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Os indianos: 5. Kushans, nômades e a Dinastia Gupta

by Lucas Gomes



Kanishka é o mais famoso dos reis Kushana,
ele é preservado na
tradição budista como
o rei responsável por chamar o Budismo de
Grande Concílio

Cerca de 80 a.C., o reino grego de Bactriana sossobra ante o avanço
crescente de semi-nômades vindos da Ásia central, estes por sua
vez expulsos desta região pelo avanço dos Hunos da Mongólia
interior. Entre os recém-vindos, tribos cíticas, iranizadas e
helenizadas pelos seus suseranos partos, e conhecidas dos indianos pelo nome
de Saka, invadem o Oeste da Índia. Simultaneamente, os Andras, cujo poderio
não cessa de crescer no Decão, exercem uma pressão sobre
os reis de Sunga. Estes vêem-se obrigados a ceder lugar à nova
dinastia dos Canvas. A Índia gangética volta a cair, dentro em
pouco, na divisão política de que os Mauryas a tinham tirado.
Uma nova força, que vai desempenhar papel importante na Índia
do Norte, está prestes a surgir nas regiões do Noroeste: a dos
nômades tocarianos vindos de Cotão (Ásia central) e apresentando
afinidades com o Irão oriental. Designados pelo nome de Kushana, erguem
um vasto império que se estende do Oxo à planície do Ganges,
reunindo assim sob a sua autoridade as antigas possessões dos indo-gregos
e dos Sungas. O seu terceiro soberano, Kanishka representa o apogeu desta dinastia;
reina em Matura, no Norte da India, como em Kapixi (no Kabul). Se bem que os
Kushana estejam, quando da ascensão de Kanishka, instalados no Norte
da India há um século, este monarca fez-se representar vestido
com a túnica iraniana, na cabeça um barrete cita, e com pesadas
botas de cavaleiro nômade. Porém, deu provas de magno ecletismo:
tendo-se convertido ao budismo, foi o primeiro a fazer representar nas moedas
a efígie de Buda, como também as das divindades iranianas; protege
igualmente a religião jaina e o bramanismo; toma ao mesmo tempo o título
imperial indiano de marajá “grande rei”, o título parto
“rei dos reis” (rajatirajá) e o título chinês
de ‘filho do céu” (devaputra). Colocado no cruzamento das rotas
comerciais mais ativas do tempo, reunindo sob uma soberania única regiões
desenvolvidas havia séculos pelo helenismo e pela influência iraniana
ao mesmo tempo que por tradições indianas, reinando sobre uma
grande variedade de populações habituadas ao cosmopolitismo, Kanishka
deve ter possuído uma forte personalidade cujas tradições
indianas, tibetanas, chinesas e mongóis recordam.

Foi efetivamente uma época inteiramente dominada pelas trocas internacionais,
quer de ordem comercial, quer intelectual. No domínio comercial, a atividade
de Roma é um fator preponderante, e a da China não o é
menos: as estradas da Seda, que atravessam o continente euroasiático
de lado a lado, atraem o lento caminhar das caravanas, e fazem intensificar-se
o tráfico dos objetos de luxo e de matérias-primas, nos seus
percursos; por outro lado, a navegação de longo curso torna-se
regular graças à utilização do regime das monções
Emporia romanos são mesmo estabelecidos em diversos pontos das costas
indianas, particularmente não longe do atual Pondichéri. A Índia
beneficia destas várias condições: exporta ou importa,
quer por mar quer pelas vias terrestres, e enriquece-se consideravelmente; a
tal ponto, que uma lei de Vespasiano (69-79) interdita a exportação
do ouro para a Índia, para acabar com o grave prejuízo que isso
causava ao tesouro do império. Finalmente, a Índia estabeleceu
por sua vez feitorias nos países dos mares do Sul, para onde estenderá
um pouco mais tarde os limites extremos da sua expansão para o Sudeste
asiático (Bornéu, e as Celebes).

Nesta atmosfera de opulência e de viagens incessantes, se desenvolveu
a evolução religiosa e literária da Índia. Se a
parte setentrional do país beneficia da unificação política
que a dinastia dos Kushana nela estabeleceu, o Sul não menos se desenvolveu
e vê organizarem-se poderosos reinos, os de Pândia (região
de Madura), dos Satacami (na região Andra), dos Kerala (no Travancore),
dos Cola, na costa do Coromandel, com Tanjore por capital e daí em diante
a Índia toda que se inscreve nos louros intelectuais desta época
brilhante.

Daqui resulta um desabrochar literário e artístico: o Ramaiana
poderia ter sido completado por esta época, assim como a compilação
do Mabarata; e o Bagava-Gita poderá ter sido redigido na mesma altura;
além disso, Acvagosha – que a tradição budista pretende
ministro de Kanishka – escreve as suas obras dramáticas ou edificantes,
das quais se encontraram fragmentos antigos nas areias da Ásia central.
Enfim, o sânscrito, velha língua dos Vedas, tomou-se uma língua
viva, e vulgariza-se a ponto de servir para os requisitos oficiais, literários,
profanos e científicos, utilizada tanto pelos budistas como pelos adeptos
do bramanismo.

O budismo prossegue na sua transformação, e expande-se cada
vez para mais longe; monges indianos sucedem-se na China e no Turquestão,
para realizar a obra empreendida desde o século I: a tradução
dos cânones e dos textos principais do seu dogma e da exegese dele. A
doutrina evoluíra bastante, e toma uma feição mais mística,
oferecendo à adoração dos fiéis entes caridosos,
os bodisatva, alguns dos quais têm papel messiânico. Produz-se um
cisma entre a doutrina antiga e a nova, provocada, por certo, pelas influências
helenísticas, semitas, iranianas, e mesmo cristãs, e depois maniqueístas
que se desenvolvem no Noroeste.

A cisão, inteiramente pacífica, confirma-se no século
II: o Teravada fica fiel às primeiras regras, o Maiana ou “Grande
Veículo” toma a atitude de um dogmatismo negativista e apoia-se
numa dialética fechada, de que Nagarjuna (cerca de 150-200), oriundo
do Decão central, se torna o ardente prosélito. Ao mesmo tempo,
um sincretismo se desenha entre o budismo e o bramanismo. Nestas duas religiões,
as seitas multiplicam-se, e o misticismo aumenta: a teoria bramânica da
“adoração confiante” (bacti) toma forma, enquanto –
por reação contra a confusão devida à efervescência
filosófica do momento – se criam um a um os “sistemas” (darçana)
ortodoxos do bramanismo.



Yakshi segurando um ramo, baixo-relevo em grade
pilar da stupa budista em Sanghol Punjab, na Índia.
Matura escola de escultura

Finalmente, uma eclosão artística atinge todas as regiões
da Índia: no Noroeste, são os estilos greco-búdico e irano-búdico,
herdeiros do helenismo; no Norte, a escola de Matura, algo iranizada pelos Kushana
e totalmente indiana, na linha de Barut e Sanchi; a Sudeste e no Marastra, os
estilos andra, refinados e suntuosos. A arte budista está por toda a
parte em pleno desenvolvimento, conservando o seu caráter narrativo,
tão precioso para o estudo desta época. A arte brâmane,
até então quase ausente da produção indiana, fez
a sua aparição (sobretudo em Matura) assim como a arte jaina.
A arte profana, ainda mal conhecida, faz-se representar pelos admiráveis
espécimes de escultura em marfim encontrados no Afeganistão por
Joseph e Ria Hackin, em 1937-1940, no local da antiga Kapici, capital de Verão
dos Kushana.

A esta brilhante época segue-se um desmembramento político,
e o desenvolvimento intelectual parece sofrer um eclipse. Uma nova hegemonia,
a dos Guptas, desenha-se cerca de 320 (?): como no tempo dos Mauryas, o movimento
tem origem em Magada, terra santa do budismo, na velha capital imperial de Pataliputra.
Pouco se sabe do primeiro soberano da nova dinastia, Chandragupta, salvo que
ele deve ter estendido bastante as suas conquistas, para tomar o título
de imperador (marajadiraja). Este reinado era o prelúdio de uma linhagem
valorosa que iria originar uma autêntica idade de ouro da civilização
indiana.



Samudragupta, o Grande, governador do Império Gupta, sucessor
de Chandragupta
I , é considerado um dos maiores gênios
militares na história
indiana

Filho do precedente, Samudragupta (335-375?) aumenta o seu território
e pratica com inteligência o método indiano e feudal que consiste
em ligar a si como vassalos os vencidos, restabelecendo-os nos respectivos tronos.
Deste modo anexa trinta e cinco estados, e o seu poderio estende-se na maior
parte da Índia do Norte e do Centro, reconstituindo quase inteiramente
o império de Açoka, cuja recordação continua viva;
foi com plena consciência que os Guptas se esforçaram por imitá-lo:
não é por um acaso, sem dúvida, que o primeiro imperador
usa o mesmo nome do avô de Açoka, fundador da dinastia dos Maurias.
E é com desígnio bem claro que Samudragupta utiliza uma das colunas
erigidas por Açoka, perto de Alaabade, para nela mandar gravar o seu
próprio panegírico e a enumeração das suas conquistas.
De resto, apesar dos séculos decorridos, os testemunhos desse «grande
século» continuam visíveis, sobretudo o palácio de
Açoka, em Pataliputra, que só será destruído em
411. Se é sem dúvida natural para monarcas ambiciosos o vangloriarem-se
deste modo de reinar no reino mais prestigioso da Índia, não menos
isto sublinha o desejo de uma continuidade bem estabelecida na linha tradicional
da civilização indiana; e não será sintomático
ver, mil e seiscentos anos mais tarde, a moderna União Indiana escolher
como armas nacionais o célebre «pilar de Açoka» decorado
com leões segurando a Roda da Lei, e encontrado em Sarnate?

O império gupta cresceu ainda sob Chandragupta II (cerca de 375-414),
chamado “Sol do Heroísmo” (Vicramaditia), para o Oeste (Malva,
Gujarate, Katiavar) e o Sul (para lá de Narbuda); teria, além
disso, anexado a Bactriana a Noroeste, e Bengala a Leste. O seu reinado marca,
sem dúvida, a época mais brilhante da literatura sânscrita
clássica, representada por Kalidasa, cujo teatro está atualmente
traduzido em todo o mundo. A arte plástica atinge então um extremo
refinamento e uma notável unidade de estilo; um dos conjuntos mais preciosos
desta época é constituído pelas pinturas murais com que
os reis Vakatakas, vassalos de Chandragupta II (e parentes dele pelo casamento)
dotaram os mosteiros budistas de Ajanta, no Maraxtra. (século V-VI).
A tolerância religiosa é levada ao máximo, e permite a floração
de todas as seitas. O budismo está maduro para um desenvolvimento filosófico
que os dois mestres Asanga e Vasubandu representam (século VI ou V).
O comércio atinge o seu máximo de intensidade nos mares do Sul,
abrindo caminho a uma expansão ultramarina da cultura indiana, a tal
ponto activa, que fará eclodir, nos séculos seguintes, as mais
belas civilizações do solo indochinês e javanês.

No reinado de Kumaragupta I (cerca de 414-455), filho e sucessor de Chandragupta
II, a dinastia atingiu o seu apogeu. Infelizmente, uma nova ameaça surgira
nas fronteiras Noroeste do império: a dos Hunos. O filho de Kumaragupta,
Skandagupta (455-467?) conseguiu detê-los. Parece que, desde então,
certa confusão reinou na família imperial, levando talvez a novo
desmembramento territorial. Quando as hordas bárbaras, depois de atingirem
uma força armada formidável, desembestaram pelo vale do Ganges,
mais ou menos em 485, os Guptas não conseguiram sustar-lhes o avanço
devastador, apesar dos actos pessoais de corajoso sacrifício.

Durante cinquenta anos, sucederam-se cenas incríveis; os mosteiros
budistas, as universidades que eram a glória da civilização
indiana foram arrasados, os religiosos perseguidos; as deportações
e os morticínios foram aos milhares. O imperador Budagupta (475-494?)
foi expulso do Malva, e os terríveis invasores, primeiramente chefiados
por Toramana, depois pelo filho, o cruel Miirakula (cerca de 500-540) chegaram
até Magada, acumulando ruínas e destroços na sua passagem.
A dinastia dos Guptas contudo sobreviveu, mas tão diminuída que
os seus príncipes não mais passaram de chefes de Estado locais.
Enquanto os Guptas sofriam deste modo a perseguição dos bárbaros
hunos, os reinos do Decão fortaleciam-se sem detença; especialmente
os Palavas, na região tamul (Kanchipurão) – cujo rei Visnugopa
é contemporâneo de Samudragupta -, e os Chaluquias ocidentais (Badami)
que perpetuam no Maraxtra o impulso cultural e artístico dado pelos Vakatakas,
especialmente em Ajanta. O enfraquecimento dos Gupta permitiu por outro lado
aos estados do Norte e do centro consolidar o seu próprio poderio: entre
outros, o de Valabi no Oeste (Katiavar, e região de Sura e de Broach)
e o de Tanesvar, situado na extremidade ocidental do Dabe, de que Kanauje se
tornou a capital, sempre ardentemente cobiçada.

Coube a um príncipe de Tanesvar, Harcha (605-647) reagrupar a Índia
do Norte e do centro sob um domínio único, pela última
vez, antes da época medieval. A sua personalidade é mais bem conhecida
do que a dos outros soberanos indianos, graças às narrativas que
o peregrino chinês Hiuan-tsang nos deixou. Está de resto completamente
na linha tradicional da Índia: eclético e tolerante no plano religioso,
protetor da cultura espiritual, e possivelmente o autor de várias peças
de teatro e de dois hinos budistas de grande perfeição. Bana,
o último, no tempo, dos romancistas sâncritos, era poeta da corte
dele, seu favorito e seu bardo. No campo administrativo, Harcha perpetua a tradição
de Açoka, assegurando desse modo a continuidade da civilização
indiana sem interrupção, desde os princípios da sua história.
Por efémero que tenha sido – uns quarenta anos – este último ressurgimento
político e cultural (antes do afundamento que lhe sucederá) não
menos garantiu a sobrevivência da brilhante época dos Guptas, não
só através da Índia inteira, como ainda nas regiões
ultramarinas, onde o estilo gupta teve prolongadas ressonâncias. Harcha
manteve, com sucesso, as relações diplomáticas dos seus
predecessores, com a China e a Ásia central; monges estrangeiros vieram
à Índia visitar os lugares santos do budismo, e instruir-se ou
ensinar nas universidades reconstruídas após a passagem dos Hunos.
O comércio retornou à sua atividade. Em resumo, o engrandecimento
da Índia imperial estava restaurado.

Sê-lo-ia por pouco tempo: logo após a morte de Harcha, o seu
império foi desmantelado desta vez para sempre. Reinou a anarquia. Voltara-se
uma página: eis porque o nosso exame da vida cotidiana da Índia
antiga se detém por cerca de 650. Não que a civilização
indiana tenha sido interrompida com o golpe; mas porque a ausência de
um poder central não permite já falar de uma única Índia:
a história passa aos planos locais, e poderá dizer-se daí
em diante, “as Índias”.
Todavia, a sociedade conserva o caráter que lhe era peculiar havia mais
de um milénio: se examinarmos documentos respeitantes à época
Sunga, à Gupta, ou à Idade Média, encontra-se a mesma base
feudal, a mesma divisão por castas e por corporações, os
mesmos rituais domésticos. As diferenças dizem respeito, sobretudo,
às modas de vestuário, alguns costumes populares, e às
modalidades religiosas e legislativas. O resto permaneceu na linha tradicional:
a pessoa do rei, a pompa que o rodiava, os seus deveres ou os seus prazeres,
a descrição da capital, seja ela qual for, a mentalidade dos indivíduos,
parecem idênticos aos do tempo antigo. E como haveria de ser de outro
modo, se as famílias ortodoxas do bramanismo vivem no século XX,
apoiadas em princípios que foram os dos antepassados desde tempos imemoriais?
Longe de deverem ser considerados como arcaicos, estes princípios mostraram-se
a maior garantia da perenidade da civilização indiana, apesar
das vicissitudes a que, em seguida, foi submetida.

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