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Cães da Província, de Luís Antônio Assis Brasil

by Lucas Gomes

Análise da obra

Cães da Província

(1986), de Luiz Antonio
de Assis Brasil é considerado Novo Romance Histórico e a narrativa
ficcionaliza a vida e a obra de José Joaquim Campos Leão (1829-1883),
autodenominado “Qorpo Santo”, importante dramaturgo e poeta brasileiro,
que viveu em Porto Alegre, no século XIX. O romance resgata, portanto,
um interessante fragmento da história desse escritor, considerado o precursor
mundial do teatro do absurdo, figura inquietante e irreverente, que, ao retratar
satiricamente o cotidiano, perturbou a sociedade provinciana de sua época,
sendo interditado por loucura. Mas, como Assis Brasil afirma, “o romance
não é biográfico”.

A narrativa foi apresentada inicialmente como Tese de Doutorado
pelo autor na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do
Sul.

Sabendo-se que a obra é metaficcional, a discussão
principal da narrativa gira em torno do cânone que, para Bloom (1994),
tendo sua origem em vocábulo religioso, tornou-se opção
entre textos que lutam pela sobrevivência, uns com os outros. Logo, é
elitista, paradigmático, impondo limites e estabelecendo pontes entre
precursores e epígonos. Nessa linha, Assis Brasil propõe a ruptura
do cânone consagrado pelo eixo Rio / São Paulo, ao buscar um autor
de peças teatrais e poesias do século XIX, gaúcho, marginalizado
pela sociedade da época, e que até hoje é pouco conhecido
no meio acadêmico, e que também lutou por tal ruptura.

No livro Cães da província, a denúncia
é feita constantemente, mostrando a mediocridade de espírito da
sociedade que é, facilmente, igualada a um cão, o cães
da província. Isto porque essa população é, realmente,
domada e obediente às normas e costumes impostos pela época. Assim
atingindo o universal, a obra de Assis Brasil pode ser entendida por várias
pessoas em diversas épocas, sem perder, de maneira alguma, seu valor
real.

Estrutura

A estrutura do romance dialoga com a estrutura dos textos dramáticos:
a narrativa é dividida em três partes, que representam três
atos e também três fatos históricos. O primeiro aborda o
episódio de se fazer lingüiça com seres humanos; o segundo,
o homem que mata a mulher e esconde o cadáver; e o terceiro, a própria
história de Qorpo-Santo.

Foco narrativo

A narração é em 3ª pessoa – narrador
onisciente.

Espaço / Tempo

O romance narra várias histórias ambientadas
na cidade de Porto Alegre, Província de São Pedro do RS, durante
o reinado do imperador D. Pedro II. Independente da exata localização
espacial, o livro extrapola, indo muito além de suas fronteiras.

Enredo / Trama

O núcleo temático da narrativa parte dos crimes
na rua do Arvoredo, que serve de pretexto para discutir temas como sanidade
/ loucura, província / centro cosmopolita, relatividade e antropofagia,
num enfoque paródico, que, somado à metaficção,
leva à possibilidade de se dizer que Cães da Província
é uma inteligente paródia dos romances policiais e dos romances
de tese. Vale lembrar que a paródia não é mera imitação
transgressora, mas também repetição com distância
crítica, acentuando a diferença, num procedimento pós-moderno,
paradoxal, já que incorpora desafiando o que parodia. Sendo ambivalente,
renova sua relação com a morte (Bakhtin, 1997).

O jogo intertextual, no interior da narrativa, é muito
sutil. E, como esclarece Barros (1999, p.4) “a intertextualidade na obra
de Bakhtin é, antes de tudo, a intertextualidade interna, das vozes que
falam e polemizam no texto, nele reproduzindo o diálogo com outros textos”.
O caso dos crimes da rua do Arvoredo é baseado em fatos verídicos,
porém o leitor só saberá disso na última página
do livro, no momento em que o autor faz os agradecimentos. Outro exemplo de
intertexto diz respeito ao uso de monólogos e o resgate de determinados
personagens do universo ficcional de Qorpo Santo: “… Qorpo-Santo volta-se
para a comédia, cujos personagens já estão delineados.
Sim, começara por um monólogo de Impertinente, esse vadio”
(Brasil, 1986:47). Na peça Relações Naturais, Qorpo-Santo
começa com um monólogo do personagem Impertinente. Inesperto é
outro personagem que também aparece e faz parte da narrativa. Há,
portanto, uma apropriação, por parte de Assis Brasil, de temas
e personagens que transitam pela obra de Qorpo Santo e, dessa forma, ele revê,
via ficção e história, o cânone na província,
dialogando bakhtinianamente com outra época, outra obra e outro autor.

Em Cães da Província, fatos históricos
inseridos no cotidiano de Porto Alegre das últimas décadas do
século XIX, surgem envolvidos em uma atmosfera policial que, assim como
neste romance, ronda as narrativas contemporâneas. No entanto, em Assis
Brasil, esta proposta vem alinhavada ao grotesco. Há, em Cães
da Província
, o choque e o estranhamento causados por esta característica.
A história do amigo de Qorpo-Santo, o personagem Euzébio, caminha
paralela à história do dramaturgo. Mas, enquanto Qorpo-Santo assusta
a provinciana Porto Alegre com seus desatinos, Euzébio, pelo contrário,
é um comerciante bem sucedido que tem a preocupação de
manter as aparências de acordo com o que é conveniente para a sociedade
da época. Mas o casamento de Euzébio com Lucrécia vai dar
início a um processo de desmonte desta intocável conveniência.
Ou seja, seu desejo de tornar-se próspero e respeitado vai encontrar
resistência no comportamento da bela Lucrécia que, de esposa invejada
pela sua dedicação à igreja, encontra um amante e foge
com ele.

Além disso, há em curso uma investigação
policial que tenta desvendar o mistério do desaparecimento de alguns
moradores. Justificando assim, a opção do narrador pelas veredas
do grotesco, aspecto verificado quando este vai moldando o episódio policial
com as desventuras de Euzébio. Assim, o personagem é envolvido,
pois passa de cidadão respeitável a assassino cruel. Mas, em vista
de seu medo e de sua posição social, é absolvido de forma
velada pelo delegado que apenas desconfia, mas não se manifesta.

Os episódios constantes da história de Euzébio
e Lucrécia, são marcados pela
penumbra e pelo silêncio. Permeiam o Romance, acrescentando a este um
surpreendente sabor de náusea e espanto.

O retorno silencioso de Lucrécia, ocorreu no meio da
noite. Ninguém a viu. Adentrou o quarto como um fantasma e ali deverá
permanecer até sua morte derradeira.

Esta foi uma inexplicável surpresa para Euzébio.
Jamais imaginara que sua esposa poderia retornar. Principalmente agora que estava
morta e enterrada.
Ou seja, no Romance, o personagem Euzébio, juntamente com seu amigo Qorpo-Santo,
reconheceram um corpo feminino como sendo de Lucrécia. Mas tudo não
passava de uma farsa. Os corpos foram encontrados em estado de decomposição
nos fundos da casa do açougueiro. Por isso estavam desaparecidos. O açougueiro
foi acusado pela população, de fazer lingüiças com
carne humana. Em meio a multidão de curiosos, entre os policiais e o
delegado, apareceu Qorpo-Santo, responsável pela farsa. Para salvar a
honra de Euzébio, nada como uma história inventada dando conta
do desaparecimento da esposa. O corpo feminino com a cabeça decepada
surgiu oportunamente. Para Qorpo-Santo, aquele episódio teria um caráter
trágico se não fosse tão cômico, já que o
drama é o grotesco com o sublime, a alma sob o corpo, é uma tragédia
sob uma comédia.

Por sua vez, Euzébio velou e enterrou sua esposa. Assumiu
uma suposta viuvez e, para que ninguém jamais desconfiasse, mandou rezar
muitas missas. No entanto, para seu desespero, a farsa que parecia enterrada
com Lucrécia, estava apenas começando.

A Lucrécia verdadeira que não estava morta,
voltou para casa arrependida e a cidade jamais poderia saber.

A vida aparentemente tão acima de qualquer suspeita,
o afastamento temporário do ciclo social, a intensidade de seu luto,
fizeram com que Euzébio acreditasse em sua própria mentira. A
presença física de Lucrécia poderia por em risco toda a
sua honradez.

Seu nome poderia ser motivo de chacota. Mais ainda, todos
poderiam descobrir e ele seria julgado e condenado por um crime inexplicável.

Em Cães da Província, o narrador vai
modular a experiência sádica do personagem. Euzébio recebe
Lucrécia de volta, mas não permite que ela deixe o quarto.

Ele a manterá prisioneira, até que a loucura
tome conta da mulher.

Assim, sob o ardil inexorável da manutenção
de sua honra, Euzébio vai dar início ao processo de destruição
daquela que foi sua esposa, mas que o traiu, fugindo com o entregador de queijos.
A consciência enlouquecida do personagem o instiga a dar cabo da vida
de Lucrécia: “Julgava-se enlouquecer junto com a mulher: abandonava
o quarto, jogava-se no pequeno catre do quarto de hóspede…” (Brasil,
1996:237). No entanto, o pavor de si mesmo, transforma seus dias e suas noites
em um pesadelo tenebroso e ele tenciona matar a esposa aos poucos: “imaginava
morcegos esvoaçantes no teto e aranhas que subiam pelos pés da
cama, e isso até a madrugada, quando os galos quebravam a noite.”
(Brasil, 1996: 237); “[…] só a morte, pensava, só a morte
poderá por fim a tudo isso” (Brasil, 1996:196). O processo de definhamento
e morte de Lucrécia aterroriza por sua frieza e crueldade:

De mais a mais quando pensava com vagar, pesquisando o
lodaçal da alma,
descobria que, a par da ansiedade em manter Lucrécia presa, nutria o
sentimento perverso de que a estava punindo com aquelas trevas perpétuas
como se faz com os condenados à Greena, onde só há choro
e ranger de dentes. Voltou ao quarto do casal, traçou pausadamente o
nome-do-padre na testa febril de Lucrécia, tomou com delicadeza a cabeça,
ergueu-a do travesseiro, passou o pano pelo pescoço, deu uma volta e
ainda olhou para as vistas perdidas no tempo. Vagarosamente, como última
carícia, ele foi apertando o laço.
(Brasil, 1996:195/241).

O destaque maior é dado ao personagem Joaquim de Campos
Leão, Qorpo-Santo, que representa a intelectualidade em choque com a
mediocridade dos parâmetros de sua sociedade. A falta de compreensão
da população leva Qorpo-Santo a ser considerado louco, devido
a sua audácia em burlar os costumes da época. O narrador deixa
claro, durante o desenrolar dos acontecimentos, a superioridade do personagem
Qorpo-Santo em relação aos demais. A forma que seu comportamento
tomou é tida como conseqüência de sua imensa inteligência,
conhecimento e seus conflitos internos e sentimentais. Fora abandonados por
sua esposa, Inácia, que visava interditá-lo. Passa a viver só
com seu criado Inesperto.

Porém, por baixo de toda a aparência de uma sociedade
normal, existe um mundo marginal onde prevalecem a violência, o adultério,
a crueldade e as mentiras. Entre as histórias paralelas que, porém,
não se desvinculam de Qorpo-Santo, temos a do importante comerciante
Eusébio. Este só se preocupava com sua posição social,
o que tornava um homem digno e respeitável. Mas o seu maior problema
foi o adultério cometido pela mulher, o que levou a uma grande mentira
perante toda a cidade, ameaçando abalar sua integridade. Junto com essa
história, temos os crimes que abalaram a calma população,
cometidos pelo açougueiro e sua mulher, Pelsen. Esses dilaceravam corpos
de pessoas atraídas para sua casa, a fim de fazer lingüiça.

Assim, vemos transparecer a mesquinhez, a falta de valores
reais da sociedade, que se mostra mais preocupada com a interdição
ou não de Qorpo-Santo do que com os crimes hediondos ocorridos.

Qorpo-Santo é realmente, um personagem extraordinário.
Suas idéias seus pensamentos o levam muito além dessa época.
Contudo, seu comportamento não é completamente normal, porque
o personagem conversa, diversas vezes, com pessoas irreais, como Napoleão
III.

A sua condição psíquica é levada
a julgamento, havendo divergências entre os alienistas a respeito da mesma.
Acaba por ser interditado, mas seus bens não são entregues á
esposa. É extraditado, e a sociedade sente-se apaziguada.

A realidade choca-se com a ficção nesse livro.
O fato de Qorpo-Santo fantasiar um mundo só seu, à revelia dos
costumes e regras tradicionais, eleva-o ainda mais.

A própria personagem, na sua loucura, oscila entre momentos
de lucidez e o mais completo desvario: ” Ora sou um, ora sou outro”.
Assim, a ocultação e o desvelamento da vida assumem representação
concreta no confronto entre as patologias individuais e coletivas, de que são
ilustrativos os episódios dos cadáveres escondidos, o falso enterro
de Lucrécia e sua reclusão em vida, a ambigüidade velada
e ardorosa de Inácia e, principalmente, a hipocrisia das eprícias
médicas e dos laudos judiciais.

O trecho abaixo evidencia uma visão de exaltação
à “loucura” (conversa entre Landel e Joaquim Pedro):

Amigo, no imaginário do nosso mundo a loucura é
uma coisa aquática, os loucos têm um espírito profundo e
turbulento com as correntezas, jamais poderemos adivinhar-lhe o fundo; daí
por que escapam a qualquer compreensão, é como se você quisesse
adivinhar o que acontece a dois palmos de baixo do casco da nossa canoa; a mente
enlouquecida é pior que este rio barrento.

Neste outro trecho percebe-se a tortura de Qorpo-Santo, em
sua indefinição entre a razão e a loucura (pensamento dele
lido por Joaquim Pedro para Luísa):

Se sinais naturais me inclinam algumas vezes á cópula,
em outras me fazem desaparecer tal inclinação. Assim é
que saio às vezes com mais forte atenção, e volto com mais
contrária disposição. Logo, se a natureza agora exige e
determina e passados alguns minutos reprime e impossibilita, faz desaparecer
o desejo e a lembrança, pergunto: o que é o homem?

As narrativas referentes ao caso que envolve uma investigação
policial e as desventuras de Euzébio funcionam no Romance como narrativas
paralelas, as quais entrecortam a narrativa principal, protagonizada por Qorpo-Santo.
Estas são caracterizadas por elementos que comprovam a interferência
de indicadores do grotesco:

” – Um crânio-Anote aí: um crânio-
dita o doutor Calado ao escrivão, mal acreditando que todas suas suspeitas
se confirmam, desenterram tíbias, úmeros, costelas e espinhaços…(Brasil,
1996:68). Além de: ” Agora, isto! Corpos saem do porão como
de sepulturas. O poço já deu seus mórbidos frutos…”
(Brasil, 1996:71).

Esta marca preponderante na construção, funciona
como guia à trama. Sendo o livro voltado à história de
Qorpo-Santo, era necessário viabilizar algo que tivesse como função
sustentar a estrutura. Assim, as narrativas paralelas que se iniciam de modo
independente, encontram-se no desvendamento do mistério dos moradores
desaparecidos e conseqüente localização dos corpos. Separando-se
posteriormente. Ou seja, a história de Euzébio, avança
além da história dos assassinatos. As quais encerram-se anteriormente
à história de Qorpo-Santo. A conclusão das mesmas, no entanto,
orientam o leitor a buscar o final de tudo. Ou seja, o que aconteceu a Qorpo-Santo?

É necessário esclarecer que a farsa do reconhecimento
do corpo de Lucrécia, foi tramada por Qorpo-Santo, como uma espécie
de vingança contra aquela sociedade opressora e mesquinha. Ora, ninguém
jamais descobriu absolutamente nada. No seu íntimo, o Delegado suspeitava
de Euzébio, exatamente porque ele estava acompanhado do louco da cidade,
no momento do reconhecimento do corpo. No entanto, jamais ousou investigar.
Euzébio era o oposto de Qorpo-Santo. Enquanto um era respeitado como
comerciante discreto e bem sucedido, o outro era discriminado por seu temperamento
explosivo que levava todos a tratá-lo como um louco. As narrativas paralelas
sugerem uma inversão de papéis pois, embora aparentemente equilibrado,
é Euzébio quem tortura e assassina.

Além disso, a inserção de um narrador
que justifica ao mesmo tempo que condena a atitude de Euzébio, por meio
do fluxo de consciência e monólogo interior, dá lugar a
uma rede de conflitos: “Mas o que fazer de sua vida? Uma primeira idéia,
absurda e louca: despachar a mulher porta afora, admitir de público que
se enganara no reconhecimento do corpo mutilado. Afasta a tentação,
impossível expor-se ao escândalo que certamente o arruinaria…”
(Brasil, 1996:175). O narrador vai modulando e orientando a tecedura desta rede:
” Está só, sem ninguém que possa ouvi-lo, abafado
num abismo em que seu grito de desespero se escoa nas trevas.” (Brasil:
1996:175); ” Mas descobrirão tudo, a burla ensandecida, sua vida
será esquadrinhada e cuspida com nojo, como sempre deveria ter sido”.(Brasil,
1996:176).

No romance, é freqüente o cruzamento entre narrativas.
São pontas que se tocam, entrelaçam-se, para depois se separarem
e novamente se encontrarem. Isto faz com que se estabeleça um movimento
preciso que, ora aproxima-se de um desfecho policial, ora afasta-se para abranger
um apontamento relacionado a psicanálise; afastando-se novamente para
causar asco com as tomadas de cunho grotesco. E, principalmente, discutindo
o contexto referente a existência de Qorpo-Santo, enquanto artista sem
reconhecimento.

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