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Camilo Mortágua, de Josué Guimarães

by Lucas Gomes

Romance publicado em
1980, Camilo Mortágua representa, na obra de Josué Guimarães,
a culminância de uma trajetória e, ao mesmo tempo, o retrospecto
dos resultados alcançados. Neste romance, Josué Guimarães
nos dá um painel inédito de sua ficção, contando
de maneira apaixonante a decadência de uma família de pecuaristas
da fronteira gaúcha, com todas as suas misérias e grandezas.

A história de Camilo Mortágua – uma velha e apascentada
idéia do autor – reproduz, de certa forma, o drama de dezenas de famílias
gaúchas que, baseando seus rendimentos na exploração de
rebanhos na fronteira, levaram suas vidas luxuosas na capital do Estado, num
fausto que fez época e que, com o passar do tempo, terminou por arruiná-las.

Através de uma elaborada técnica romanesca, Josué
Guimarães traça um perfil preciso de seus personagens, mesclando
fantasia e realidade. São homens e mulheres que se movimentam com independência
na trama de suas vidas. Vencedores e perdedores; amores intensos e solidão;
poder e miséria. Uma narrativa implacável que conduz o leitor
a momentos de emoção levados pela poderosa ficção
deste grande escritor brasileiro.

A incorporação do trajeto histórico do
Estado coincide com a evolução da intriga, sobretudo com a biografia
do herói que dá nome à obra. Nascido ao final do século
19, o protagonista vem a falecer na primeira semana de abril de 1964. Com isto,
o autor introduz no fluxo narrativa setenta anos da história sul-rio-grandense;
e, ainda que a família Mortágua, indiferente passe ao largo dos
fenômenos externos, emergem ao fundo as notícias relativas às
guerras européias, revoluções brasileiras, o suicídio
de Vargas, enfim, os fatos mais marcantes do século 20, misturados a
trivialidades domésticas, mudanças nas modas, novos costumes,
etc. Assim sendo, se a história não é o eixo que suporta
o transcurso dos acontecimentos, ela ali está, e sua fusão a fatos
miúdos do cotidiano, porém igualmente relevantes segundo o modus
vivendi
dos Mortágua, reforça a evidência de que o
alheamento crescente desses significa seu paulatino deslocamento do poder –
econômico e social.

Os setenta anos ocupados pela biografia de Camilo correspondem
ao processo de desagregação da classe dominante sulina de extração
rural. Transferidos para um centro urbano mais desenvolvido, a dilapidação
das propriedades dos Mortágua deve-se, de um lado,, à sua leviandade
e falta de tino gerencial; em outras palavras, decorre de sua incapacidade de
adaptação ao novo cenário, em que avulta a mentalidade
empresarial burguesa. De outro lado, são os acontecimentos históricos
que empurram o País na direção da atividade mercantil e
industrial e isto, a família, envolvida com seus amores e culpas, doenças
e mortes sucessivas, não pode alcançar e compreender.

Tema

O romance se enxerta à temática da decadência.
Camilo Mortágua é uma obra elaborada em meio à
exasperação. Os ditadores não estavam sozinhos: a classe
média ainda aplaudia o “milagre”, muitos letrados e artistas
aderiam ao “stablishment”, outros refugiavam-se na subjetividade ou
em bizarrices culturais, o terrorismo de estado campeava e as liberdades democráticas
pareciam longínquas. Neste quadro de vilanias e horrores, o sofrimento
era, por assim dizer, uma questão da circunstância histórica.
Introjetava-se na visão dos que combatiam a ordem autoritária.

Enredo

Camilo Mortágua, o protagonista, revê a história
de sua vida ao ir ao cinema. Na tela, em vez de Cleópatra, a Rainha de
César, o filme mostra a trajetória da decadência da família
de Camilo. Eis o recurso narrativo utilizado pelo escritor. Como contexto histórico,
Josué utiliza os sofridos acontecimentos do golpe de 64. A história
se passa em Porto Alegre, recuperando o bairro da Azenha, a avenida Independência,
o parque Farroupilha, a avenida Osvaldo Aranha, a avenida João Pessoa,
a Faculdade de Direito, a Santa Casa de Misericórdia, a Igreja da Conceição,
etc.

Nascido ao final do século XIX, Camilo Mortágua
morre na primeira semana de abril de 1964, fornecendo as coordenadas temporais
que facultam a introdução, no fluxo narrativo, de setenta anos
da história sulina.

Os setenta anos de Camilo assentam-se numa seqüência
narrativa dividida entre a moldura – os cinco primeiros dias do mês de
abril de 1964, durante os quais ocorrem simultaneamente o golpe político
e militar contra o governo constituído e a revisão da biografia
de Camilo – e a intriga propriamente dita. Esta apresenta cronologicamente a
vida do herói, cindida em três fases: a infância e juventude,
quando a família vive seu apogeu irresponsável, na primeira quadra
do século; a maturidade, durante a qual ele restaura o poderio econômico
do clã através da incursão no comércio e indústria
porto-alegrenses; a velhice, quando ocorre a decadência final, já
na segunda metade do século. Estes setenta anos, que explicitam os temas
descritos, mostram-se, no decorrer do relato, embutidos em três noites,
de modo que, na rapidez do écran, Camilo assiste à sucessiva e
galopante desagregação de sua existência e de sua família,
o que culmina numa morte inglória e quase anônima, na escuridão
de um cinema de bairro.

Em outras palavras, todo o largo espectro da vida do herói
cabe inteiramente na semana de abril, durante a qual se dão o golpe militar
e a consolidação, no poder público, de seus líderes.
Camilo, mais uma vez, mantém-se alheio ao evento histórico, mas
isso não significa que não faça a parte dele. Pelo contrário,
como se encaixa em seu começo, acaba por imprimir-se neste princípio,
vindo a demonstrar como o movimento serviu para reavivar seres como ele, para
a seguir, acelerar seu passamento.

Este fato é que dá sentido à moldura do
romance, sem o qual não se faria a transferência para o presente,
assinalado este pela continuidade dos acontecimentos desencadeados na semana
em que é morto o protagonista. Situando a narrativa no período
crucial em que se inaugura uma nova época da história nacional,
o escritor o traduz como um rito de passagem, que exige, para sua efetivação,
um ato propiciatório – a morte de Camilo. Por isso, condensa nele toda
uma aventura humana fadada ao sacrifício e revela a oportunidade de sua
consumação. Nesta medida, se o livro se propõe a reconstituir
um passado para diagnosticar a deterioração gradual de um grupo
que exerceu um domínio inquestionável no Sul, ajustando as peculiaridades
do romance histórico à inclinação temática
da produção literária de Josué Guimarães,
ele ainda se projeta para a atualidade do leitor, lançando-lhe a indagação,
sempre relevante, a respeito da permanência ou modificação
das circunstâncias que suscitaram a imolação de Camilo Mortágua,
no momento em que nada mais tinha a oferecer à existência.

Comentário

Como o “flâneur” de Baudelaire, Camilo Mortágua
experimenta a vertigem das ruas. Só que ao invés da volúpia
da modernidade, da descoberta de multidões que vagam pelos “boulevards”
de Paris, dos encontros fortuitos, dos ruídos excitantes de uma grande
metrópole, Camilo se perde em becos e avenidas de Porto Alegre sem nada
enxergar, sem conhecer a alegria desse turbilhão. O presente não
lhe diz mais respeito. Contudo a pensão sórdida, onde vegeta,
o oprime de tal forma que ele precisa andar, dissolver os fantasmas. É
assim que terminará entrando no cine Castelo nas noites de 3, 4 e 5 de
abril de 1964. Nestas noites de abril, quando tanques garantem o recente golpe
militar, quando os últimos opositores são presos e o buliço
das ruas ainda traz os tímidos protestos da população,
quando enfim o Brasil afunda-se na ditadura, o velho Camilo assistirá
não ao filme programado (Cleópatra), mas a outro que representa
a sua vida. Ao contemplar o tempo perdido, uma profunda comoção
arrastará o protagonista por sobre as contingências do cotidiano.

Trata-se de uma história de fracassos. A antiga grandeza
dos Mortáguas, estancieiros cheios de poder, se dissolvendo em doenças,
traições e morte. Neste universo crepuscular a fazenda já
se decompõe enquanto a família ainda reitera os velhos rituais
do patriarcalismo. No casarão da Avenida Independência caberá
ao jovem Camilo lutar pela preservação do patrimônio corroído
no fim de uma era social. A oligarquia está superada pela história.
O que o rapaz intenta, rejeitar o destino sombrio que espreita a sua classe
através da própria transformação individual em comerciante,
naufragará no torvelinho de paixões que não tem nada a
ver com a hierarquia social e sim com as forças mais irracionais dos
seres. Quer dizer, a catástrofe oligárquica não basta para
se entender a pulverização do mundo familiar.

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