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Carnavais, Malandros e Heróis, de Roberto da Matta

by Lucas Gomes

Sob influência do historiador francês, Alexis de
Tocqueville, e do movimento tropicalista — ocorrido no final da década
de 1960, no Brasil – Roberto da Matta iniciou a sua interpretação
do País, abordando aspectos importantes da cultura nacional, mas desconsiderados
por outros pesquisadores.

Dessa interpretação surgiu Carnavais, Malandros
e Heróis
, sua obra mais importante, responsável por firmar
seu reconhecimento.

O livro foi publicado em 1979. Nele, o autor serviu-se de aspectos
culturais, como festas populares, religiosas, procissões, desfiles, paradas
militares, para analisar a sociedade brasileira. Além disso, abordou
aspectos recorrentes, como o famoso “jeitinho brasileiro” e a personalização
das relações sociais – caracterizada, entre outras fatores, pela
expressão “você sabe com quem está falando?”.

Escrito em elaborado sociologuês, Carnavais, Malandros
e Heróis
, do antropólogo Roberto da Matta e publicado em
1979, se transformou em obra de referência sobre a mais famosa festa nacional.
Nela, o autor trata da fabulosa inversão de papéis que acontece
por quatro dias do ano – nas ruas, o pobre vira nobre, a elite posa de povo.
Mas Carnavais, Malandros e Heróis foi escrito numa outra época,
quando desfiles de fantasia no Hotel Glória eram tão comentados
quanto os sambas-enredos das escolas do Rio, a Bahia não havia inventado
o axé, as baterias não possuíam madrinhas e os camarotes
não abrigavam superproduções bancadas por patrocinadores.
Era sobretudo uma época anterior ao que se convencionou chamar de Era
das Celebridades.

Na torrente de idéias, intuições, discussões
conceituais e análises extremamente surpreendentes de coisas que vivem
despercebidas sob nossos narizes, da Matta mostra que as ciências sociais
podem ser inteligíveis, pertinentes e reveladoras, sem a esterilidade
de textos onde a preocupação com o rigor científico e metodológico
esconde, muitas vezes, a pobreza de idéias dos autores.

Uma das ambições do livro é entender,
não aquilo que temos de histórico, datado e cambiante, mas aquilo
que é mais permanente e duradouro. São pertinentes “os valores,
relações, grupos sociais e ideologias que pretendem estar ao lado
e acima do tempo”, e que definem, de forma mais profunda, o “caráter”
ou a “cultura” de uma sociedade. O estudo destes elementos invariantes
da sociedade brasileira é o que dá ao mesmo tempo força
e fraqueza à contribuição de da Matta. Por um lado, ele
nos permite entender melhor e de maneira mais sistemática uma série
de aspectos reiterativos de nossa vida social, muitos dos quais concebidos de
maneira difusa, mas difíceis de apreender de maneira coerente. Por outro
lado, ficamos com poucas condições de entender como estas estruturas
mais profundas podem, eventualmente, se alterar, e passar de um estágio
que consideramos negativo, injusto e desagradável, para um estágio
melhor. É possível dizer que Roberto da Matta sucede brilhantemente
na primeira tarefa, mas, apesar de tentá-lo, falha na segunda.

O tema central do livro é o dilema entre os aspectos
extremamente autoritários, hierarquizados e violentos da sociedade brasileira
e a busca de um mundo harmônico, democrático e não conflitivo
nesta mesma sociedade. Como todo autêntico dilema, ele não comporta
soluções, mas um estado de tensão contínua entre
pólos conflitantes que conduzem a toda uma série de ritos e mitos
que, de forma sistematizada ou no quotidiano, dramatizam as principais alternativas.

O lado autoritário e hierarquizado da sociedade brasileira
tem, para Roberto da Matta, pelo menos três dimensões distintas.
Uma é a existência de uma ordem formal, baseada em posições
de status e prestígio social bem definidos, onde não existem conflitos
e onde “cada um sabe o seu lugar”. A outra é a existência
de uma oposição sistemática entre o mundo das “pessoas”,
socialmente reconhecidas em seus direitos e privilégios, e um universo
igualitário dos indivíduos, onde as leis impessoais funcionam
como instrumentos de opressão e de controle (“para os amigos, tudo;
para os inimigos, a lei”). A terceira é o mundo do sagrado, onde
se opera uma suposta equalização da sociedade, já que todos
são filhos de Deus, mas ao mesmo tempo são mantidas estruturas
claramente hierárquicas de santidade.

Estes sistemas hierarquizados operam uma dissociação
entre dois mundos ideais na mitologia brasileira: o mundo da casa, onde as pessoas
valem pelo que são, onde reina a paz e a harmonia, e o mundo da rua,
onde os indivíduos “lutam pela vida” em uma batalha impiedosa
e anônima. Nesta batalha, as principais armas são, alternativamente,
a afirmação dos privilégios de status das pessoas das classes
dominantes e a redução dos indivíduos às leis impiedosas
do mercado e da burocracia.

Se as paradas, as procissões e a afirmação
dos privilégios de status das pessoas das classes dominantes ritualizam
e explicitam os aspectos hierárquicos e autoritários da sociedade
brasileira, o carnaval e os heróis populares dramatizariam o seu oposto.
O carnaval é essencialmente igualitário e, nos seus três
dias, transpõe para o mundo da “rua” os ideais das relações
espontâneas, afetivas, e essencialmente simétricas que são
a contrapartida das paradas. A negação que o carnaval faz das
estruturas de poder e autoridade é corporificada no malandro e seu paradigma,
Pedro Malasartes, que não respeita nem crê nos valores da autoridade
e do poder, mas os conhece, e aproveita deles em seu próprio benefício.
O malandro, ao contrário do herói, não busca dominar a
estrutura do poder e a ela se sobrepor – e, nesse processo, terminar por ser
reabsorvido por ela. Ele vive nos interstícios do sistema, de seus absurdos
e de suas contradições. Se o herói sai das paradas e o
malandro dos carnavais, outro personagem – o místico renunciador – sai
das procissões. Ele rejeita o sistema como um todo, nem o aceita nem
se aproveita dele, mas cria seu próprio espaço de vida e seus
próprios valores.

Este resumo não é totalmente fiel ao livro, porque
Roberto da Matta não chega a “fechar” completamente seu sistema
– o homem da ordem, por exemplo, o “caxias”, não chega a ser
analisado em maior profundidade, e as relações entre o carnaval
e os três sistemas de autoridade tampouco são estudadas em todas
suas possibilidades. Mas dois exemplos bastam para mostrar a fecundidade desta
maneira de vez as coisas.

O primeiro é a análise da organização
das Escolas de Samba, que teriam, segundo da Matta e os autores que cita, a
estrutura de um “cometa”. Neste sistema, existiria um núcleo
extremamente fechado e coeso de “donos” da Escola, que criariam um
segundo círculo de pessoas associadas, as quais, por sua vez, abririam
a Escola para o público mais amplo possível. Com isto, as Escolas
conseguem ser, ao mesmo tempo, profundamente autoritárias e amplamente
democráticas. Elas misturam ricos e pobres, pretos e brancos, fazem de
todos iguais perante o samba – mas é uma igualdade que não implica
associação de pessoas, participação em decisões
de interesse geral, disputa por lideranças efetivas. A Escola de Samba,
assim, dramatiza e permite entender um aspecto bastante generalizado e pouco
entendido de nossa realidade, que é a existência simultânea
de formas de convivência igualitárias e não discriminatórias
em contextos extremamente autoritários e estratificados.

O segundo tem a ver com a questão do horror brasileiro
ao conflito. A idéia do “homem cordial”, hoje sabemos com clareza,
não é um simples equívoco, nem corresponde à total
realidade das coisas. De fato, a dissociação que existe em nossa
cultura entre o mundo das relações pessoais, baseadas na qualidade
das pessoas, e o mundo selvagem da “rua”, faz com que qualquer conflito
aberto e manifesto seja percebido pelos participantes como algo extremamente
ameaçador. A conseqüência é que ser “agressivo”
é um dos defeitos sociais mais graves, e o “tudo bem”, “numa
boa”, pronunciados a cada instante, o seu oposto. Mas como a realidade
social é de conflitos e contradições, estes, quando se
manifestam, tendem a ser de fato violentos, desgarradores e irreparáveis,
quando não camuflados e sistematicamente negados, gerando assim a má
fé e o cinismo institucionalizados.

O que Roberto da Matta não consegue sugerir de forma
satisfatória são maneiras pelas quais estas estruturas sociais
mais profundas podem ser alteradas. Ele desconfia das transformações
e revoluções de tipo político, já que elas teriam
por objetivo, essencialmente, trocar a posição de alguns atores
dentro de estruturas basicamente imutáveis. A modernização
capitalista não consegue fazer do Brasil um país capitalista no
sentido anglo-saxão, porque encontraria em nosso meio raízes sociológicas
e culturais imunes, ou quase, aos eventos da história. Se isto é
certo, seria o mesmo para o socialismo. No entanto, ele parece crer que, em
personagens tipificados por Augusto Madraga, que rejeita o espaço social
com suas alternativas predeterminadas para criar seu próprio universo,
existiria alguma forma de esperança.

É, sem dúvida, muito pouco, principalmente se
lembramos que o místico, geralmente, renuncia ao mundo da terra, e cria
seu espaço novo no mundo dos céus, deixando o daqui intocado.
No entanto, não deixa de ser curiosa a coincidência entre esta
proposta pouco explicitada por da Matta e a tese central de Weber a respeito
do caráter extremamente dinâmico e revolucionário do carisma
nos processos de mudança social.

A falta de resposta à pergunta sobre o futuro pode significar,
ainda, o simples fato de que esta resposta não existe de maneira simples,
e que algumas estruturas da sociedade brasileira são muito mais profundas
e difíceis de mudar do que gostaríamos. Ter consciência
delas, no entanto, já é um primeiro passo, e neste sentido, de
conhecimento e desmistificação, a contribuição de
Roberto da Matta é muito grande.

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