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Cancioneiro, de Fernando Pessoa

by Lucas Gomes

Cancioneiro

é uma obra composta por poemas líricos, rimados e metrificados, de forte influência
simbolista.

Apesar do próprio Fernando pessoa afirmar que “Cancioneiro” (ou outro título igualmente inexpressivo)
reuniria vários dos muitos poemas soltos que tenho, e que são por natureza inclassificáveis salvo de essa
maneira inexpressiva
, o título dessa obra não é, de forma alguma, “inexpressivo”, porque o seu
entendimento global está relacionado diretamente ao título. Cancioneiro é a designação dada ao conjunto
poesias líricas medievais, portuguesas ou espanholas.

As poesias de Fernando Pessoa reunidas sob o título de Cancioneiro, além de prestar uma homenagem a
tradição lírica lusitana de preservar os seus mais antigos textos literários, também se relacionam com as
cantigas medievais, pois o ritmo e a métrica dos versos deixam esses poemas tão harmoniosos que eles se
transformam também em “verdadeiras letras de música”.

É do Cancioneiro um dos poemas mais célebres de Pessoa, “Autopsicografia”, em que
reflete sobre o fazer poético:

O poeta é um fingidor.

Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.

O leitor atento há de perceber que o poeta parte de uma dor sua, real, integral. Só quem sente uma dor pode
fingir outra que não sente. Só quem tem personalidade pode ser ator. Como Fernando Pessoa. Já os leitores,
lêem no poema a dor ou o sentimento que lhes falta e que gostariam de ter. Sentem-na ao atribuí-la ao
poeta.

O poema “Autopsicografia”, reproduzido acima, apesar de sua aparente simplicidade, é, sem sombra de
dúvidas, o texto mais discutido de Fernando Pessoa. Nele, as reflexões sobre a “criação artística” são
levadas as últimas conseqüências. Isso porque, ao afirmar que “O poeta é um fingidor”, Fernando Pessoa não
restringe-se apenas ao poeta. Na verdade ele se refere ao artista em geral, que cria “um mundo fictício
para representar o mundo real”. Pablo Picasso ao dizer que “a arte é uma mentira que revela a verdade”
reforça o que foi dito.

Em Cancioneiro, além dessas características, merece especial destaque o interseccionismo, que é, na
realidade, uma teoria elaborada por Fernando Pessoa.

Para explicá-la, nada melhor do que as palavras do próprio Pessoa: a arte que queira representar bem a
realidade terá de dar através duma representação simultânea da paisagem interior e da paisagem exterior.
Resulta que terá de tentar uma intersecção de duas paisagens
.

Abaixo temos um fragmento do poema “Hora Absurda”, que contém um bom exemplo de intersecionismo:

Hoje o céu é pesado como a idéia de nunca chegar a um porto…

Repare que o poeta constrói o verso com dois espaços, ou melhor, duas paisagens distintas: uma exterior,
caracterizada pelo “céu pesado” e outra interior, caracterizada pela “idéia de nunca chegar a um porto”.
No entanto, a compreensão global da frase não permite que esses espaços sejam compreendidos de forma
autônoma, ocorrendo então uma intersecção dessas paisagens, que formam um “quadro” único, refletindo o
“céu pesado” e também o estado interior do eu-lírico.

Outros poemas escolhidos de Cancioneiro

Isto

Dizem que finjo ou minto
Tudo que escrevo. Não.

Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.
Não uso o coração.

Tudo o que sonho ou passo,
O que me falha ou finda,
É como que um terraço

Sobre outra coisa ainda.

Essa coisa é que é linda.

Por isso escrevo em meio

Do que não está ao pé,

Livre do meu enleio,
Sério do que não é.
Sentir? Sinta quem lê!

Liberdade

Ai que prazer

Não cumprir um dever,
Ter um livro para ler
E não fazer!

Ler é maçada,

Estudar é nada.

Sol doira

Sem literatura
O rio corre, bem ou mal,
Sem edição original.
E a brisa, essa,
De tão naturalmente matinal,

Como o tempo não tem pressa…

Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.

Quanto é melhor, quanto há bruma,

Esperar por D.Sebastião,

Quer venha ou não!

Grande é a poesia, a bondade e as danças…

Mas o melhor do mundo são as crianças,

Flores, música, o luar, e o sol, que peca
Só quando, em vez de criar, seca.

Mais que isto

É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças
Nem consta que tivesse biblioteca…

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