Home EstudosLivros Concerto campestre, de Luís Antônio de Assis Brasil

Concerto campestre, de Luís Antônio de Assis Brasil

by Lucas Gomes

Concerto Campestre

, de Luís Antonio de Assis Brasil, é, numa definição
redutora, uma alegoria sobre um tempo (meados do século passado) e um lugar (as
fronteiras vazias dos pampas) do Rio Grande do Sul e que o autor apresenta em
plena decadência moral, social e política.

Há os nascidos ali e os intrusos, e todos giram à volta do Major Antônio
Eleutério de Fontes que, cansado de mandar e ser obedecido, delega na esposa,
D. Brígida, a sua prepotência para se dedicar ao mecenato da música. Faz isso
com tanta generosidade que não se conhece nas aldeias e cidades mais próximas
quem possua orquestra própria (a Lira Santa Cecília) de melhor qualidade. Com
dois filhos boçais e uma filha bonita, Clara Vitória, o Major transfere para a
sua orquestra grande parte do seu afeto e do seu dinheiro, para desespero silencioso
de D. Brígida, que não se resigna a que se gaste tanto dinheiro com a música,
mas que não pode, por dever social, hostilizar publicamente o marido. Assim, tudo
parece correr sobre as rodas: há dinheiro, a orquestra já toca afinada e até há
um fazendeiro rico e de boa figura para casar com Clara Vitória; e há um padre
que tudo abençoa: a música e a felicidade, o amor, o bem-viver, a boa comida.
Há um senão: um maestro femeeiro arranjado pelo padre, que o Major instalou no
quarto de hóspedes, ao lado do quarto da filha. O resultado desta vizinhança foi
catastrófico. Curiosamente, é o Major quem reage de forma mais violenta: expulsa
Clara Vitória grávida, dá cabo da Lira Santa Cecília e ia dando cabo do fazendeiro
que julgou ser o responsável pela afronta, para sorte do Maestro, a quem só restou
fugir.

É uma narrativa realista tradicional, do ponto de vista da linguagem e da
estrutura da obra.

O que logo ressalta em Concerto Campestre é o conhecimento da história,
na sua multiplicidade de envolvências. E é esse conhecimento que provoca no leitor
a certeza que está revivendo a verdade de um tempo e de um lugar que, tratada
sob a forma de ficção, toca as fronteiras mágicas do fantástico. Daí, o encantamento
deste livro, apoiado por uma escrita de grande rigor formal, que respira, alegoricamente,
ao ritmo musical, fraseado por andamentos que alternam, por oposição, entre o
suave e o forte, entre o trágico e o cômico, entre o sossego lírico e a inquietação
dos medos.

Com esse rigor narrativo, Assis Brasil define as personagens do seu romance, através
de traços fortes, porventura caricaturais, tornando-as paradigmáticas das diversas
classes sociais que povoam os pampas do Rio Grande do Sul de então e que o autor
descreve de forma radiográfica. E assim, ele imbrica as personagens nas sucessivas
situações a que estão sujeitas, sem nunca perder a sua colocação no tempo ou no
lugar e não deixando que estes se sobreponham ao desenvolvimento dos conflitos.
Para tanto utilizou “pinceladas” de envolvência discretas, mas suficientemente
definidoras de um surpreendente sentido plástico.

Flui mansa a narrativa de Concerto campestre e nela se inserem informações,
indicando que muitas outras haviam sido, até então, subtraídas. Anunciam, ao
fim de capítulo, uma situação de crise que irá determinar a continuação do
relato sem que, no entanto, ocorram mudanças no seu ritmo.

O primeiro capítulo narra a chegada do Maestro na fazenda e de seus progressos
frente à orquestra; brevemente, de suas relações com a família do estancieiro.
Nas últimas linhas, informa, e quase nada o fizera prever, da paixão de Clara
Vitória por ele.

O segundo capítulo retoma o dia em que o Maestro chegou para
narrar dos primeiros interesses de Clara Vitória: espiara pela fresta da cortina
enquanto ele, sentado, esperava que o fazendeiro lesse a carta que trazia. Os repetidos
encontros e as palavras trocadas e o perceber-lhe os movimentos
no quarto ao lado vão arquitetando os sentimentos.

Nas últimas linhas do segundo capítulo, a inesperada revelação: o esgueirar-se
de Clara Vitória fora de casa para entrar no quarto do Maestro e lá ficar até de
madrugada. Então, novamente, a volta da narrativa para um momento anterior e,
assim completar o que não fora dito e, outra vez, tratar dos sucessos da
orquestra para terminar o terceiro capítulo com uma nova revelação.

São três momentos da narrativa em que, primeiramente é anunciado um fato inesperado,
abruptamente como um relâmpago, levando a um retorno no tempo e a um relato linear
que o irá completar, mostrando o quanto Concerto campestre é um romance de exímia
construção. Também feita de alguma graça, de alguma crítica, do sábio dizer dessa
música que se eleva nos campos, da sedução do personagem feminino, buscando seu
destino para, então, aceitar-lhe os desígnios.

O que torna Concerto campestre um momento de extraordinária vitalidade, no
conjunto notável da ficção de Luiz Antonio de Assis Brasil, é a transfiguração
de duas vertentes, ambas presentes desde seus primeiros textos.

A primeira é a vertente crítica, que vem do desejo de revisar a História, com
notado influxo social.

Em Concerto campestre, curiosamente, a vertente crítica não se mostra
apenas como formulação discursiva, mas como forma de conceber o mundo.
Ao invés de seguir apenas a racionalidade mimética da narrativa tradicional,
Assis Brasil acolhe, na lógica do texto, mundos simultâneos que alteram as
passagens entre o universo mimético e real e a insurgência do sonho, do
alegórico e do espectral. A oposição real-imaginário, como captação de matéria
ficcional determina, por sua vez, a articulação da novela como forma acabada e
redonda, semelhante ao poema, onde cada elemento ocupa um determinado espaço,
não podendo ser alterado ou substituído.

Se pela vertente irônica Concerto campestre pune a sociedade e os costumes
com a ironia, o pastiche, a paródia, ao mesmo tempo que relata o debater-se
inútil das vítimas, fantoches de um mundo decaído, pela segunda vertente, a
obra instaura o grotesco como manifestação formal de uma ordem de mundo
essencialmente barroca. As antíteses poderosas deslocam-se da forma tradicional
e compõem a ordenação do universo novelesco, como se pode ler fartamente através
das articulações das personagens e dos demais elementos narrativos. A seleção
de episódios, por sua vez, manifestam as oposições desses mundos em que a chuva
de sangue é o castigo bíblico: a ordem fora rompida. A fantasmagoria da videira,
o caráter sepulcral da tapera onde Clara Vitória será confinada pelo pai, deixam
claro tratar-se de texto que trabalha a alegoria barroca.

Mais uma vez, chama a atenção o modo hábil como Assis Brasil apresenta suas personagens,
sempre justificadas pela ação que realizam. Não obstante, o narrador experiente
dos romances anteriores surpreende o crítico ao deformá-las propositadamente,
acentuando-lhes os traços definidores. Essa deformação caricaturesca, própria
da sátira, transforma os entes humanos em marionetes rígidas, a moverem-se mecanicamente.

Note-se, porém, que na Estância de Fontes, o jogo das distorções grotescas não
é gratuito. Pode-se entendê-lo como montagem parodística e, portanto, como paródia
de uma literatura edificante que se mostra, no caso, pervertida. E essa é a sua
qualidade. O cômico deformante impõe mais a reflexão do que o riso. E se, no início
da narrativa, julga-se perceber no aguçamento caricatural das personagens o zelo
de um crítico da sociedade, como ensina Kayser, os acontecimentos irão mostrar
que o grotesco, como categoria da estética barroca, reside propriamente na mistura
de coisas incompatíveis: de um lado, os dramas mais cruéis da vida; de outro,
o riso contrafeito das máscaras.

Em Concerto campestre o autor ultrapassa a crítica à sociedade: farsa
e tragédia, máscara e face não se deixam separar. Não obstante, a máscara deixa
a face – e isso ocorre quando Clara Vitória e o Maestro encolhem-se diante das
circunstâncias, reconhecendo seus limites e sua pequenez. Resistindo ao desespero,
separam-se, embora mantendo um amor sem projetos, desejo epifânico de que tudo
terminasse bem. A experiência dolorosa do Maestro, no decorrer dos concertos na
Estância, fizera-o ver o fosso que separava os dois mundos, o dos pardos e dos
pobres e o mundo dos brancos e ricos, cujos códigos ele jamais poderia atingir.
Como na commedia del’arte, a fuga dos amantes para além da sociedade, dos amigos,
da lei, de tudo converte-se em fuga do mundo. Os pressentimentos, as súbitas
consciências da insânia cometida, a relação conflituosa entre o Vigário, Deus
e os escravos, que mais sofriam do que pecavam, confirmam a alegoria dos mundos
antagônicos.

Entretanto, a confusão entre aparência e realidade decorre também da própria
concepção dos sentidos e de seus deslocamentos: se ouvir, isso não é com a
orelha, é com a alma, e se ouve-se também com os olhos, como dizia o músico
Rossini, certamente um alter-ego do escritor, Concerto campestre tem de ser
lido como um poema. A frase melódica, a harmonia formal recobrem, paradoxalmente,
o jogo de distorções grotescas nessa comédia moralizante contra a natureza cruel
do homem.

Resumo

A história acontece numa fazenda do interior gaúcho, em meados do século XIX.
O fazendeiro e charqueador é o Major Antônio Eleutério de Fontes, casado,
dois filhos, uma filha, Clara Vitória.

O fazendeiro mantém em sua propriedade rural uma pequena orquestra, vista por
alguns de seus vizinhos como uma extravagância absurda, um desperdício de
dinheiro.

O livro explica que o Major acumulou recursos contrabandeando gado e
vendendo aos dois lados da Guerra dos Farrapos.

Passando por sua fazenda, dois índios missioneiros, músicos, encantaram o Major
com seus instrumentos. Interessado, a partir daí, cada vez mais, por música, o
Major acaba montando a orquestra, tendo contratado como regente um mineiro conhecido
por ‘Maestro’. A escolha deste sujeito foi feita a partir da indicação do vigário
de São Vicente, povoado próximo à fazenda: o vigário queria livrar o Maestro de
complicações amorosas. A orquestra recebe o nome de Lira Santa Cecília e causa
indignação em D. Brígida, esposa do Major.

Todavia, D. Brígida tem como grande preocupação encaminhar o casamento da
filha Clara Vitória.

Na propriedade de Antônio Eleutério há um lugar com poderes místicos, o
‘boqueirão’: trata-se de uma tapera, local ermo e de difícil acesso, que,
no entanto, dá excelentes uvas, onde ninguém costuma pisar.

Com o tempo, a Lira Santa Cecília vai ficando famosa: os concertos na
fazenda são concorridos, a orquestra vai tocar em Rio Pardo. O Major
compra novos uniformes e aumenta o salário dos músicos. Até aqui o livro
é quase uma crônica, relatando amenidades e curiosidades.

Eis que aparece o nó da trama: Clara Vitória, a única filha, já
encaminhada para o casamento com o Silvestre Pimentel, sobrinho e
possível herdeiro de um fazendeiro vizinho que está doente, apaixona-se
pelo Maestro. Em retrospectiva, a obra nos mostra Clara Vitória, enquanto
posava, mesmo sem vontade, de futura esposa de Silvestre Pimentel, fazia
visitas noturnas ao alojamento do Maestro, passava lá a noite, voltando
para seu quarto pouco antes do amanhecer.

O segundo elemento em importância da orquestra, um músico velho e
experiente, apelidado Rossini, sabe do caso e, amante de óperas, prevê um
final operístico para a história.

A tensão da obra aumenta quando Clara se descobre grávida. Vai
escondendo de todos enquanto é possível; ao visitar a parteira, vê que
não é mais possível interromper a gravidez. Numa audição da orquestra,
Clara passa mal. O vigário desconfia, pressiona a menina, ela confessa.
O vigário já desconfiava de algo, mas não imaginava que a história
envolvesse o Maestro. Chama Silvestre para antecipar o casamento. O
noivo topa. Vai à fazenda com a mesma proposta, que é rechaçada de
imediato pelo Major. Até que D. Brígida descobre: ‘Você está grávida!’.

Segue-se uma consternação na família. D. Brígida dá uma surra em Clara
que é protegida pelas criadas. O Major sai para fazer ‘o que deve ser
feito’: justiça. Mas, todos eles – o Major, D. Brígida, os familiares –
pensam que o pai da futura criança é o noivo Silvestre Pimentel. O Major
vai à casa de Silvestre para matá-lo. Silvestre tenta dialogar, mas o
major atira, atingindo o ex-noivo. Volta para casa e avisa D. Brígida que
matou o sujeito. Mais tarde, descobre-se que Silvestre apenas ficara
ferido. Antônio Eleutério toma as decisões: expulsa Clara Vitória de casa,
obrigando-a a viver sozinha no boqueirão; proíbe qualquer pessoa, com
exceção do capataz, de aproximar-se do local, mantendo inclusive vigilância
armada; não mais permite a citação do nome de Clara na residência.

Em meio a este desenredo familiar, tudo em volta se transtornou. D.Brígida
não sabe o que faz da vida; o Major passa os dias solitário, quieto, tendo
inclusive desativado a orquestra Lira Santa Cecília. O Maestro, na
impossibilidade de ver Clara, abandona a fazenda e vai para Porto Alegre.
Seu amigo Rossini ainda faz previsões: ‘Ainda não ocorreu o último ato desta
ópera. E eu não quero perder’.

O Maestro e Rossini tentam sobreviver em Porto Alegre. Numa noite,
abandonando uma ópera no meio do espetáculo, o Maestro pergunta a Rossini,
que conhecia o final da história: ‘Como termina?’. ‘Em casamento’, responde
o amigo. Enquanto o Maestro angustiava-se em Porto Alegre, sofrendo pela
separação de Clara, o Major Antônio Eleutério ia definhando, já perdendo
a razão. E Clara vivia solitária, exilada na tapera abandonada, vivendo
consigo mesma, com a natureza que a cercava e com imagens do passado,
confusas em sua mente. Ajudada somente pela criada, Clara tem seu bebê:
é uma menina.

Num momento mágico, o Maestro redescobre a partitura de uma música que
compusera para Clara. Toca a peça na missa em Porto Alegre, horrorizando
o Bispo, Despedido, retorna com Rossini e os outros músicos à estância do
Major. A ressurreição da Lira Santa Cecília reanima o Major. Mas Antônio
Eleutério já está definitivamente perturbado. Ordena um concerto no qual
ele é o único assistente. Briga com a mulher, que resolve abandoná-lo. Em
meio a uma chuva, na presença do vigário, vendo seu mundo desmoronado,
suicida-se. O maestro dirige-se ao ‘boqueirão’. Rossini aplaude, como se
estivesse na platéia de uma ópera. Final feliz:

Ela foi até a margem, tirou a roupa e lavou-se. Estava assim, meio
submersa, refrescando-se na delícia da tarde, quando sentiu que alguém
vinha em sua direção, atravessando as águas. E logo soube quem era, sempre
saberia dali por diante, pelos anos afora: não precisou cobrir-se, nem
correr de vergonha, apenas abriu os braços e entregou-se ao primeiro
beijo de todos os beijos de sua longa vida.

Posts Relacionados