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Boitempo I e II, de Carlos Drummond de Andrade

by Lucas Gomes

Carlos Drummond de Andrade acabou com a estrutura tradicional da linguagem literária
quando inventou uma palavra composta para dar nome aos seus poemas memorialísticos:
Boitempo.

Trata-se de um livro de recordações poéticas
da infância, um momento em que o menino faz a passagem do mundo rural
para o colégio interno. A roça está representada pelo boi,
um animal calmo, que rumina indefinidamente os alimentos – simbolizando também
a própria condição memorialística deste “eu” que
não termina nunca de digerir suas recordações. O boi é
a encarnação de um tempo perdido e materializa uma idade campestre
que se perdeu mas que continua viva na lenta trituração da linguagem
lírica de Drummond.

Os volumes I e II de Boitempo reúnem poemas de Carlos Drummond
de Andrade publicados anteriormente nos livros Boitempo, Menino Antigo
e Esquecer para lembrar. O autor preferiu esta reunião, uma vez
que os poemas tratam da mesma seqüência de tempo, existindo nos três
livros uma única temática, sua infância e adolescência,
emolduradas pela tradição de tempo e de lugar. Os títulos
das divisões da obra indicam as intenções do poeta: Pretérito
Mais-que-perfeito
, Morar nesta Casa, Notícias de Clã,
Primeiro Colégio, Mocidade Solta etc.

Drummond escreve sobre a vida simples de sua família,
com o pai mourejando na fazenda próxima à cidade, da qual saía
todas as manhãs uma mula, guiada por um empregado, para distribuir leite
em Itabira, MG. O velho continuava uma tradição rural de muitas
gerações. A doçura materna e a aparente rigidez do pai
também são lembradas.

Em Boitempo I e II verifica-se que, apesar
da alegada incapacidade de se observar como pessoa, Drummond conseguiu flagrar
instantâneos felizes de um meio urbano semi-rural do começo do
século XX, fixando tipos e costumes que documentam a época. São
páginas que despertam emoção e valem como testemunho social.
A vida do interior ressurge com espontaneidade e graça, ora jovial ora
melancólica.

Poemas escolhidos de Boitempo I

Negra

A negra para tudo
a negra para todos
a negra para capinar plantar
regar
colher carregar empilhar no paiol
ensacar
lavar passar remendar costurar cozinhar
rachar lenha
limpar a bunda dos nhozinhos
trepar.

A negra para tudo
nada que não seja tudo tudo tudo
até o minuto de
(único trabalho para seu proveito exclusivo)
morrer.

15 de Novembro

A proclamação da República chegou às 10 horas
da noite
em telegrama lacônico.
Liberais e conservadores não queriam acreditar.
Artur Itabirano saiu para a rua soltando foguete.
Dr. Serapião e poucos mais o acompanhavam
de lenço incendiário no pescoço.
Conservadores e liberais recolheram-se ao seu infortúnio
O Pico do Cauê quedou indiferente
(era todo ferro, supunha-se eterno).
Não resta mais testemunha daquela noite
para contar o efeito dos lenços vermelhos
ao suposto luar
das montanhas de Minas.
Não restam sequer as montanhas.

Boitempo

Entardece na roça
de modo diferente.
A sombra vem nos cascos,
no mugido da vaca
separada da cria.
O gado é que anoitece
e na luz que a vidraça
da casa fazendeira
derrama no curral
surge multiplicada
sua estátua de sal,
escultura da noite.
Os chifres delimitam
o sono privativo
de cada rês e tecem
de curva em curva a ilha
do sono universal.
No gado é que dormimos
e nele que acordamos.
Amanhece na roça
de modo diferente.
A luz chega no leite,
morno esguicho das tetas,
e o dia é um pasto azul
que o gado reconquista.

Antologia

Guardo na boca os sabores
da gabiroba e do jambo,
cor e fragrância do mato,
colhidos no pé. Distintos.
Araticum, araçá,
ananás, bacupari,
jatobá… todos reunidos
congresso verde no mato,
e cada qual separado,
cada fruta, cada gosto
no sentimento composto
das frutas todas do mato
que levo na minha boca
tal qual me levasse o mato.

Copo d’água no sereno

O copo no peitoril
convoca os eflúvios da noite.

Vem o frio nevoso
da serra.
Vêm os perfumes brandos
do mato dormindo.
Vem o gosto delicado
da brisa.

E pousam na água.

Nova casa de José

José entra resmungando no Paraíso.
Lança os olhos em torno:
— Pensei que fosse maior.
O azul das paredes está desbotado.
Então é isto, o Céu?

Os anjos entreolham-se: Ah, José!
Estávamos tão contentes com sua vinda…
José procura o recanto menos luminoso
para encastelar-se com sua canastra:
— Ninguém me bula nisto.
O serafim-ecônomo sorri:
— Sossegue, José. Aqui todas as coisas
viram essência.
Você terá a essência de sua canastra.

A taciturnidade de José causa espécie aos velhos santos
que pulam carniça, brincam de roda:
— Não quer vir conosco? A amarelinha
vai ser uma coisa louca…
Leve aceno de cabeça e: — Obrigado
(entre dentes) é resposta de José.

São Pedro coça a barba: como fazer
José sentir-se realmente no Paraíso?
É sua casa natural, José foi bom,
foi ríspido mas bom.
Carece varrer do íntimo de José as turvas imagens
de desconfiança e solidão.
— Não há outro remédio, suspira São Pedro.
Vou contar-lhe uma piada fescenina.

E José sorri ouvindo a piada.

A puta

Quero conhecer a puta.
A puta da cidade. A única.
A fornecedora.
Na Rua de Baixo
onde é proibido passar.
Onde o ar é vidro ardendo
e labaredas torram a língua
de quem disser: Eu quero
a puta
quero a puta quero a puta.

Ela arreganha dentes largos
de longe. Na mata do cabelo
se abre toda, chupante
boca de mina amanteigada
quente. A puta quente.

É preciso crescer
esta noite a noite inteira sem parar
de crescer e querer
a puta que não sabe
o gosto do desejo do menino
o gosto menino
que nem o menino
sabe, e quer saber, querendo a puta.

Poemas escolhidos de Boitempo II

A montanha pulverizada

Chego à sacada e vejo a minha serra,
a serra de meu pai e meu avô,
de todos os Andrades que passaram
e passarão, a serra que não passa.

Era coisa dos índios e a tomamos
para enfeitar e presidir a vida
neste vale soturno onde a riqueza
maior é a sua vista a contemplá-la.

De longe nos revela o perfil grave.
A cada volta de caminho aponta
uma forma de ser, em ferro, eterna,
e sopra eternidade na fluência.

Esta manhã acordo e
não a encontro.
Britada em bilhões de lascas
deslizando em correia transportadora
entupindo 150 vagões
no trem-monstro de 5 locomotivas
– trem maior do mundo, tomem nota –
foge minha serra, vai
deixando no meu corpo a paisagem
mísero pó de ferro, e este não passa.

Ferreiro

Filho do ferro e da fagulha
fulgurando na forja formidável
o seu fole afrouxo e sua força
em face do fiscal e da folhinha
de papel

Doido

O doido passeia
pela cidade sua loucura mansa.
É reconhecido seu direito
à loucura. Sua profissão.
Entra e come onde quer. Há níqueis
reservados para ele em toda casa.
Torna-se o doido municipal,
respeitável como o juiz, o coletor,
os negociantes, o vigário.
O doido é sagrado. Mas se endoida
de jogar pedra, vai preso no cubículo
mais tétrico e lodoso da cadeia.

Verbo Ser

Que vai ser quando crescer? vivem perguntando em redor.
Que é ser? É ter um corpo, um jeito, um nome? Tenho os três.
E sou? Tenho de mudar quando crescer? Usar outro nome, corpo e jeito? Ou a gente
só principia a ser quando cresce? É terrível, ser? Dói?
É bom? É triste? Ser: pronunciado tão depressa, e cabe
tantas coisas? Repito: ser, ser, ser. Er. R. Que vou ser quando crescer? Sou
obrigado a? Posso escolher? Não dá para entender. Não vou
ser. Não quero ser. Vou crescer assim mesmo. Sem ser. Esquecer.

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