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Casa Velha, de Machado de Assis

by Lucas Gomes

Casa Velha

é de autoria de Machado de Assis e foi publicado
em 1944, depois de sua morte. É um livro que levanta muitas discussões,
tanto acerca de seu gênero, se é conto, novela ou romance, como
do período em que foi escrito; ele destoa muito dos romances do autor
do tempo da publicação do folhetim e apresenta pontos comuns com
os considerados da primeira fase, ou seja, os anteriores ao Brás
Cubas
.

A alegoria política/histórica é apenas uma possível
dimensão do significado presente na trama. Casa velha é
um drama de família, mas que Machado utilizou com o objetivo claro de
refletir realidades sociais, e também políticas, mais amplas –
na verdade, os acontecimentos políticos em si parecem ser reproduzidos
pelas necessidades e limitações de um certo tipo de sociedade.

A obra é um esboço de Dom Casmurro, pois apresenta,
nas suas entrelinhas, questões políticas importantes, disfarçadas
por uma história romântica na sua superficialidade. Vários
fatores contribuem para dar a essa trama simples uma maior profundidade e ressonância.
São caracteristicamente machadianos, pois o leitor desatento poderia
interpretá-los erroneamente, ou não se dar conta deles.

Sua narrativa é feita por uma das personagens, um padre, que precisa
se instalar numa casa muito antiga, onde mora uma família de fidalgos,
cujo patriarca foi um político importante e mulherengo. Casa Velha
conta os meandros da vida familiar de um alto membro do governo do imperador
Pedro II. Na obra a critica dos costumes é novamente o placo das preocupações
de Machado de Assis. Desencaroçando as intrigas imperiais a mesquinhez
da aristocracia tropical de Pedro II, da igreja, seu jogos de interesses e fogueira
das vaidades.

Machado de Assis talvez tenha sido um dos primeiros escritores a abordar o
amor impossível entre um casal de irmãos que se apaixona sem conhecer
seu laço de sangue, tema muito utilizado posteriormente por autores consagrados.

O título é um tanto irônico, Casa velha, de fato
é uma casa patriarcal de fins do século XVIII, mas que ainda nos
anos da ação da história, 1838 e 1839, depois da Independência
e do Primeiro Reinado, estava ainda muito viva. A ironia é que continuava
atual também quando da sua escrita por Machado, fosse antes ou depois
de Brás Cubas, como se precisasse de algo maior do que a força
do capital comercial e financeiro e do “moderno” urbano para transformá-la.
Um pequeno traço de sua fachada, que nos passa desapercebido por nos
ser muito familiar, é significativo bastante para ilustrar a força
de sua permanência e pode simbolizar o verdadeiro tema da história
da casa velha: a mudança da fachada e dos exteriores, que não
abandona nunca os valores que forjaram as concepções interiores
de seus membros, ou seja, as camadas profundas que organizam e orientam as suas
ações. Esses homens são portadores de uma mentalidade discriminatória,
moldada por séculos de escravismo, que, por um lado, segmenta e segrega
os homens e, por outro, desvirtua o impulso que poderia levá-los
a sua superação, o da atração amorosa. Se o patriarca
da casa velha pôde usar deste impulso para se aproveitar da mãe
de Lalau para a própria satisfação sexual, o seu filho
não pôde segui-lo para unir-se à filha de sua amante para
o casamento comum.

A casa, cujo lugar e direção não é preciso
dizer, tinha entre o povo o nome de Casa velha, e era-o realmente: datava dos
fins do outro século. Era uma edificação sólida
e vasta, gosto severo, nua de adornos. Eu, desde criança, conhecia-lhe
a parte exterior, a grande varanda da frente, os dous portões enormes,
um especial às pessoas da família e às visitas, o outro
destinado ao serviço, às cargas que iam e vinham, às seges,
ao gado que saía a pastar. Além dessas duas entradas, havia, do
lado oposto, onde ficava a capela, um caminho que dava acesso às pessoas
da vizinhança, que ali iam ouvir missa aos domingos, ou rezar a ladainha
aos sábados
. (MACHADO DE ASSIS. Obra completa. Rio de Janeiro: Companhia
José Aguilar Editora, 1974, v. I, p. 999.)

As poucas coisas que não eram velhas na Casa, além de Lalau,
eram os livros de Voltaire e Rousseau da biblioteca e, talvez também
o padre narrador, que “os conhecia, não integralmente, mas no principal
que eles deixaram”. O conhecimento deles pelo padre era um pouco mais
do que um verniz modernizante, incidia na sua ação, mas não
impediu que ele se surpreendesse, assim como o leitor, com a decisão
firme e radical de Lalau pelo trabalho:9 a de não voltar para a casa
velha, casar-se com o “Vitorino, o filho do cocheiro”, e de não
querer uma solução acomodatícia.

O objeto de Machado nesta novela ou romance era a permanência, a resistência
do velho ao novo, da Casa Velha à ação do tempo. Em Casa
velha
a força do tempo poderia estar na emergência dos interesses
e dos valores ligados às atividades comerciais e financeiras e seus agentes,
mas que, praticamente e por razões já aventadas acima, não
se faziam presentes. Talvez seja por isso que a ação decidida
de Lalau, pareça um ato com boa dose de heroísmo, apesar de um
tanto inglório, pois o que vence não é o amor, mas o valor
pessoal, apoiado em princípios éticos de busca de independência
e autonomia, num mundo que deixava pouca margem para isso.

A obra é ambientada no ano de 1839. Assim, a Guerra dos Farrapos e a
Maioridade de Dom Pedro II, aparecem diversas vezes na novela. O elo entre a
rebelião no Rio Grande do Sul e a Maioridade permite-nos ver como a estrutura
da trama de Casa Velha é paralela à da História
política entre 1822 e 1840.

Casa Velha, tanto quanto Dom Casmurro, apresenta uma análise
que Machado faz sobre a sociedade carioca do século XIX. Encontramos
uma personagem (Lalau) rompendo os tabus que separam a classe superior da inferior,
assim como esta dos escravos.

Há em Casa Velha possíveis elementos do cenário
da infância e juventude de Machado de Assis. Uma explicação
possível para essa relação, é a de que Machado,
utilizando um pano de fundo tão pessoal, podia elaborar algo próximo
a uma real e exata crítica do mundo que o alimentara e formara.

Podemos resumir a história de Casa Velha da seguinte maneira:
Dona Antonia, a senhora da Casa, tem um filho natural, Félix, rapaz educado,
aparentemente inteligente e com um futuro predestinado de acordo com sua classe
social. Lalau, a menina agregada, era como se fosse da casa, que a visitava
com frequência, trazendo consigo sua leveza e juventude, foi educada e
praticamente criada por Dona Antonia, que aparentemente lhe tinha muito carinho.
Lalau e Félix se apaixonaram, o Cônego, homem das Luzes, que estava
à casa em um trabalho intelectual, descobre a paixão e resolve
intervir em favor desta. Dona Antonia, de acordo com o seu aprendizado, opõe-se,
utilizando-se de uma não verdade, constrói a história de
que Lalau e Félix são irmãos, impossibilitando assim a
futura união. Sofrimentos, diante dessa informação, passam
a nortear a vida dos apaixonados, inclusive do Cônego. Lalau se afasta
da casa. O Cônego descobre a intenção de Dona Antonia, intercede
novamente, agora junto à Lalau, e esta resolve seguir sua vida, feliz
ou não, teria sido honesta.

As palavras nos apresentam um romance tradicional, tem a bruxa que faz a mocinha
sofrer, tem o mocinho romântico e tem até o mago, mas não
tem o “E foram felizes para sempre”, tem a honestidade como fim,
o fim de buscar o que se é, portanto não temos um protagonista
com traços humanos, temos traços sociais, estáticos e naturalmente
ordenados. Assim como nas histórias tradicionais, a mocinha e o mocinho,
são os meios para que a bruxa e o mago exerçam seus poderes, e
aqui não é diferente.

Um século antes de Casa Velha, foi dito que o homem nasce livre,
mas encontra-se sempre aprisionado. Essa “prisão” seria aprendida
no processo de educação, tenderia a uma verdade, não isenta
de mutação, sendo que ela, no processo da vida, estaria vinculada
ao gosto, ao querer e consequentemente a um ser. Machado nos apresenta essas
verdades e quereres, lhes dá nomes próprios e neles as possibilidades
do ser.

Dona Antonia “nascera dona de casa; […] em todo o ministério
do marido apenas duas vezes foi ao paço. […] foi criada no Rio de Janeiro,
naquela mesma Casa Velha, onde casou, onde perdeu o marido e onde lhe nasceram
os filhos”. Essa seria a verdade de Da. Antonia juntamente com algum sentimento
por Lalau que “vinha um pouco esbaforida, voando-lhe os cabelos, que eram
curtinhos e em cachos, e quando Da. Antônia lhe perguntou se não
estava cansada de travessuras, Lalau ia responder alguma coisa, mas deu comigo,
e ficou calada; D. Antônia, que reparou nisso, voltou-se para mim. ‘Reverendíssimo,
é preciso confessar esta pequena e dar-lhe uma penitência para
ver se toma juízo. Olhe que voltou há pouco e já anda naquele
estado. Vem cá, Lalau’”.

E da monocromia se fazia a cor, e do credo à honra, se fazia a leveza,
a partir das travessuras de Lalau. Da. Antonia, dona por natureza, tinha o seu
brinquedo, o seu meio para ser. Como brinquedo, Lalau não era humana,
assim, uma vez que não cumprisse o seu papel, atendendo às necessidades
de sua dona, poderia ser colocada num canto qualquer e de qualquer maneira.

O Cônego reconhecendo “que não tinha os dons indispensáveis
ao púlpito” confessou-nos que “não acho do momento
um modo melhor de traduzir a sensação que essa menina produziu
em mim. Contemplei-a alguns instantes com infinito prazer. Fiei-me do caráter
de padre para saborear toda a espiritualidade daquele rosto comprido e fresco,
talhado com graça, como o resto da pessoa”. Estas eram as íntimas
verdades confessadas pelo Cônego, que poderiam ser vivenciadas de fato
por Félix que “não tinha certamente um plano de idéias,
e apreciações originais; a particularidade dele era a clareza
e retidão de espírito precisas para só recolher do que
ouvia a parte sã e justa, ou, pelo menos, a porção moderada.
Nunca andaria nos extremos, qualquer que fosse o seu partido”.

E da policromia fez-se o direito de colorir o tédio e deu-se a persuasão,
a partir da retidão de Félix. O Cônego, homem por natureza,
tinha o seu álibi, em nome de Deus, o seu meio para ser. Como retido,
Félix não era ator de sua história, assim, uma vez que
não era dono de si mesmo, poderia ser vivido por outro.

Da. Antonia continuaria monocromática, orando à honradez e dona
de sua verdade aprendida. O Cônego talvez volte a clamar castidade. Félix
seguiu o caminho reto que lhe ensinaram. Se quererão ser o que não
são, honestamente não sei.

Lalau, sem cor, sem papel definido, sem tradições, livre por
natureza. Livre para construir a si mesma, para buscar o seu ser, a sua razão
de ser e isso não foi apenas um querer.

Personagens principais

Lalau, a suposta protagonista, agregada por natureza, era
como se fosse da Casa, “uma criatura adorável, espigadinha, não
mais de dezessete anos, dotada de um par de olhos, como nunca mais vi outros,
claros e vivos, rindo muito por eles, quando não ria com a boca, mas
se o riso vinha juntamente de ambas as partes, então é certo que
a fisionomia humana confirmava com a angélica, e toda a inocência
e toda alegria que há no céu pareciam falar por ela aos homens”,
era como se fosse filha, filha de Dona Antonia.

Dona Antonia, a dona da Casa, dona por natureza, a representação
da dona daquele tipo de Casa “governava esse pequeno mundo com muita discrição,
brandura e justiça”, uniformizada e refém dela por ofício,
ofício de Dona, dona de um filho, Félix.

Félix, o mocinho, filho por natureza, aparentemente
altivo e inteligente, “parecendo aceitar o conceito alheio, de tal modo
que, às vezes, a gente recebia a opinião devolvida por ele, e
supunha ser a mesma que emitira”, e de acostumado a ouvir, quis se fazer
ouvir pelo breve amigo, o Cônego.

Cônego, o nosso narrador, homem por natureza e por natureza
homem. “Li as Memórias que outro padre, Luís Gonçalves
dos Santos, o Padre Perereca chamado, escreveu do tempo do rei, e foi esse livro
que me meteu em brios. Achei-o seguramente medíocre, e quis mostrar que
um membro da igreja brasileira podia fazer coisa melhor”, se fez coisa
melhor não sabemos, mas quis ser honesto.

Créditos: Alê Almeida, trabalho temático produzido
para o Curso de Graduação em Sociologia e Política, FESPSP
| Luiz Roncari, USP

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