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Os indianos: 2. As invasões indo-europeias e a civilização védica

by Lucas Gomes



Esqueletos descobertos em Mohenjo-Daro por ocasião das escavações
realizadas por John Marshall e E. J. H. Mackay, entre 1922 e 1931

Dois esqueletos jaziam nos degraus de tijolos que ligam a ruela aos poços
situados no nível inferior. Um deles era de um homem, outro provavelmente
de uma mulher. A morte surpreendeu essas duas pessoas quando elas subiam a escada
para sair à rua, e uma delas caiu de costas. Um pouco mais adiante, na
ruela, havia dois crânios. Próximo dali, encontraram-se nove outros,
dos quais cinco de crianças, amontoados como se tivessem sido jogados
apressadamente em um fosso. Um cômodo de uma ampla casa situada na parte
oposta da cidade abrigava um macabro depósito: esqueletos de treze adultos
de ambos os sexos e uma criança – entre os quais figurava um crânio
fendido, talvez por um golpe de espada, e outro danificado por uma arma semelhante.

Ao todo, trinta e sete cadáveres haviam sido abandonados por volta
do ano 1800 a.C., nas ruas ou nas casas de Mohenjo-Daro. Tal descoberta, por
ocasião das escavações realizadas por John Marshall e E.
J. H. Mackay entre 1922 e 1931, constituiu para os especialistas como um enigma
policial dos mais difíceis de resolver, já que não se tratava
simplesmente de identificar os assassinos, mas também de esclarecer o
mistério que cobria como um véu a verdadeira história do
fim de uma civilização e do milênio que a ela se seguiu.
Desde o suposto momento do massacre das vítimas, Mohenjo-Daro, essa grande
cidade do próspero vale do Indo, parece ter permanecido desabitada durante
dois mil anos.

Depois de muitos estudos e pesquisas concluiu-se que não fora a civilização
que se extinguira, mas as cidades, e as armas não haviam tido ali nenhum
papel. À medida que o Saraswati secava e se modificava o curso do Indo,
é provável que as inundações tenham destruído
numerosas colônias, enquanto outras, instaladas nas margens escarpadas
dos rios, encontravam-se longe da água e das mudanças por elas
provocadas. Mohenjo-Daro e Harappa foram construídas parcialmente sobre
enormes plataformas de tijolo destinadas a protegêIas das enchentes, foram
poupadas de danos maiores.

Ambas, porém, foram vítimas de outra enchente, a maré
humana dos refugiados que vinham das povoações menos afortunadas.
Talvez seja mais à superpopulação que ao abandono que devamos
imputar a decadência e a insalubridade dessas cidades. E podemos supor
que a agricultura, duramente atingida pelo esgotamento do solo e pelos danos
causados pelas enchentes, mal tenha podido satisfazer as necessidades dessas
populações em plena expansão.

Pode-se afirmar agora que o mistério havia se tornado mais denso: se
as populações harappianas não foram dizimadas pelos invasores,
por que teriam elas desaparecido sem deixar rastros, legando não mais
que um nome à posteridade? De que maneira os indo-arianos, simples pastores
nômades e belicosos, puderam dar à luz uma grande religião,
uma literatura magnífica, e construir as soberbas cidades que iriam fazer
a glória da Índia clássica a partir do século VI
a.C., e por que estas realizações demoraram tanto a surgir?

Os métodos tradicionais da arqueologia não estavam à
altura de fornecer a mínima resposta a essas perguntas. As cerâmicas
e outros objetos deixados pelas culturas pós-harappianas não ofereciam
informações suficientes para lançar luz sobre a idade obscura.
Além do mais, os arqueólogos não encontraram nenhum vestígio
dos primeiros indo-arianos, esses pastores que não deixavam marca durável
no território que percorriam. Foi da singular colaboração
entre cientistas e poetas há tanto tempo desaparecidos, associando um
meticuloso trabalho de escavação e medição a meditações
sobre as sutilezas dos cânticos, a certos detalhes dos rituais e ao testemunho
de uma língua morta que nasceram os primeiros elementos de uma hipótese
de todo nova. E esta nova maneira de sondar os mistérios do passado possuía
raízes tão profundas quanto a própria história da
Índia.



Rig Veda ou Rigveda, Livro dos Hinos, é o Primeiro Veda e é o
mais importante,
pois todos os outros derivaram dele. Rig Veda é o Veda mais antigo e,
ao
mesmo tempo, o documento mais antigo da literatura hindu, composto de hinos,

rituais e oferendas às divindades.

O sânscrito era a língua sagrada dos hindus, aquela que seus
ancestrais indo-arianos haviam utilizado para conservar por escrito os textos
sagrados mais antigos, os quatro Vedas, a começar pelo primeiro, o Rigveda.
Em 1784 foi publicada a tradução do “Bhagavad-Gita”,
um dos textos fundamentais da filosofia hindu, que trata dos deveres e das boas
ações e faz parte do Mababharata, poema épico composto
por volta de 800 a.C. Primeira obra da literatura sânscrita a ser publicada
em inglês, o “Bhagavad-Gita” tornou-se um clássico, muitas
vezes comparado à Ilíada, relato da guerra de Tróia escrito
por Homero, e a gozar de imensa popularidade pelo mundo afora.

Estabelecidas ligações entre certas palavras em sânscrito
e seus equivalentes gregos e latinos, chega-se à surpreendente conclusão:
o sânscrito, o grego e o latim apresentavam tantas semelhanças
nos verbos e nas formas gramaticais que “nenhum filólogo podia examiná-las
sem acreditar que haviam surgido de uma fonte comum, talvez desaparecida há
muito tempo”. Alargando ainda mais esta hipótese, declarava-se que
muitas outras línguas, aí compreendidas as pertencentes aos grupos
germânico e céltico, deviam provir dessa fonte comum. Além
de descobrir o que se passou a chamar de família indo-europeia, foi aberto
um novo campo do conhecimento, o da filologia comparada.

Os textos fundamentais desse corpus – os quatro Vedas e dois poemas
épicos – tinham de excepcional o fato de oferecerem informações
sobre uma época antiga, da qual nenhum outro texto escrito sobrevivera.
Mesmo assim, seu valor documental é discutível, porque nada permite
distinguir entre o que é mito e o que é história.

O primeiro dos quatro Vedas, o Rigveda, contém 11 mil e dezessete hinos,
cuja composição original remonta provavelmente à primeira
metade do segundo milênio. Esses poemas, que expressam o temor diante
dos mistérios da vida e do universo, foram compilados pelos brâmanes,
que lhes deram uma forma padronizada, pela qual os transmitiram oralmente através
das gerações. Eles só foram postos em forma escrita muito
mais tarde; o documento escrito mais antigo que se conhece remonta ao século
XIV de nossa era, ou seja, muito tempo depois do início da era histórica.

Ao Rigveda juntam-se duas outras obras, o Yajurveda e o Samaveda, em que se
encontram instruções e fórmulas detalhadas para os sacrifícios
e a declamação dos hinos. O quarto, o Atharvaveda, um pouco mais
tardio, comporta fórmulas mágicas destinadas a controlar as coortes
de novos demônios e as moléstias desconhecidas encontradas pelos
indo-arianos à medida que adentravam o subcontinente indiano. Após
os Vedas surgiram as duas grandes epopeias, o Ramayana e o Mahabharata.
Com o tempo, os Vedas acabaram por ser considerados revelações
divinas da verdade metafísica, e as epopeias, instruções
sobre a arte de guiar a própria conduta.

Para os arqueólogos a poesia védica e as meditações
religiosas não constituem de forma alguma uma fonte de informação
confiável. Seja qual for seu valor literário, esses textos não
têm para eles nenhuma utilidade, já que não atribuem nenhuma
data ou lugar aos acontecimentos que descrevem.

É a William Jones, que já havia revelado ao mundo a literatura
védica, que se deve reconhecer o mérito de ter estabelecido, pela
primeira vez, um liame entre a poesia e a história. O fator decisivo
dessa revelação foi a descoberta de outro nome do Son, rio que
deságua no Ganges, a leste de Patna. O culto pesquisador já possuía
várias informações essenciais: sabia que o lugar em que
confluíam o Ganges e o Son se localizara antigamente em Patna, antes
de deslocar-se para leste movido por formidáveis catástrofes naturais,
e que, nos tempos antigos, essa cidade se chamava Pataliputra. Um dia, ele encontrou
em um trecho da literatura sânscrita uma referência ao Son como
“rio do braço de ouro”, ou Hiranyabahu, e o sentido dessa descoberta
evidenciou-se para ele com uma clareza que teria certamente escapado a quem
não dispusesse dessas informações.

Jones, que tornara a mergulhar nos textos clássicos gregos, na esperança
de ali encontrar alguma ligação com os acontecimentos descritos
pelos textos sânscritos, avaliou que a invasão do Pendjab por Alexandre
Magno, em 326 a.C., lhe oferecia melhores oportunidades com relação
a isto, já que os autores gregos tratavam esse episódio histórico
com riqueza de detalhes. Mas infelizmente a invasão não era sequer
comentada pelos trechos sânscritos. Mesmo assim, o sábio inglês
descobriu que o historiador e diplomata grego Megástenes, que fora enviado
em missão ao rei indiano Sandracottus por Seleuco I Nicator, um dos sucessores
de Alexandre, escrevera numerosas páginas sobre a corte desse soberano
da Índia e sobre sua capital, Palibothra, situada na confluência
dos rios Ganges e Erranaboas. Se o segundo rio correspondia ao Son, seria possível
sustentar a tese de que o Palibothra não era outro senão o antigo
Pataliputra. Até a descoberta de Jones, de que o rio era igualmente chamado
de Hiranyabahu, não havia como estabelecer nenhuma semelhança
entre os nomes Erranaboas e Son.

A continuação das pesquisas veio revelar que na época
de Megástenes reinava em Pataliputra (ou Palibothra) um rei conhecido
na literatura védica pelo nome de Chandragupta, que correspondia a Sandraguptos,
uma variante do Sandracottus de Megástenes. De acordo com o que se sabe
sobre o reino de Seleuco I Nicator, foi entre 325 e 313 a.C. que Chandragupta
Mauria subiu ao trono. A partir daí, a lista de reis fornecida pela literatura
védica permitia estabelecer um ponto de partida cronológico para
o período seguinte. Mas não se dispunham de elementos suficientes
para recuar tanto no passado.

Apesar da imprecisão das informações no que tange a datas
e lugares, o leitor atento podia extrair dos Vedas bom número de informações
sobre seus autores indo-arianos e o território onde viviam. Em um dos
hinos mais recentes, os versos do Rigveda fazem frequentes alusões
aos cinco rios que dão seu nome ao Pendjab (pendi quer dizer
“cinco”, e ab “rio”), mas o Ganges não é
citado sequer uma vez. Mesmo assim, nos Vedas seguintes o território
dos indo-arianos desloca-se progressivamente para leste, para além do
caudaloso rio chamado Saraswati, até as planícies de Kurukshetra,
no Doab, ou país dos Dois Rios, entre o Ganges e o Yamuna.

Os autores do Rigveda falam de si mesmos como pastores semi-nômades,
de índole belicosa, que extraem alguns recursos da agricultura para complementar
sua riqueza em cavalos e bovinos. As divindades de seu panteão são
muito poderosas – Indra, deus da guerra e da conquista, que despeja raios do
seu carro de fogo e gosta de embriagar-se com o licor sagrado; ou Agni, deus
do fogo, encarregado de queimar as oferendas em holocausto e de servir de intercessor
entre os homens e as inumeráveis divindades associadas aos diferentes
aspectos da natureza.

Por meio do culto prestado a cada um desses deuses – cujos rituais são
descritos pelos Vedas – o crente busca unir sua alma à divindade, fonte
do curso harmonioso do nascimento, do crescimento, da velhice e da renovação,
que são a herança do homem, dos deuses e do universo. Esse espírito
é chamado pelo Rigveda de Rita, enquanto os outros Vedas o denominam
Brama. Somente a realização desse poder universal pode liberar
a alma do ciclo do nascimento, da morte e da reencarnação.

Tal como descrita nos primeiros Vedas, a sociedade indo-ariana dividia-se
em três classes – os brâmanes, os kshatriya e os vaishya -, que
compreendem todos os “nascidos duas vezes”, isto é, todos aqueles
que receberam os sacramentos que permitem participar dos rituais védicos.
A primeira das castas era a classe dos especialistas nos rituais, dos sacerdotes
e dos poetas; a segunda era a dos guerreiros, que também podiam ser chefes
de tribos; e a terceira, situada na parte inferior da hierarquia, era a dos
mercadores e dos artesãos.

Com o passar do tempo, a cultura védica foi-se tornando cada vez mais
complexa. Os textos e as epopeias mais tardias contêm descrições
do uso dos instrumentos de ferro (ausentes no Rigveda) e do arado, bem como
da cultura de diversos cereais, do trigo ao arroz. À medida que aumentavam
em número, os indo-arianos foram colonizando extensões de terra
cada vez mais vastas e contraindo matrimônio com as populações
locais, dando ensejo ao surgimento de rixas e rivalidades entre clãs
e alianças de clãs, entre invasores e nativos. Esses antagonismos
exigiram uma concentração de recursos e de poder, que levaram
à necessidade de uma organização mais sofisticada e consequentemente
de uma maior estratificação social.

Os dois estamentos superiores da sociedade indo-ariana logo perceberam que
suas especialidades podiam ser complementares, e que podiam colaborar um com
o outro, conservando os sacerdotes sua supremacia sobre os assuntos religiosos
e culturais, e estendendo os guerreiros sua autoridade ao campo político
e econômico. A sociedade indo-ariana dividiu-se, a partir de então,
em duas esferas, uma espiritual e outra secular, cada uma delas ainda mais complexa.
Os rituais e sacrifícios passaram a ganhar cada vez mais importância
e foram codificados na literatura védica, o que permitiu drenar mais
e mais poder e riqueza para as mãos dos sacerdotes e guerreiros.

Foi assim que nasceu a noção do dharma, “o que sustém”,
ou “a ação justa”, corpo de doutrinas filosóficas,
religiosas e sociais que se tornaria o fundamento do hinduísmo e passaria
a ocupar um lugar preponderante no pensamento e no comportamento dos indianos
durante toda a época clássica e até a era moderna. O dharma
guia o atman, ou alma individual, para que esta realize sua identidade essencial
com Brama, a fonte de todas as existências. Na sequência das
tribulações, que são a herança da vida e do ciclo
das reencarnações, cada um pode tanto aproximar-se da moksha,
última serenidade e libertação da transmigração,
como afastar-se dela. Aproxima-se aquele que cumpre todos os dias os rituais
que geram méritos religiosos, se dedica à prática da meditação
ioga, segue os ensinamentos de um guru, ou mestre espiritual, e com seu comportamento
dá mostras de sua pureza e desapego. Já o que se afasta dessa
via, seja na vida atual, seja na precedente, fica impedido de atingir o moksha
devido ao seu carma (lei das causas e efeitos que transcende o limite da existência).

Os Vedas mais recentes fazem referência a uma excrescência das
três classes acima definidas, justificada pelo fato de que a sociedade
conta em seu meio com indivíduos que não merecem nem o status
nem os privilégios dos nascidos duas vezes. Com o tempo, essa categoria
de seres humanos inferiores, os shudra, encontra-se não apenas excluída
dos rituais de purificação do carma mas também é
considerada propriedade das classes superiores, tal como o gado ou os utensílios.
Baseada originalmente na capacidade de cada um, essas divisões da sociedade
indo-ariana foram pouco a pouco se transformando em um sistema de castas rígido
e hereditário, favorável às classes superiores e às
corporações de artesãos, cuja prosperidade – material e
espiritual – provinha do trabalho dos “intocáveis”, casta de
servos privados de direitos que sobreviveu até nossos dias com o mesmo
nome.

Os brâmanes asseguraram seus privilégios retendo a exclusividade
na celebração dos rituais – somente eles memorizavam e transmitiam
os Vedas -, defendendo o recurso às cerimônias em todas as circunstâncias
possíveis e imagináveis e cobrando honorários elevados
para cuidar que elas se realizassem segundo as regras. Ao mesmo tempo que eles
exerciam essa autoridade ritual até sobre os poderosos chefes de tribo,
sugavam a riqueza da classe dos mercadores e fiscalizavam para que os shudra
permanecessem na base da pirâmide social, interditando seu acesso aos
méritos decorrentes da observação dos rituais.

Essa divisão da sociedade e do poder estabelecida pelos indo-arianos
ajuda a explicar um dos mistérios da pretensa idade dos Vedas: a ausência
de grandes cidades. Enquanto a classe dirigente colabora com o clero e o exercício
do seu poder passa pelos rituais, não se faz sentir a necessidade de
uma administração complexa. Enquanto a acumulação
de riqueza é severamente controlada, não há lugar para
os centros comerciais. Essas observações levam a pensar que na
sociedade descrita pelo Rigveda a vida devia concentrar-se nas aldeias e nos
centros religiosos; e é exatamente isso que confirmam os vestígios
arqueológicos dos primeiros tempos da era védica.

Embora os Vedas tenham permitido aos pesquisadores construir uma imagem sumária
mas razoavelmente clara da evolução dessas tendências no
seio da sociedade indo-ariana, permanece ainda uma pergunta: Qual era a identidade
das populações autóctones que os invasores eurasianos encontraram
ao chegar, e que tipo de relações foram instauradas entre os dois
grupos? Os Vedas nada dizem a esse respeito, englobando todos os não-arianos
em termos genéricos como Pani e dasyu, aos quais se juntam às
vezes qualificativos pejorativos, tais como “de pele escura” ou “de
nariz chato”.

Entretanto, uma análise mais minuciosa e mais aprofundada dos Vedas
levou os linguistas à conclusão de que os indo-arianos nem sempre
tinham encarado as populações autóctones com tal desprezo.
O sânscrito dos Vedas, por exemplo, guarda traços fonéticos
e semânticos da língua dravída, que muitos estudiosos acreditam
ser derivada da língua harappiana. Tais empréstimos sem dúvida
não teriam sido possíveis sem um contato estreito e prolongado,
e talvez até mesmo sem casamentos entre os dois grupos, ou sem a abertura
da religião védica às populações nativas.
O exame atento do nome de um herói védico indica, por exemplo,
uma ascendência dasiu, e os patronímicos de diversos brâmanes
citados nos Vedas mais recentes não deixam dúvida quanto à
sua origem não-ariana.
Tão logo os arqueólogos decidiram aplicar esses trabalhos à
realidade para enriquecer o quadro da vida cotidiana na época védica
fornecido pela literatura, e estabelecer a identidade das populações
com as quais os indo-arianos tinham entrado em conflito, os dados que recolheram
pareceram-lhes à primeira vista desconcertantes. A maioria dos estudiosos
permaneceu admitindo a hipótese de que, mesmo abandonando a ideia
de uma grande conquista militar, as populações indígenas,
fosse qual fosse sua identidade, tinham ao menos sofrido, da parte dos indo-arianos,
uma magistral derrota no campo cultural. Certas descobertas arqueológicas
– conjunto de objetos de cobre, vestígios de uma cerâmica distintiva
e sinais do início da idade do ferro – pareciam confirmar esse ponto
de vista. A tentação de atribuir todas essas inovações
aos invasores nômades era tão sedutora que poucos resistiram a
ela, embora, afinal de contas, não houvesse nenhuma prova para fundamentá-la.

Em 1951, o número de conjuntos de ferramentas de cobre desenterrados
no Doab e no centro da Índia chegava a trinta e sete. Como tais ferramentas
diferiam, pela forma e pela função, das da cultura harappiana,
e como atribuía-se a elas uma data que parecia coincidir com a da chegada
dos indo-arianos, alguns estudiosos concluíram que elas constituíam
mais um sinal da invasão e da dominação do vale do Ganges
pelos indo-arianos. Mas as pesquisas posteriores vieram desmentir de uma vez
por todas essas suposições cômodas. Os modernos métodos
de datação permitiram, com efeito, determinar que certos objetos
desses conjuntos haviam sido enterrados desde 2650 a.C., e que a aparição
dos indo-arianos remonta ao ano 1800 antes de nossa era.

As escavações efetuadas por B. B. Lal, membro da Sociedade Indiana
de Arqueologia e aluno de Mortimer Wheeler, oferecem outro exemplo de como a
vontade indomável de confirmar as hipóteses em vigor a propósito
das origens e da história dos indo-arianos muitas vezes se surpreende
com perspectivas inesperadas. No início da década de 1950, Lal
procurou levantar o véu de mistério que caía sobre a idade
obscura dos Vedas, e tentou resolver o que ele qualificava de “um dos problemas
mais desconcertantes da arqueologia indiana”. Em sua busca da verdade sobre
os indo-arianos, ele tomou como guia o poema épico Mahabharata, onde
se encontra o relato sobre a batalha entre cinco príncipes virtuosos
e seus cem primos maus pelo domínio de um reino muito próspero.
Depois de identificar mais de trinta sítios associados ao relato, Lal
lançou-se a uma estafante empreitada de exploração sistemática.
O essencial de suas descobertas consistiu em cacos de louça de barro,
um dos vestígios mais comuns deixados pelos povos antigos. As camadas
inferiores dos sítios aonde o haviam levado os relatos da literatura
védica revelaram entretanto peças de um gênero especial,
“uma bela cerâmica cinza decorada com motivos desenhados em negro”,
para usar as próprias palavras do arqueólogo. Praticamente todos
os sítios védicos do Pendjab e do Doab revelaram esse estilo de
cerâmica, denominado Painted Grey Ware, o qual remonta à primeira
metade do primeiro milênio antes de nossa era. B. B. Lal passou então
a considerar uma possibilidade, a de que “essa cerâmica detém
talvez a chave dos mistérios da idade obscura”.

Assim como a presença de esqueletos havia sido interpretada por Wheeler
como sinal de uma invasão militar, também Lal e seus colegas dos
anos 50 supuseram que a mudança observada na cerâmica assinalava
o aparecimento de um novo povo. A Painted Grey Ware não se parecia com
a cerâmica harappiana; além de sua argila ser mais fina, o cozimento
mais cuidadoso e a decoração mais elaborada, a elegância
das formas levava a marca do seu criador. Por volta do século VI a.C.
a Painted Grey Ware foi substituída pela Northern Black Polished Ware,
cerâmica negra polida associada à época clássica
da Índia.

O fato de que esse tipo de cerâmica facilmente identificável
ocupava lugares precisamente defInidos veio reforçar a interpretação
tradicional sobre a idade obscura: a cultura da Painted Grey Ware, dos indo-arianos,
havia suplantado a cultura harappiana, antes de ser, por sua vez, substituída
pela Northern Polished Black Ware.

Outras descobertas pareciam confirmar indiretamente esse cenário. Ao
lado das cerâmicas cinzentas pintadas, encontraram-se por vezes esqueletos
de cavalos e vestígios de trabalhos em ferro, metal que surgiu no subcontinente
quase na mesma época. Foi assim que Lal e outros pesquisadores construíram
a imagem dos indo-arianos como um povo de cavaleiros belicosos, que trabalhavam
o ferro e produziam a cerâmica acinzentada, e de uma cultura que acabou
por desalojar a civilização urbana do vale do Indo.

Houve entretanto outros arqueólogos que chamaram a atenção
para o fato de que não se havia descoberto nenhuma cerâmica do
tipo Painted Grey Ware fora dos sítios do noroeste da Índia. A
ideia de que os indo-arianos tinham trazido a cerâmica consigo,
sem que dela restasse o menor traço antes de sua chegada, tinha poucas
chances de ser aceita. A conclusão que acabou por firmar-se foi a de
que a Painted Grey Ware não era um produto importado pelos invasores
recentes, mas fruto do trabalho das populações autóctones,
que provavelmente haviam ocupado a região durante muito tempo.



Painted Grey Ware (PGW) encontradas no Ghaggar e regiões
Indo-Ganges e pertencem ao início da Idade do Ferro na Índia

Quando os especialistas decidiram estudar os vestígios arqueológicos
sem se deixar influenciar pelas hipóteses antes prevalecentes a respeito
dos indo-arianos, pareceu-lhes mais lógico pensar que os autóctones
tenham procedido a mudanças na cerâmica que produziam do que deduzir
dessa modificação a chegada de uma nova população.
Desde o final da década de 1970, são cada vez mais numerosos os
especialistas na arqueologia da Índia antiga a acreditar que a Painted
Grey Ware – da mesma forma que os conjuntos de ferramentas de cobre – é
produto da evolução de uma cultura de muitos séculos de
existência e estabelecida por muito tempo na região.

Sabe-se que os harappianos expulsos de suas cidades pelas inundações
e modificações de curso dos rios emigraram para o vale do Indo,
o Pendjab e os limites ocidentais do vale do Ganges, onde se empenharam em fazer
renascer sua agricultura em novas terras, iniciaram os trabalhos em cobre e
em ferro e se adaptaram a culturas e técnicas que ate então lhes
eram desconhecidas.

A introdução de culturas de verão – como a do sorgo,
do milho e do arroz – revela uma policultura sazonal bem mais complexa e mais
produtiva que os métodos e culturas precedentes, e geradora de excedentes
de cereais que permitiram a expansão da pecuária, do povoamento
e do comércio. Nessa mesma época, as espessas florestas do sudeste
do Doab e do centro do vale do Ganges abrigavam outros grupos nativos, constituídos
principalmente de caçadores-coletores, que eventualmente praticavam também
a agricultura e a pecuária. Durante o segundo milênio anterior
à nossa era, essas populações receberam influência
de seus vizinhos harappianos do oeste, e aprenderam a cultivar o arroz, o trigo
e a lentilha, além de iniciarem a criação de bovinos, porcos
e cabras. Com o aumento da produção de alimentos, elas começaram
a se aglutinar e a formar povoados, nos quais, com o passar do tempo, se foi
impondo a especialização de tarefas e a estratificação
social. Essas tendências, que levam as marcas da cultura harappiana, já
estavam profundamente enraizadas antes da chegada dos indo-arianos.
Graças a esses novos conhecimentos, a tese da descontinuidade, que andava
a par com as antigas interpretações sobre a idade obscura, cedeu
lugar à hipótese de uma interação contínua
e prolongada entre diversas culturas estabelecidas. À medida que os indo-arianos
franqueavam as gargantas e passagens das montanhas do noroeste e penetravam
no interior do subcontinente indiano, entravam em contato com as populações
harappianas do vale do Indo e do Pendjab. As relações entre esses
dois grupos eram conflituosas, e os pastores nômades não cessavam
de lançar às cidades dos agricultores ataques sucessivos, perpetuados
nos relatos do Rigveda.

Mesmo assim, não se pode afirmar que os indo-arianos pura e simplesmente
subjugaram as populações harappianas, porque a hostilidade não
excluía a troca de ideias. Foi assim, por exemplo, que durante o segundo
milênio a.C. as populações do Swat, vale de um afluente
do Indo situado nas montanhas que se erguem na fronteira do Meganistão,
incineraram seus mortos segundo a forma descrita pelos Vedas, sem entretanto
abandonar de todo seus antigos métodos de sepultamento. Mais ou menos
na mesma época apareceram em Pirak e no Swat estatuetas de cavalos, enquanto
os artesãos começaram a pintar nas cerâmicas de Harappa
novos motivos, talvez atribuíveis a uma influência indo-ariana.
Ao que tudo indica, ocorreu então o que costuma acontecer quando um povo
agressivo e versado na arte da guerra entra em contato com outro, econômica
e tecnologicamente mais avançado: uma fusão progressiva que preserva
o melhor das duas culturas. Em geral, o poderio militar serve para impor a ordem
e remanejar de alto a baixo o aparelho social e político, mas não
toca nas aquisições técnico-econômicas.



Curva no Ganges, nos montes Garhwal, em Uttarakhand

No decorrer do primeiro milênio antes de nossa era, esse processo ao
que parece foi intensificado no vale do Ganges. Embora em termos numéricos
a relação de forças tenha sido extremamente desfavorável
para os recém-chegados indo-arianos, seus carros de guerra e seus modos
belicosos deviam representar ameaça suficiente para convencer as populações
nativas a buscar entendimento com eles. Por outro lado, não é
impossível que a decadência da antiga ordem social e religiosa
da civilização harappiana tenha deixado uma lacuna que veio a
ser preenchida pelos rituais indo-arianos, para grande alívio das populações
indianas.
Em vez de esmagar totalmente os nativos, os indo-europeus certamente preferiram
integrar a elite dos chefes tribais e religiosos da civilização
do Indo à sua própria hierarquia, ou seja, às classes superiores
– sacerdotes, guerreiros, administradores e artesãos – da sociedade védica.
Depois, sendo do interesse dos elementos dominantes da população
autóctone o sucesso e a perenidade da sociedade integrada, eles trataram
de relegar a maioria dos nativos à classe social mais baixa, a dos servos.

Essa foi, em todo o caso, a ocasião de uma notável síntese,
na qual os indo-arianos desempenharam aparentemente papel mais de catalisadores
do que de agentes principais. Talvez eles nem tenham inventado nem importado
a Painted Grey Ware, mas certamente contribuíram para o surgimento do
contexto que facilitou a difusão dessa cerâmica. Quanto ao cavalo,
é indubitável que se deve aos indo-arianos sua introdução
no subcontinente, embora a utilização para fins econômicos
e militares só tenha se generalizado bem mais tarde.

Seja como for, os indo-arianos deixaram uma marca incontestável na
vida religiosa, social e intelectual da Índia. Sua influência foi
tão forte que bastaram alguns séculos de coexistência para
que, das planícies do Pendjab às florestas do Doab, as populações
nativas abandonassem seus próprios idiomas e adotassem o dos recém-chegados,
idioma este precursor do sânscrito.

O maior mérito da fusão dos povos do centro-norte da Índia
é ter realizado, no desenrolar da época védica – à
qual o epíteto de obscura se tornou definitivamente inadequado -, uma
síntese que, a partir do ano 600 a. C., lançou os fundamentos
sobre os quais haveriam de expandir-se as maiores cidades-estados conhecidas
da história do mundo. O antropólogo americano Jonathan Mark Kenoyer
relacionou cinco condições indispensáveis para que esse
gênero de cidades pudesse aparecer e perdurar, e constatou que o subcontinente
indiano da época reunia todas elas. Entre esses elementos indispensáveis
figuram a estratificação da sociedade, de par com a existência
de uma rede de ligações entre especialidades econômicas
e classes sociais, e a disponibilidade de certo número de recursos, aliada
a uma evolução técnica suficiente para produzir excedentes.

Sem sombra de dúvida, a desintegração da agricultura
provocada pelas gigantescas modificações do curso dos rios desempenhou
papel primordial na queda das grandes cidades harappianas durante o segundo
milênio, e a revolução agrícola representada pela
adoção da policultura sawnai, pelas populações sobreviventes,
encorajou a subsequente expansão das cidades harappianas. A onipresença
da Painted Grey Ware testemunha um progresso regular das técnicas e uma
crescente aptidão para produzir e distribuir excedentes. Foi assim que
as próprias populações nativas da Índia criaram
uma parte dos termos da equação que resultaria em um renascimento
do urbanismo.

Se é verdade que anteriormente se atribuiu um papel excessivamente
importante aos indo-arianos na história da Índia antiga, é
também indubitável que sua contribuição foi essencial.
Foi a divisão da sociedade em classes e ocupações bem determinadas
que forneceu à fase seguinte de urbanização seus órgãos
e sua estrutura. Os privilégios da elite não teriam podido existir
sem o trabalho dos menos afortunados. Os chefes espirituais tinham necessidade
de templos, de vestes sacerdotais e de imagens religiosas; os reis, de palácios,
de adereços e de exércitos; os guerreiros, de armas, de armaduras
e de meios de subsistência; os artesãos, de locais de trabalho,
de matérias-primas e de ferramentas. E nenhuma dessas classes era auto-suficiente.

Em uma sociedade tão estratificada, era indispensável transformar
os excedentes agrícolas em alimentos e levá-los do produtor ao
consumidor. À medida que outros recursos, tais como o ferro, as pedras
preciosas e conchas marinhas, passaram a ter importância para os artesãos,
que forneciam armas aos guerreiros, adereços aos ricos e poderosos e
objetos sagrados aos sacerdotes, tomou -se também necessário extraí-los,
processá-los e transportá-los. As rotas entre as fontes de matérias-primas
e seu lugar de processamento e consumo entrecruzavam-se, e nos locais dessas
intercessões de atividade humana o surgimento de cidades se tornou primeiro
uma possibilidade e logo depois uma necessidade.

É o surgimento de um novo tipo de cerâmica, mais refinada – a
Painted Grey Ware, depois a Northern Black Polished Ware – que melhor ilustra
a amplitude dos progressos tecnológicos conquistados ao longo dessa época
de profundas mutações. Mas os imperativos decorrentes da estratificação
social – necessidade de ferramentas e de técnicas para lapidar pedras
preciosas, colorir pérolas, trabalhar o vidro e as conchas e fabricar
todos os emblemas indispensáveis à identificação
da classe – também contribuíram muito para o desenvolvimento da
cultura da idade védica. No fim do período, os conflitos pela
supremacia entre reinos em vias de consolidação estimularam o
progresso da tecnologia militar, seja de obras defensivas, seja de armas ofensivas.
Os ataques e as escaramuças deram lugar a verdadeiras campanhas militares
organizadas com o fim de obter os recursos de que o regime tinha necessidade.
Foi então que uma parte cada vez maior da região centro-norte
da Índia caiu sob o domínio de repúblicas ou de reis.

Os sacrifícios de cavalos, prática ritual que adquiriu importância
cada vez maior durante o período final da idade védica, ilustram
bem a forma como se desenrolou o processo. O ritual exigia que se deixasse um
cavalo andar a esmo durante um ano inteiro acompanhado de um grupo de guerreiros.
Ao final desse tempo, o rei sacrificava o animal e reivindicava a posse de todas
as terras que ele havia percorrido. Ao encerrar-se a era védica, por
volta do ano 600 a. C., o vale do Ganges abrigava dezesseis grandes estados
com suas capitais, que rivalizavam entre si pelo comércio e pela guerra.

As maravilhosas cidades da Índia clássica já estavam
em gestação, bem como as grandes religiões – entre outras,
o budismo e o jainismo – que entrariam em conflito com os rituais e as tradições
de brâmanes hindus. Um grande imperador preparou-se para entrar em cena
para unificar todas as cidades-estados do Ganges. E graças à escrita,
cuja utilização se generalizara para a redação das
proclamações, dos códigos de leis e para o registro dos
acontecimentos, nenhum detalhe dessa efervescência se perdeu. Ora, nada
disso teria se passado sem o formidável entrecruzamento de culturas que
foi obra – e a contribuição durável – da idade védica,
uma época que na verdade não merece de forma alguma o epíteto
de obscura.

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