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Capitão do Fim, de Luiz Guilherme Santos Neves

by Lucas Gomes

De autoria do historiador capixaba Luiz Guilherme Santos Neves, Capitão do Fim é
um romance que mescla a narrativa literária com a história do Espírito Santo.

A personagem principal é o capitão que dá nome ao livro, Vasco Fernandes Coutinho.

Vale lembrar que Vasco Coutinho foi o primeiro capitão donatário da Capitania hereditária
do Espírito Santo, nomeado como tal depois da divisão do Brasil nessas unidades
administrativas por João III de Portugal, em 1530. Foi casado com Maria do Campo, mas
quem realmente o acompanha até ao Brasil é a amante Ana Vaz (chamada de “Donana” no
romance). Aventureiro com passagem pela África e pela Ásia, Coutinho embarca rumo à
conquista da América cheio de sonhos e grandes cobiças. Pouco tempo depois traz para
cá diversos degredados para povoar as terras de sua capitania. Degredados eram pessoas
indesejáveis em Portugal, como ladrões e traídores que tinham como pena o degredo no
Brasil. Ao que tudo indica, sua capitania foi uma das menos promissoras e Vasco
Coutinho acabou morrendo na miséria, envolto de intrigas e desgostoso de seus
investimentos.

No romance, o capitão não é lembrado como um herói, mas como um homem de mais carne e osso
do que honra. Suas ambições, seus desejos, suas intrigas, seus inúmeros vícios e seu fracasso
nos afastam do que pretendem os manuais didáticos e nos aproximam com voracidade da narrativa
literária.

Vasco Coutinho é descrito no romance como um homem dado aos jogos, bebidas e fumos.
A cada fracasso, parece se afundar cada vez mais na dependência desses hábitos
tão malvistos pela sociedade moralista cristã da época. Daí recorre a má fama
que irá chegar algumas vezes aos ouvidos do rei de Portugal. O mais narrado de
seus vícios é o do fumo, como o era costume dos indígenas. O hábito se inicia
quanto o deixa Donana e prossegue durante toda a vida. “O capitão fedia a fumo”.

Este vício, que acompanha pecados capitais como a gula e a preguiça, é motivo
de uma das mais importantes intrigas do livro. Trata-se do episódio em que Vasco
Coutinho é excomungado em público, durante uma missa, pelo mais digno representante
da Igreja Católica no Brasil, Dom Pero Fernandes Sardinha. Esta intriga é causa
de grande desgosto para o nosso anti-herói, que não consente em largar o vício
e sofre humilhação por ter ousado debater o assunto com o Bispo Fernandes Sardinha.

Dentre outros desentendimentos importantes narrados no livro encontra-se a inveja que
Vasco Coutinho sente de outro donatário, Pero de Góis, e de sua próspera Capitania de São
Tomé. Mesmo sendo este prestativo com o amigo Vasco Fernandes, apiedado por seu pouco
progresso, o capitão sente tamanha inveja da prosperidade do outro que crê ser responsável
pelos trágicos acontecimentos posteriores, com o ataque dos índios, que levaram Pero de
Góis à falência e à perda de um olho. Carrega esta culpa até o momento de seu julgamento
final. Outras culpas que o capitão carrega consigo são as mortes de Bernardo Sanches de la
Pimenta e do capitão Fernão de Sá, ambos assassinado pelos índios em uma batalha proposta
por Vasco Coutinho, mais por orgulho do que por necessidade.

Um romance repleto de simbologia. Um dado simbólico interessante é o ser que o conduz para
o destino final. De início um cão que ladra chamando-lhe e posteriormente uma mistura entre
cão, leopardo, homem e fantasma. O leopardo, de pelos vermelhos e língua cuspida em fogo,
remete ao animal que está no topo do brasão da capitania e tem a posição de ataque. Outro
símbolo, ou, melhor dizendo, ato simbólico presente no romance acontece na chegada do capitão
às terras a serem conquistadas. Depois de escolher um local para começar sua empreitada,
desembarca, finca sua espada no solo e, como continuação de um atitude solene, “desenlaçou
o calção e mijou na terra”.

Foco narrativo

O foco narrativo é omnisciente: um narrador que tudo sabe e tudo vê (normalmente
usado na literatura pela facilidade de narrar os sentimentos e pensamentos das
personagens).

Enredo

A história se inicia quando a alma do capitão desperta de seu corpo, chamada a
cruzar um caminho transcendental até ao seu julgamento final. Quem lhe recebe é uma espécie
de demônio com cara de cão, que o guia numa embarcação para um destino que o capitão
desconhece, mas que percorre inicialmente a paisagem familiar da Capitania hereditária
do Espírito Santo. Durante toda a obra, este percurso fará com que Vasco Coutinho relembre
a sua própria vida, mais especificamente desde o momento em que chegara naquelas terras
até o momento de sua morte.

Todo este enredo de rito de passagem rumo ao juízo final cristão se comunica muito com a
literatura produzida em Portugal na época que precede os descobrimentos, o que contribui
ainda mais para a climatização da obra. Aliada a isso está a linguagem, muito bem trabalhada
e cheia de detalhadas descrições sobre os territórios e costumes com os quais os portugueses
entram em contato. O diferencial está, então, na opção do olhar crítico sobre a história do
Espírito Santo e do próprio Capitão Vasco Coutinho.

Dentre as suas ambições se destacam a tentativa de encontrar ouro por essas bandas, com
auxílio de Felipe Guillén, este trazendo consigo um estranho astrolábio que, segundo ele,
fazia possível a localização do ouro. Sobem e descem morros em busca de alguma pista deste
precioso metal, mas em nenhum lugar o ouro se faz presente.

Sobre os seus desejos, o tão bem narrado relacionamento extraconjugal com Donana se destaca.

O amor do capitão por Donana fez com que a trouxesse para vir morar no Brasil,
onde se desenlaça a história dos dois. Donana ganha uma ilha, que recebe periodicamente
a visita do capitão. Um amor muito dedicado, o que poderia trazer honradez ao
nosso malfadado personagem, não fosse o fim trágico do relacionamento. Donana
engravida de Vasco Coutinho e este a abandona aos poucos, a fim de procurar prazer
em outras “ilhas”. Ao nascer o filho, Donana volta a Portugal, mas não sem antes
rogar uma praga ao amante.

Depoimento do autor:

Embora possa não parecer, este romance não tem heróis, tem apenas vítimas. Até mesmo
a figura central que lhe dá corpo – a de Vasco Fernandes Coutinho, primeiro donatário
da capitania do Espírito Santo – é apresentada como um pecador assumido, sobre quem
paira um juízo de perdição irreparável e de danoso fim.

Trata assim o romance do julgamento póstumo de um capitão de destemores e de campanhas
luzidias, cujo romanceiro de vida se forjou de grandezas históricas e de misérias humanas
que se voltam contra a personagem, após a sua morte.

Cavaleiro de terras e mares, governador de delinqüentes e oprimidos em uma região
que se situava no fim de um mundo desconhecido e selvagem, Vasco Coutinho teceu,
com seu ardor e sonhos desbragados, uma saga histórica que o tornou um dos mais notáveis
vultos do Brasil Colonial, dentre os que, como ele, se empenharam nas conquistas desvairadas
de uma colonização embrutecida.

Mas no juízo final a que se entrega a alma do capitão, em meio a um redemoinho de
lembranças e tormentos – tema central do romance – tanto pesam os triunfos de vida do
capitão, quanto as inconfessáveis mesquinharias que fizeram o contraponto do seu itinerário
de cavaleiro real que, se por um lado, se poderia dizer sans peur, por outro não se poderia
dizer sans reproche. O Vasco Fernandes que ressuma desse conflito de contradições é tão
dolorosamente sofrido e desamparado como qualquer outra criatura que estivesse em seu lugar,
diante de um idêntico e incomensurável fim.

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