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Cem dias entre céu e mar, de Amyr Klink

by Lucas Gomes

Publicado em 1985, Cem dias entre céu e mar,
é o relato de Amyr Klink de sua travessia absolutamente incomum: mais
de 3500 milhas (cerca de 6500 quilômetros) desde o porto de Lüderitz,
no sul da África, até a praia da Espera no litoral baiano, a bordo
de um minúsculo barco a remo. Foi sua primeira travessia do Atlântico
Sul em barco a remo, realizada em 1984.

Neste livro, ele reconstitui com detalhes essa viagem, do planejamento
à chegada. Mais que o simples relato de uma audaciosa aventura, a obra
é uma verdadeira lição de vida de um homem que conseguiu
superar seus próprios limites. Uma autêntica epopéia moderna.

Nesta verdadeira odisséia moderna, Amyr Klink transporta
o leitor para a superfície ora cinzenta, ora azulada do Atlântico
Sul, tornando-o cúmplice de suas alegrias e seus temores, ao mesmo tempo
em que narra, passo a passo, os preparativos, as lutas, os obstáculos
e os presságios que cercaram a extraordinária viagem. do oceano
Atlântico a bordo da “lâmpada flutuante” (o apelido que
ele deu a seu minúsculo barco à remo), é bem mais o registro
de uma façanha esportiva.

Uma intensa poesia atravessa todo esse livro: nas conversas com
os objetos a bordo e com os dourados e tubarões que lhe fazem companhia,
na esplendida visão de uma baleia que surge sob o barco no meio da noite;
ou ainda na forma como procura enxergar o tempo, na numeração
do cardápio, nas páginas do diário, nos fins de semana,
nas dobras da carta, onde ia anotando pacientemente dia-a-dia as agruras e alegrias
da viagem. Ao lado da qualidade épica com o meio natural aprendida no
convívio com a cultura caiçara do nosso litoral, aliada em seus
projetos ao que existe de mais avançado no mundo da tecnologia. E é
bem essa mistura de valores tradicionais e ousadia, que sustenta este navegador
em seus difíceis desafios.

No meio da narrativa de sua travessia solitária num pequeno
barco a remo entre a África e a Bahia, Amyr Klink nos revela a sua atração
pelos relatos de expedições marítimas de três navegadores
que fizeram a conquista do pólo sul. Segundo Amyr, eram relatos fascinantes,
principalmente porque ele os lia sentado numa escrivaninha, na casa da família
em Paraty.

Assim dizendo, o autor desvenda o segredo das histórias
que leu e das que escreve desde então: aventura é aventura mesmo
quando é vivida e, depois, contada. Os mares a que Amyr Klink se lançou
já tinham sido antes por vários outros navegados. Não havia
propriamente novidade no trajeto, que muito se baseava nas avenidas abertas
entre correntes e ciclos de ventos pelos portugueses dos tempos dos grandes
descobrimentos. Também não havia grande espanto no pequeno tamanho
do barco a remo, já que outros de seu porte já tinham vencido
águas geladas e raivosas. Mas sobrava a vontade de se valer das experiências
anteriores para desenhar um desafio: o de querer fazer e conseguir juntar gente
em torno de uma idéia. A preparação da viagem é
tão rica em coincidências e cuidados quanto o desenrolar dos dias
no mar é rico em peripécias. As emoções vêm
do respeito às grandes tempestades, dos sustos com os ataques dos tubarões,
das belas surpresas, como a companhia dos peixes dourados, e do maravilhamento
com a aproximação de uma creche: filhotes de baleias, fêmeas
e um zeloso macho negro. O cotidiano é feito de remar oito horas por
dia, de fazer cálculos precisos, de tirar alegria da refeição
deliciosamente desidratada, e de ter muito tempo para só contar consigo
diante do poder maior da natureza. Dessa rotina surge um homem sem dúvidas,
forte o suficiente para traduzir o que aprendeu, em belas frases (O medo
de quem navega não é o mar, mas a terra
) ou em sinceros e
sábios lugares-comuns (No mar, o menor caminho entre dois pontos
não é necessariamente o mais curto, mas aquele que conta com o
máximo de condições favoráveis
).

Ao lado da qualidade épica, há em Amyr uma rara
compreensão das relações do homem com o meio natural, apreendida
no convívio com a cultura caiçara do nosso litoral, aliada em
seus projetos ao que existe de mais avançado no mundo da tecnologia.
E é bem essa mistura de valores tradicionais e ousadia, de arrojo e sobriedade,
que sustenta este navegador em seus difíceis desafios.

Ao final da leitura o leitor sente-se um pouco aprendiz dos
mares, e disposto a enfrentar um de seus medos, aliás o único
permitido ao navegador: o medo de nunca partir.

Trechos escolhidos

(…)

– Que diabo vim fazer aqui, neste lugar maluco? – me perguntava
em voz alta. E, remando em silêncio, respondia: – Tentar sair daqui. De
fato, nada colaborava para que eu achasse normal a paisagem a minha volta. Ondas
completamente descontroladas, águas escuras, tempo encoberto, um barulho
ensurdecedor. Por onde andariam as tranqüilas águas azuis do Atlântico
de que tanto ouvira falar? Sem dúvida, longe da África.

(…)

“Grande navio cinza. Grande navio cinza. Aqui embarcação IAT chamando.
Responda. Câmbio.” E que surpresa ao ouvir a resposta num inglês bem
napolitano: “Prossiga IAT. Aqui é o Mount Cabrite. Câmbio.” Era um
cargueiro de bandeira liberiana e tripulação italiana que seguia
para os Estados Unidos. A comunicação de VHF é de curto alcance,
e portanto eles imaginavam que deveriam avistar outro barco próximo, um
veleiro talvez. Mas não conseguiram. Sem trair a emoção que
sentia, pedi uma confirmação de posição para checar
a precisão dos meus cálculos. E o diálogo que se seguir foi
um pouco lacônico: -Não o avistamos. Você perdeu o mastro?
– perguntou o operador. –Não tenho mastro! – respondi. –Você está
com pane nas máquinas? -Não tenho máquinas. Estou remando!
Houve silêncio no rádio. – Há outros sobreviventes? – voltou
ele novamente. – Não! Não! – respondi. – Sou o único tripulante
a bordo. Vou para Salvador. Está tudo bem. Por favor confirme e comunique
minha posição ao Concontramar no Rio de Janeiro. – Morreram todos
ou outros? – Não, não. Eu parti só, da África, de
Lüderitz. Novo silêncio. O oficial de rádio custou a acreditar
e, enquanto pedia a posição à ponte de comando, não
escondeu que duvidava do que ouvia.

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