nos momentos de folga, principalmente
escultor popular e mais principalmente ainda bêbado vinte e quatro horas por dia,
Benedito Pereira da Silva, Bené da Flauta, ou apenas Bené, viu o mundo no município de
Barra Longa. Mas a sua história era toda ouro-pretana.
(p. 101)

Necessário é ressaltar que os capítulos sobre Bené sucedem-se aos de Aleijadinho.
Figura com que se fecha o romance, Bené arma, também em pedra sabão, como seu
genial antecessor, a seguinte frase: OURO PRETO PATRIMÔNIO CULTURAL DA HUMANIDADE.
Por sua simplicidade, a peça contrapõe-se à famosa obra de Aleijadinho. Como se
pode notar, tal estratégia narrativa põe em jogo a questão do julgamento de valor,
tanto no campo artístico, quanto no social e humano. Ao focalizar preferencialmente
o lado humano, carente e problemático de Antônio Francisco Lisboa, que no livro
suplanta a figura do célebre Aleijadinho, e dedicar-lhe a mesma simpatia com que
se refere a Bené, o romance permite abonar o encaminhamento da reflexão que venho
desenvolvendo. Aproximando as duas figuras, o livro suscita indagações variadas:
o valor do artesanato em confronto com a arte maior; a sobrevivência/convivência
do cotidiano de uma cidadezinha do interior mineiro face a sua eleição como Patrimônio
Cultural da Humanidade; o lugar social do elemento mestiço diante da hegemonia
do europeu, entre outras.

O enfoque que Boca de chafariz confere à personagem coloca-a também como elemento participante da
conservação/modificação da história da cidade, como se nota no trecho que se segue:

À frente do Restaurante Pilão, Bené espalhava as peças que trouxera no saco.
Esculturas de pedra sabão: a estátua de Tiradentes, os prédios da praça, casas e mais
casas. Foram dispostas cada qual na sua posição correta, reconstituindo praticamente o
centro da cidade. Agachado, ele corrigia o alinhamento das ruas. Grupo enorme de
pessoas à roda. Começava-se a apontar:
– Olha a Casa da Baronesa e a Câmara.
– Olha o restaurante Casa do Ouvidor.
– Olha a casa do Doutor Teódulo e a Igreja de São Francisco.
– Olha a Casa dos Contos.
( p. 305-306).

Em Boca de chafariz interagem e atualizam-se a arquitetura da
cidade e o elemento humano, recriador e herdeiro daquela e que lhe confere diferentes significados
em cada um de seus momentos.

Fonte parcial: Maria do Carmo Lanna Figueiredo, Daniel Gouvêa (PUC-Minas)

Posts Relacionados