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Cadernos negros – Os melhores poemas, de FNAC Minc

by Lucas Gomes

O livro Cadernos Negros – Os Melhores Poemas traz textos escolhidos dos dezenove
primeiros volumes da série. Os poemas têm raízes ancestrais e desenvolvem a reflexão poética
sobre a vida e a cultura dos afro-brasileiros, deixando o livre-pensador em posição de
vôo. A poesia contida nesta obra aloja-se em nossa alma, em nossos desejos.

Os textos mostram uma fase especialmente interessante da poesia: sua dimensão social e
histórica, a qual é expressa pela abordagem que se faz da verdadeira história dos
afro-brasileiros, uma história extraída dos subterrâneos da memória.

Os poetas também mergulham em vários temas, como a fome, o feminismo, a violência urbana,
a batalha das classes excluídas e o preconceito racial contido nas relações humanas do
dia-a-dia. Mas é, sobretudo, na mobilização das energias voltadas para a celebração da
vida, para a exaltação da continuidade de lutas, sonhos, esperanças e amores, é aí que
se encontra a força dos poemas, com seus versos polirrítmicos, com sua variadas
formas, com sua musicalidade herdada de tradições africanas.

Alguns textos extraídos da obra

1. EU-MULHER (Conceição Evaristo)

Uma gota de leite
me escorre entre os seios.
Uma mancha de sangue
me enfeita entre as pernas
Meia palavra mordida
me foge da boca.
Vagos desejos insinuam esperanças.
Eu-mulher em rios vermelhos
inauguro a vida.
Em baixa voz
violento os tímpanos do mundo.
Antevejo.
Antecipo.
Antes-vivo
Antes – agora – o que há de vir.
Eu fêmea-matriz.
Eu força-motriz.
Eu-mulher
abrigo da semente
moto-contínuo
do mundo.

Comentário: Conceição Evaristo, neste poema, exibe um corpo de mulher talhado
por significantes que dizem da função geratriz inscrita no corpo da mulher: Eu-mulher
em rios vermelhos / Inauguro a vida / Em baixa voz / Violento os tímpanos do mundo.
/ Antevejo. / Antecipo. / Antes-vivo / Antes agora o que há de vir. / Eu fêmea-matriz.
/ Eu força-motriz./ Eu-mulher / abrigo da semente / moto-contínuo / do mundo.

2. LINHAGEM (Carlos Assumpção)

Eu sou descendente de Zumbi
Zumbi é meu pai e meu guia
Me envia mensagens do orum
Meus dentes brilham na noite escura
Afiados como o agadá de Ogum
Eu sou descendente de Zumbi
Sou bravo valente sou nobre
Os gritos aflitos do negro
Os gritos aflitos do pobre
Os gritos aflitos de todos
Os povos sofridos do mundo
No meu peito desabrocham
Em força em revolta
Me empurram pra luta me comovem
Eu sou descendente de Zumbi
Zumbi é meu pai e meu guia
Eu trago quilombos e vozes bravias dentro de mim
Eu trago os duros punhos cerrados
Cerrados como rochas
Floridos como jardins

Comentário: No poema “Linhagem” (acima), através do verso “Eu sou descendente de
Zumbi”, o poeta evoca uma ancestralidade que tem a ver com a trajetória de batalhas
dos afro-descendentes no Brasil. Uma trajetória cujas raízes remontam a Palmares e ao
guerreiro que melhor simbolizou a trajetória do quilombo, e que atualmente consta do
panteão oficial dos heróis brasileiros.

3. UM SOL GUERREIRO (Celinha)

(A todas as crianças negras assassinadas em Atlanta e a muitas outras crianças
assassinadas todos os dias no ventre da humanidade)

Já não ouço meu pranto
porque o choro emudeceu
nos meus lábios
O grito calou-se
em minha garganta
o sol da meia-noite
cegou-me os olhos…
Sou noite e noite só
O meu sangue espalhou-se
pelo espaço
E o céu coloriu-se de um tom avermelhado
como o crepúsculo
E eu cantei
Cantei porque agora a chuva
brotará da terra.
As sementes de todos os frutos
cairão sobre os nossos pés
E germinaremos juntos
Embora tu não possas mais
tocar as flores deste jardim, eu sei
Mas o teu solo é livre
Cante, menino,
cante uma canção que emudeça os prantos,
que repique os ataques
e ensurdeça os gritos
Porque amanhã não haverá mais
nenhum resto de esperança
não haverá mais um outro amanhecer,
pois certamente muito antes
de surgir um novo dia
um sol, guerreiro, há de raiar
à meia-noite, para despertar o teu sono,
Como uma nova alvorada.

Comentário: O poema “Um sol guerreiro” recupera uma dicção política que, em outros
momentos fazia-se a tônica da poesia libertária: As sementes de todos os frutos / Cairão
sobre os nossos pés / E germinaremos juntos.

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