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Cemitério de Elefantes, de Dalton Trevisan

by Lucas Gomes

Cemitério de Elefantes

, de Dalton Trevisan, publicado
em 1964, reúne contos do autor, onde coloca em destaque histórias
que, de um lado, se passam no contexto rural, com personagens à margem
do mundo moderno, refletindo um universo fundado em valores patriarcais, e,
de outro, a temática urbana, representada em um de seus contos mais famosos
Uma Vela para Dario – que representa a degradação da
morte em um ambiente urbano. Dario passa mal, morre e é roubado sem que
ninguém o ajude. A multidão assiste durante horas a sua agonia,
movida pela curiosidade, sem um traço de piedade. É um anônimo,
assim como a multidão que o cerca.

Nesse mesmo livro, o conto – Cemitério de Elefantes
– traz ao leitor um mundo de seres situados à margem do chamado “mundo
oficial”. Simbolizando a categoria marginal dos personagens, os bêbados
vivem à beira do rio e são alimentados pelos pescadores. Um duplo
sentido é estabelecido: bêbados e elefantes são a imagem
viva do peso, da lentidão, da falta de jeito e, ao mesmo tempo, aceitam
resignadamente um destino irrefutável.

Vejamos alguns contos da obra:

Uma vela para Dario

Conto narrado em terceira pessoa. É a estória
de Dario, um cidadão comum que passa mal na rua e agoniza.

Vem por uma esquina e encosta-se numa parede. Alguns passantes
perguntam se não está bem, mas Dario já não tem
forças para responder, escorre pela parede e sua boca se enche de espuma.

Um rapaz o ajuda, desapertando suas roupas, seu cachimbo apaga
e Dario rouqueia feio junto às bolhas de espuma que lhe surgem da boca.

As pessoas que passam se acercam da cena e um senhor gordo repete
que Dario caíra e deixara cair seu guarda chuva e seu cachimbo, que já
não mais estão ali.

Arrastam-no para um táxi, mas ninguém quer pagar
a corrida. Cogita-se em chamar uma ambulância e Dario já não
tem seus sapatos nem o alfinete de pérola na gravata.

Dario continua à mercê daqueles que o cercam e
alguém fala da farmácia, mas é no outro quarteirão
e pelo seu peso, as pessoas desistem de levá-lo. É abandonado
em frente a uma peixaria.

Aparece mais um que se prontifica a ajudá-lo sugerindo
que lhe examinem os papéis. Ele é revistado e ficam sabendo quem
ele é, mas ninguém resolve nada.

Chega a polícia e a cena é cercada de uma multidão
de curiosos. Dario é pisoteado e o guarda não pode identificar
o seu cadáver. Ainda lhe resta a aliança de ouro que Dario só
conseguia tirar molhando com sabonete.

“A polícia decide chamar o rabecão”.
“A última boca repete — Ele morreu, ele morreu.”

Há uma dispersão, quando as pessoas observam agora
a um defunto. Um senhor piedoso aproxima-se e arruma o corpo da maneira que
pode, ajeitando a cabeça sobre o paletó enrolado e cruzando as
mãos sobre seu peito. A multidão termina por se espalhar e Dario,
incógnito, agora só representa mais um cadáver, um indigente
sem valor no meio da rua. A narrativa coloca as pessoas da cena como que indiferentes
em sua rotina, diante do cadáver: “Na janela alguns moradores com
almofadas para descansar os cotovelos.”

Fecha-se a estória sem que a esperança de humanidade
seja possível. Só o gesto de um menino salva a morbidade do desfecho.
Dario é completamente saqueado e abandonado. “Um menino de cor e
descalço vem com uma vela, que acende ao lado do cadáver”.
“Fecha-se uma a uma as janelas. Três horas depois, lá está
Dario à espera do rabecão. A cabeça agora na pedra sem
o paletó e o dedo sem aliança. O toco de vela apaga-se…”

Cemitério de Elefantes

Narrativa em terceira pessoa. Nos fala sobre um grupo de bêbados
de Curitiba, que vivem à Meca do que a cidade os oferece. “Curitiba
os considera animais sagrados, provê as suas necessidades de cachaça
e pirão.”
Eles vivem à margem do rio Belém, nos fundos de um mercado de
peixes onde existe um velho ingazeiro. Aí onde vivem, os bêbados
são felizes. Se contentam com as sobras, mas quando aperta a fome vão
até o mangue para assar caranguejo e também se fartar dos frutos
ingazeiro.

Os personagens são comparados a elefantes, o que dá
um ar grotesco às suas formas e maneiras. “Elefantes Malferidos,
coçam as perebas sem nenhuma queixa…”

Pedro, João, o Cai N’água, Jonas, Chico Papa-Isca;
todos bêbados moribundos a procura de simplesmente sobreviver aos restos
do mangue; cada qual com seu lugarzinho reservado. São todos uns dorminhocos
e quando acordam ninguém se pergunta onde é que foi o amigo que
está ausente. “E se indagassem para levar-lhe Margaridas do banhado,
quem saberia responder?”

Vivem entregues ao curso das horas e às, intempéries
do local precário onde se instalam. “…escarrapachados sobre as
raízes que servem de cama e cadeira”. “A viração
da tarde assanha as varejeiras grudadas nos seus pés disformes.”

Quando cai um fruto de ingazeiro se despertam rolando no pó
e o ganhador se farta de olhos plenos de satisfação. As disputas
não geram brigas, quando muito discussões à distância.
Neste “cemitério” não existe violência.

Assim os bêbados elefantes, vão vivendo, suportando
suas doenças, e suas dificuldades. Não existe ninguém em
especial, nenhum destaque de algum personagem.

No final a metáfora da narrativa deixa para o leitor
a conclusão da saga dos bêbados elefantes.

“Cospe na água o caroço preto do ingá,
os outros não a interrogam: presas de marfim que apontam o caminho são
as garrafas vazias. Chico perde-se no cemitério sagrado as carcaças
de pés grotescos surgindo ao luar.”

Duas Rainhas

Narrado em terceira pessoa, é a estória de duas
irmãs, pra lá de gordas, que vivem juntas e não conseguem
parar de comer e engordar.

Augusta reclama de Rosa, “A Rosa é muito tirana”
por ela ter desfeito os seus noivados. Mas o último dos três noivos
conquista a Augusta e apesar da irmã opor-se instalaram-se na casa dos
pais.

Glauco, proíbe Augusta de ir aos bailes e não
deixa que ela o acompanhe até o portão. Ficam fechados o tempo
todo dentro do quarto e Rosa reclama com sua mãe ” — Já se
viu (…) que pouca-vergonha?”

O marido quase não dorme, enquanto observa Augusta que
ronca. Ela perde alguns quilos e Rosa engorda.

Saem para fazer compras e Rosa é confundida como se estivesse
grávida.

Com isso, Glauco começa a beber.

“— Você tem vergonha de mim — choraminga Augusta.”

“— Se ao menos evitasse bolinha no vestido.”

Rosa tripudia pois não acreditava no casamento da irmã.

Glauco briga com a irmã, com o sogro e a sogra. As irmãs
continuam sempre nas gulodices e anunciando o regime para o dia de amanhã.
Têm sonhos com bichos, Augusta adora um elefante branco. Uma tarde explode
o escândalo. Dona Sofia e Augusta vão ao dentista, na volta encontram
Rosa em prantos. Glauco investiu e derrubou-a no sofá, aos gritos e beijos:

“— Minha rainha das pombinhas!”

Augusta só quer morrer e agora as duas ficam no quarto
de casal e o marido no quarto de hóspedes. Bebe feito condenado enquanto
as irmãs engordam mais. Reclamam da magreza de Glauco:

“Viu o Glauco? — Magro que dá pena (…)

— Não sei onde está com a cabeça.

— Gente magra é tão feia!”

“Contemplam-se orgulhosas…”

Acaba o conto as irmãs juntas, apoiando uma em cada janela
da casa e prometendo que amanhã farão regime.

“— Amanhã dia de regime (…) — Que tal pedacinho
de goiabada? (…)”

“Derrete-se a guloseima na língua. Rosa tremelica
o papo rubicundo. Suspendendo a perna com duas mãos, Augusta cruza os
joelhos.”

Trechos escolhidos de outros contos

“…Às festinhas de família, comparece o irmão
Agenor, preferido do pai. José volta bêbado de madrugada. A mãe
traz-lhe comida, ele se queixa, coçando a barba: O menino de ouro vem
aí, Dão o carrão pra ele. O menino querido sai de carro.
E o bichão aqui não tem nada. Depois sou eu que eu vivo à
custa do Chiquinho.

– Respeite o pai, meu filho.

– Quem, o Chiquinho? Que se dê o respeito para as negas
dele.”

(“O Caçula” – Cemitério de Elefantes)

“Bebeu no botequim: ali não havia homem. E cuspiu
no soalho. Ai de quem protestou…Invadiu a casa do velho Felipe. Derrubou cadeira,
bradava nome feio contra a sogra. Aos gritos pulava com a faca na mão.
Discutiu como velho, tirou o paletó para brigar. Conseguiu Felipe que
lhe entregasse a garrafa. Miguel estranhou a sogra e lhe passou uma rasteira,
sentada no chão com as pernas de fora.

Felipe acudiu a velha, que gemia muito. Com a machadinha de
picar lenha, Miguel desferiu três golpes que foram desviados . O sogro
alcançou a garrafa e o derrubou com uma pancada na cabeça. Partiu-se
o vidro e gritou o velho:

– Acertei uma boa…

Ergueram-se as duas mulheres. Era pequeno e magrinho, só
quando bebia perigoso e muito ligeiro.

Amparado, Miguel caminhou até o quarto. Ainda se voltou
para resmungar palavrões contra o sogro. Na cama balbuciou alguns nomes.
Foi se arruinando ao ponto de perder a fala. De madrugada saiu-lhe na boca uma
espuma branca. Pela manhã, conduzido ao hospital, morria sem conhecer
a mulher que lhe sustentava a cabeça no colo. Quando o desceram da carroça
ficou um pouco de sangue no vestido amarelo de Elira.”

(“Questão de Família” – Cemitério
de Elefantes
)

“O desgosto do velho Tobias é o filho: a medonha
carinha vermelha de mongolóide.

– É tarado – desculpa-se e corrige – Doente de nascença.

– Um bicho em criança, andava de quatro, a língua
de fora; aos pulos subia na árvore com a agilidade de mico. Amarrado
com os cachorros no fundo do quintal. Escapando, arrastava a coleira pela rua
– uma correria entre as crianças. Cabeça bem pequena, nariz purpurino,
um guincho selvagem. Aos vinte anos, engolia as palavras – a língua uma
ostra que não engolia.

– A omba oou…

– A pomba voou. Mais que as surras de correia do pai, domesticava-o
a paciência amorosa de Dona Zica. No sábado apara-lhe as unhas
e dá um cigarrinho para que aceite o barbeiro; inquieto na cadeira ,
três talhos no pescoço atarracado.”

(“Beto” – Cemitério de Elefantes)

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