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Canaã, de Graça Aranha

by Lucas Gomes

Análise da obra

Tendo sido lançado no mesmo ano de Os Sertões, de Euclides da Cunha
(1902), poderíamos dizer que Canaã é o primeiro romance ideológico brasileiro
em que se discute o destino histórico do Brasil. Ao mesmo tempo, Canaã representou
uma ponte entre as correntes filosóficas e estéticas do final do século XIX
(Realismo, Naturalismo, Simbolismo) e a revolução modernista da segunda década
do século XX.

O pólo central de Canaã são os debates entre dois colonos
alemães que se estabelecem no Espírito Santo: Milkau e
Lentz.


O personagem Milkau

Milkau representa o otimismo, a confiança
no futuro do Brasil e na força regeneradora do amor universal. A maneira de
Tolstói, Milkau prega a integração harmônica de todos os povos na natureza-mãe,
revelando um evolucionismo humanitário. É um humanista
saudoso do gênio livre e individualista da Alemanha. Por isso deplora o
desmoronamento da tradição da cidade brasileira invadida por colônias
estrangeiras e sonha com a “ligação do homem ao homem” e com a realização da
liberdade.

Milkau não se limita à defesa de idéias abstratas. Seu humanismo
desdobra-se em ação quando passa a proteger Maria, jovem colona, expulsa pelos
patrões quando estes a sabem grávida, vindo a dar à luz em trágica situação.

Após salvar Maria, libertando-a do cárcere onde estava por ter
sido acusada de matar o próprio filho (na verdade Maria tem o filho devorado por
uma vara de porcos), Milkau foge, juntamente com Maria, em direção a outros
horizontes, numa “corrida no Infinito”, em busca da luminosa Canaã, a Terra
Prometida, “onde as feras não fossem homens”, onde a vida não seja uma
competição de ódios mas uma conquista de amor.

Visto desta maneira, Canaã é o poema das raças novas, da
miscigenação das raças, de onde nascerá a perfeita harmonia universal.


O personagem Lentz

Lentz é um adepto das teorias racistas. Para ele, os
brasileiros, por serem mestiços, estão condenados à
dominação por parte de raças “superiores”. Lentz profetiza a vitória dos
arianos, enérgicos e dominadores, sobre o brasileiro fraco e indolente. Suas
idéias deixam entrever a filosofia de Nietzsche e o evolucionismo
de Darwin.

Para Lentz, renovar o Brasil é cobri-lo com os corpos humanos da
raça superior, demonstração representativa do colonialismo agressivo, ou seja,
imperialismo, calorosamente discutido com alusões estéticas.


“A lei do amor” x “A lei da força”

Assim, podemos ver que Milkau e Lentz representam duas
ideologias postas em debate. E o contraste entre o universalismo (Milkau) e o
racismo (Lentz), entre a “lei do amor” (Milkau) e a “lei da força” (Lentz).
Justamente neste ponto, Canaã adquire maior importância para a Literatura
Brasileira, pois o romance de confrontação ideológica era inédito entre nós, e
antecipou a tomada de consciência dos modernistas.

Na
verdade, Graça Aranha, com Canaã, apresenta tópicos que serão desenvolvidos
mais tarde em A Estética da Vida,
de 1921. O brasileiro terá de vencer o Terror Cósmico, superar
o lírico individual e atingir a poesia do cosmos unitário, numa identificação
de consciência e universo.

Graça Aranha toca, portanto, no ponto vital das discussões do
início do século XX: a campanha por uma estética nacional assimilada na
consciência universal, Este era o debate do dia-a-dia: a nacionalidade
brasileira, vista e analisada profundamente, opondo-se ao ufanismo e ao
patriotismo superficial.


A estrutura romanesca e a linguagem

Muitos têm afirmado que a extrema preocupação de Graça Aranha em
discutir idéias (Canaã é, na verdade, um romance de idéias) prejudicou a
composição ficcional (literária) propriamente dita. José Guilherme Merquior
acusa a má intervenção do pensamento, da tese, na matéria narrada. A
dimensão realista do livro é incompatível com a sua
dimensão explicativa. Daí resultaria uma certa
deficiência estrutural da obra. O ardente desejo de explicar o “objetivismo
dinâmico” leva o autor a fazer “filosofia ficcionalizada” ou “ficção
filosofante”. Formalmente, isto se revela na intervenção teórica do autor a cada
momento do romance, através de digressões que interrompem o universo ficcional.
Daí o esvaziamento das personagens (são praticamente
idéias, e não pessoas), a desvalorização
do enredo que serve apenas de pretexto para análises sociais ou psicológicas do
Brasil. Mesmo o drama de Maria, a personagem trágica do romance, é entremeado de
longas cenas que demonstram a lubricidade e a venalidade dos magistrados locais.
Já no final, quando Milkau busca o juiz de direito para tentar uma solução para
o processo em que Maria está envolvida, os dois acabam discutindo sobre a etnia
brasileira, aproveitando Graça Aranha para tecer argumentos sobre o mulatismo.

Entretanto, se levado pela preocupação em discutir o Brasil,
Graça Aranha não estruturou personagens ou enredo convincentes, algumas cenas de
violência e instinto servem de relevo e interesse pela linguagem impressionista
de que se revestem, assim como as descrições ricas da natureza brasileira. São
cenas tipicamente naturalistas: o enterro do velho caçador, cujo cadáver é
disputado aos coveiros por cães furiosos e urubus famintos; o rito bárbaro dos
magiares, que fecundam a terra com o sangue de um cavalo açoitado até a morte; o
pavor de Maria na estalagem em que se abriga, dormindo juntamente com uma velha
criada que esconde pedaços de carne sob o colchão e, à noite, os ratos
passeiam-lhe sobre o corpo; enfim o nascimento do filho de Maria em plena mata,
entre porcos que acabam por devorar a criança diante do horror
da mãe. Evidentemente, estas cenas vão além do realismo, mas não chegam a um
naturalismo “científico” de um Zola. Este naturalismo é sensível ao nível da
linguagem narrativa, tipicamente impressionista. De fato, natureza, ambiente,
homens e coisas são apreendidos num enfoque impressionista, usando o narrador
uma retórica declamatória com farta adjetivação, na qual dois ou três adjetivos
ligam-se ao mesmo substantivo, ou até os substantivos adjetivam. A descrição de
Maria adormecida na mata, coberta pelos pirilampos,
representa bem o impressionismo, filtrado de simbolismo. De fato, formas, cores,
aspectos luminosos confundem-se numa descrição emocional do momento, através de
períodos breves, geralmente no imperfeito do indicativo, sugerindo a idéia de
continuidade.

 

Assim,
Can revela-se
uma obra sincrética. Do Realismo encontramos traços na fixação da paisagem humana
da colônia, em prosa quase documental, com a simplicidade da vida laboriosa
dos imigrantes ou as doenças da burocracia judiciária. Do Simbolismo encontramos
a preocupação metafísica, a alegoria retórica, a associação das sensações do
momento que faz com que o naturismo ultrapasse a simples observação da realidade.
Note-se ainda a presença de mitos folclóricos indígenas e europeus, que ajudam
no’ desenvolvimento da idéia de Milkau e na exaltação do Brasil.

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