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Contos de aprendiz, de Carlos Drummond de Andrade

by Lucas Gomes

Contos de aprendiz

foi publicado em 1951. Foi a estréia de Carlos Drummond
de Andrade como contista. Nessa época já havia publicado seus livros mais
importantes – Alguma Poesia e Sentimento do Mundo – que o consagraram
como um dos maiores poetas brasileiros.

A obra reúne 15 contos da maior ternura, incluindo aquele que é um exemplo
do limite do real com o fantástico: “Flor, telefone, moça”. Drummond conta as
histórias que acontecem ou podem acontecer, na medida em que o acaso ou outro
poder as torna possíveis, com o auxílio da imaginação alerta. Drummond gosta de
relatar aquilo que parece o mínimo porém está cheio de significado na memória
de cada um, como a surpresa e a decepção do primeiro sorvete, ou uma briga de
irmãos que transforma a penitência infantil em pecado. Ou senão, a simples troca
de palavras entre um homem e uma mulher, no coletivo, em que o olhar perturbado
entra com sua carga de sensualidade. E ainda o devaneio da moça que prepara as
figuras do presépio, na véspera de Natal, com o pensamento não no que fazia, mas
no namorado. Drummond escreve uma prosa limpa, evidentemente com prazer – o prazer
de contar sem intenção de brilhar.

O livro remexe em lembranças da infância do poeta, passando muitas vezes a falsa
impressão de um livro de memórias. As histórias reunidas em Contos de aprendiz
exercem uma relação franca como mundo, mexendo com os encantos da memória para
desencantá-los e permitir que eles se mostrem como o que de fato são: mitos.

A poesia de Drummond é algo que extrapola o gênero poético, podendo se revelar
em qualquer parte, mesmo em contos delicados e de aparência despretensiosa, mas
fortes, como os de Contos de aprendiz.

A trama dos contos oscila entre a descoberta da cidade interiorana, seus códigos de comportamento,
angústias e alegrias, e momentos inusitados na vida atropelada da então capital do país. A metrópole
enlaça e abraça os seus habitantes, para mais pungente tornar a solidão humana. Sobressai-se nestes
contos a presença de uma voz amiga. Como diz o próprio contista, “é doce ouvir amigos, ainda quando não
falam, porque amigo tem o dom de se fazer compreender até sem sinais. Até sem olhos”.

Em Contos de aprendiz, ao lado da contida, mas intensa expressão de afeto
e rejeição ao absurdo do mundo, perspassa um humor irônico em relação à diferença
entre o que os homens mostram ou parecem ser e o que são, uma das tônicas da visão
deste poeta que se definiu como “um gauche na vida”. Livro que insere o misticismo
e o mito da poesia, mas que remete para uma trama sempre curta, onde poucos personagens
acabam, num tempo curto, chegando ao fim de suas problemáticas ou deixando-as
à média rés, como, aliás, acontece freqüentemente.

No cronista, o espírito ávido de denúncias se ocupa sempre do povo e de seus problemas,
dando ao leitor de hoje uma visão sincrônica de tudo quanto ele, na pele de seus
concidadãos, vivenciou e sofreu. A obra drummondiana se mantém atualizada em nossos
dias; dela se depreende a visão crítica de um mundo cujas conseqüências repercutem
ainda em nossas existências.

Como já vimos, muitos dos contos se realizam sobre as recordações dos tempos infantis, estando assim
impregnados de suave ondulação emocional, colocando o leitor tão próximo de outra realidade, que ele fica
pensando que, se houve por ali algum cronista, ele acabou sufocado pelo peso da narrativa ou, como quer o
poeta, “pelo mau cheiro da memória”. Há também contos de maior fôlego, como o já citado “Flor, telefone,
moça” e “O gerente”, que participam de um superior tratamento da matéria ficcional. Neles estamos diante
de exemplos de perfeição no gênero. Drummond conseguiu imprimir sobre estruturas tradicionais a graça, a
diafaneidade, a poesia e o mistério dos contos modernos, criando uma atmosfera de penumbra em que a
linguagem mais sugere que descreve, e em que o leitor se vê obrigado a participar da obra para tentar
descobrir as suas mais íntimas intenções.

Quanto à sua concepção de conto, ela aparece quase sempre indiretamente: tem de ser depreendida e
compreendida pelo leitor. Em Contos de aprendiz há uma pequena nota (que não aparece na sexta
edição da Aguilar) em que se diz que a coisa que mais o fascinava (Drummond) nas histórias ouvidas quando
criança, não era o enredo, o desfecho, a moralidade; e sim um aspecto particular da narrativa, a resposta
de um personagem, o mistério de um incidente, a cor de um chapéu…

Contos escolhidos:

1. PRESÉPIO

Dasdores (assim se chamavam as moças daquele tempo) sentia-se dividida entre a Missa do Galo e o
presépio. Se fosse à igreja, o presépio não ficaria armado antes de meia-noite e, se se dedicasse ao
segundo, não veria o namorado.

É difícil ver namorado na rua, pois moça não deve sair de casa, salvo para rezar ou visitar parentes.
Festas são raras. O cinema ainda não foi inventado, ou, se o foi, não chegou a esta nossa cidade, que é
antes uma fazenda crescida. Cabras passeiam nas ruas, um cincerro tilinta: é a tropa. E viúvas espiam de
janelas, que se diriam jaulas.

Dasdores e suas numerosas obrigações: cuidar dos irmãos, velar pelos doces de calda, pelas conservas,
manejar agulha e bilro, escrever as cartas de todos. Os pais exigem-lhe o máximo, não porque a casa seja
pobre, mas porque o primeiro mandamento da educação feminina é: trabalharás dia e noite. Se não
trabalhar sempre, se não ocupar todos os minutos, quem sabe de que será capaz a mulher? Quem pode vigiar
sonhos de moça? Eles são confusos e perigosos. Portanto, é impedir que se formem. A total ocupação varre
o espírito. Dasdores nunca tem tempo para nada. Seu nome, alegre à força de repetido, ressoa pela casa
toda. “Dasdores, as dálias já foram regadas hoje?” “Você viu, Dasdores, quem deixou o diabo desse gato
furtar a carne?” “Ah, Dasdores, meu bem, prega esse botão para sua mãezinha”. Dasdores multiplica-se,
corre, delibera e providencia mil coisas. Mas é um engano supor que se deixou aprisionar por obrigações
enfadonhas. Em seu coração ela voa para o sobrado da outra rua, em que, fumando ou alisando o cabelo com
brilhantina, está Abelardo.

Das mil maneiras de amar, ó pais, a secreta é a mais ardilosa, e eis a que ocorre na espécie. Dasdores
sente-se livre em meio às tarefas, e até mesmo extrai delas algum prazer. (Dir-se-ia que as mulheres
foram feitas para o trabalho… Alguma coisa mais do que resignação sustenta as donas-de-casa.) Dasdores
sabe combinar o movimento dos braços com a atividade interior — é uma conspiradora — e sempre acha folga
para pensar em Abelardo. Esta véspera de Natal, porém, veio encontrá-la completamente desprevenida. O
presépio está por armar, a noite caminha, lenta como costuma fazê-lo no interior, mas Dasdores é íntima
do relógio grande da sala de jantar, que não perdoa, e mesmo no mais calmo povoado o tempo dá um salto
repentino, desafia o incauto: “Agarra-me!” Sucede que ninguém mais, salvo esta moça, pode dispor o
presépio, arte comunicada por uma tia já morta. E só Dasdores conhece o lugar de cada peça, determinado
há quase dois mil anos, porque cada bicho, cada musgo tem seu papel no nascimento do Menino, e ai do
presépio que cede a novidades.

As caixas estão depositadas no chão ou sobre a mesa, e desembrulhá-las é a primeira satisfação entre as
que estão infusas na prática ritual da armação do presépio. Todos os irmãos querem colaborar, mas antes
atrapalham, e Dasdores prefere ver-se morta a ceder-lhes a responsabilidade plena da direção. Jamais
lhes será dado tocar, por exemplo, no Menino Jesus, na Virgem e em São José. Nos pastores, sim, e nas
grutas subsidiárias. O melhor seria que não amolassem, e Dasdores passaria o dia inteiro compondo
sozinha a paisagem de água e pedras, relva, cães e pinheiros, que há de circundar a manjedoura. Nem
todos os animais estão perfeitos; este carneirinho tem uma perna quebrada, que se poderia consertar,
mas parece a Dasdores que, assim mutilado e dolorido, o Menino deve querer-lhe mais. Os camelos,
bastante miúdos, não guardam proporção com os cameleiros que os tangem; mas são presente da tia morta, e
participam da natureza dos animais domésticos, a qual por sua vez participa obscuramente da natureza da
família. Através de um sentimento nebuloso, afigura-se-lhe que tudo é uma coisa só, e não há limites
para o humano. Dasdores passa os dedos, com ternura, pelos camelinhos; sente neles a macieza da mão de
Abelardo.

Alguém bate palmas na escada; ô de casa! amigas que vêm combinar a hora de ir para a igreja. Entram e
acham o presépio desarranjado, na sala em desordem. Esta visita come mais tempo, matéria preciosa
(“Agarra-me! Agarra-me!”). Quando alguém dispõe apenas de uns poucos minutos para fazer algo de muito
importante e que exige não somente largo espaço de tempo mas também uma calma dominadora — algo de muito
importante e que não pode absolutamente ser adiado – se esse alguém é nervoso, sua vontade se concentra,
numa excitação aguda, e o trabalho começa a surgir, perfeito, de circunstâncias adversas. Dasdores não
pertence a essa raça torturada e criadora; figura no ramo também delicado, mas impotente, dos
fantasistas. Vão-se as amigas, para voltar duas horas depois, e Dasdores, interrogando o relógio, nele
vê apenas o rosto de Abelardo, como também percebe esse rosto de bigode, e a cabeleira lustrosa, e os
olhos acesos, dissimulados nas ramagens do papel da parede, e um pouco por toda parte.

A mão continua tocando maquinalmente nas figuras do presépio dispondo-as onde convém. Nada fará com que
erre; do passado a tia repete sua lição profunda. Entretanto, o prazer de distribuir as figuras, de
fixar a estrela, de espalhar no lago de vidro os patinhos de celulóide, está alterado, ou subtraí-se.
Dasdores não o saboreia por inteiro. Ou nele se insinuou o prazer da missa? Ou o medo de que o primeiro,
prolongando-se, viesse a impedir o segundo? Ou um sentimento de culpa, ao misturar o sagrado ao profano,
dando, talvez, preferência a este último, pois no fundo da caminha de palha suas mãos acariciavam o
Menino, mas o que a pele queria sentir sentia, Deus me perdoe — era um calor humano, já sabeis de quem.
Aqui desejaria, porque o mundo é cruel e as histórias também costumam sê-lo, acelerar o ritmo da
narrativa, prover Dasdores com os muitos braços de que ela carece para cumprir com sua obrigação,
vestir-se violentamente, sair com as amigas — depressa, depressa, ir correndo ladeira acima, encontrar a
igreja vazia, o adro já quase deserto, e nenhum Abelardo. Mas seria preciso atribuir-lhe, não braços e
pernas suplementares, e sim outra natureza, diferente da que lhe coube, e é pura placidez. Correi,
sôfregos, correi ladeira acima, e chegai sempre ou muito tarde ou muito cedo, mas continuai a correr, a
matar-vos, sem perspectiva de paz ou conciliação. Não assim os serenos, aqueles que, mesmo sensuais, se
policiam. O dono desta noite, depois do Menino, é o relógio, e este vai mastigando seus minutos, seus
cinco minutos, seus quinze minutos. Se nos esquecermos dele, talvez pule meia hora, como um
prestidigitador furta um ovo, mas, se nos pusermos a contemplá-lo, os números gelam, o ponteiro
imobiliza-se, a vida parou rigorosamente. Saber que a vida parou seria reconfortante para Dasdores, que
assim lograria folga para localizar condignamente os três reis na estrada, levantar os muros de Belém.
Começa a fazê-lo, e o tempo dispara de novo. “Agarra-me! Agarra-me!” Nas cabeças que espiam pela porta
entreaberta, no estouvamento dos irmãos, que querem se debruçar sobre o caminho de areia antes que essa
esteja espalhada, na muda interrogação da mãe, no sentimento de que a vida é variada demais para caber
em instantes tão curtos, no calor que começa a fazer apesar das janelas escancaradas — há uma previsão
de malogro iminente. Pronto, este ano não haverá Natal. Nem namorado. E a noite se fundirá num largo
pranto sobre o travesseiro.

Mas Dasdores continua, calma e preocupada, cismarenta e repartida, juntando na imaginação os dois deuses,
colocando os pastores na posição devida e peculiar à adoração, decifrando os olhos de Abelardo, as mãos
de Abelardo, o mistério prestigioso do ser de Abelardo, a auréola que os caminhantes descobriram em
torno dos cabelos macios de Abelardo, a pele morena de Jesus, e aquele cigarro — quem botou! — ardendo
na areia do presépio, e que Abelardo fumava na outra rua.

2. UM ESCRITOR NASCE E MORRE

I

Nasci numa tarde de julho, na pequena cidade onde havia uma cadeia, uma igreja e uma escola bem próximas,
umas das outras, e que se chamava Turmalinas. A cadeia era velha, descascada na parede dos fundos, Deus
sabe como os presos lá dentro viviam e comiam, mas exercia sobre nós uma fascinação inelutável (era o
lugar onde se fabricavam gaiolas, vassouras, flores de papel, bonecos de pau). A igreja também era velha,
porém não tinha o mesmo prestígio. E a escola, nova de quatro ou cinco anos, era o lugar menos estimado
de todos. Foi aí que nasci: Nasci na sala do 3º ano, sendo professora D. Emerenciana Barbosa, que Deus
tenha. Até então, era analfabeto e despretensioso. Lembro-me: nesse dia de julho, o sol que descia da
serra era bravo e parado. A aula era de geografia, e a professora traçava no quadro-negro nomes de países
distantes. As cidades vinham surgindo na ponte dos nomes, e Paris era uma torre ao lado de uma ponte e de
um rio, a Inglaterra não se enxergava bem no nevoeiro, um esquimó, um condor surgiam misteriosamente,
trazendo países inteiros. Então, nasci. De repente nasci, isto é, senti necessidade de escrever. Nunca
pensara no que podia sair do papel e do lápis, a não ser bonecos sem pescoço, com cinco riscos
representando as mãos. Nesse momento, porém, minha mão avançou para a carteira à procura de um objeto,
achou-o, apertou-o irresistivelmente, escreveu alguma coisa parecida com a narração de uma viagem de
Turmalinas ao Pólo Norte.

É talvez a mais curta narração no gênero. Dez linhas, inclusive o naufrágio e a visita ao vulcão. Eu
escrevia com o rosto ardendo, e a mão veloz tropeçando sobre complicações ortográficas, mas passava
adiante. Isso durou talvez um quarto de hora, e valeu-me a interpelação de D. Emerenciana :

— Juquita, que que você está fazendo?

0 rosto ficou mais quente, não respondi. Ela insistiu:

— Me dá esse papel aí. . . Me dá aqui.

Eu relutava, mas seus óculos eram imperiosos. Sucumbido, levantei-me, o braço duro segurando a ponta do
papel, a classe toda olhando para mim, gozando já o espetáculo da humilhação. D. Emerenciana passou os
óculos pelo papel e, com assombro para mim, declarou à classe:

— Vocês estão rindo do Juquita. Não façam isso. Ele fez uma descrição muito chique, mostrou que está
aproveitando bem as aulas.

Uma pausa, e rematou:

— Continue, Juquita. Você ainda será um grande escritor.

A maioria, na sala, não avaliava o que fosse um grande escritor. eu próprio não avaliava. Mas sabia que
no Rio de Janeiro havia um homem pequenininho, de cabeça enorme, que fazia discursos muito compridos e
era inteligentíssimo. Devia ser, com certeza, um grande escritor, e em meus nove anos achei que a
professora me comparava a Rui Barbosa.

A viagem ao Pólo foi cuidadosamente destacada do caderno onde se esboçara, e conduzida em triunfo para
casa. Minha mãe, naturalmente inclinada à sobrestimação de meus talentos, julgou-me predestinado. Meu
pai, homem simples, de bom-senso integral, abriu uma exceção para escutar os vagidos do escritorzinho.
Ganhei uma assinatura do Tico-Tico, presente régio naqueles tempos é naquelas brenhas, e passei a
escrever contos, dramas, romances, poesias e uma história da guerra do Paraguai, abandonada no primeiro
capitulo para. alívio do Marechal Lopez.

II

Escrevi. Escrevi. Deixei Turmalinas. No internato, fui redator da Aurora Ginasial, onde um padre
introduziu criminosamente, em minha descrição da primavera, a expressão “tímidas cecéns”, que me
indignou. Cá fora, revistas literárias passaram a abrigar-me com assiduidade. Em uma delas meu retrato
apareceu, com adjetivos. Não me pagavam nada, nem eu podia admitir que literatura se vendesse ou se
comprasse. Quantas vezes meu coração bateu quando os dedos folheavam, trêmulos, o número de sábado,
ainda cheirando a tinta de impressão! Publicou… Não publicou… E sempre a descoberta do meu trabalho,
ainda em plena rua, despertava a sensação incômoda do homem que foi encontrado nu e não teve tempo de
cobrir as partes pudendas. Eu escondia meu crime, orgulhoso de tê-lo cometido, fazendo da literatura um
segredo de masturbação. Havia semanas em que o Fon-Fon!, o Para Todos, a Careta e a Revista da Semana
publicavam simultaneamente trabalhos de minha humilde lavra, todos ou quase todos poemas em prosa, em que
me especializara. Nem sempre havia numerário suficiente para adquirir todas as revistas, e então o copo
de leite quente, com pão e manteiga, à noite, antes de ir para a pensão, sacrificava-se com galanteria às
belas-letras.

Escrevi muito, não me pejo de confessá-lo. Em Turmalinas, gozei de evidente notoriedade, a que faltou,
entretanto, para duração, certo trabalho de jardinagem. É verdade que Turmalinas me compreendia pouco, e
eu a compreendia menos. Meus requintes espasmódicos eram um pouco estranhos a uma terra em que a hematita
calçava as ruas, dando às almas uma rigidez triste. Entretanto, meu nome em letra de fôrma comovia a
pequena cidade, e dava-lhe esperança de que o meu talento viesse a resgatar o melancólico abandono em
que, anos a fio, ela se arrastava, com o progresso a 50 quilômetros de distância e cabritos pastando na
rua.

Não houve resgate, e a cidade esqueceu-me. Nunca mais voltei lá. De lá ninguém me escreveu, pedindo para
fazer uma página sobre o Pico do Amor ou a Fonte das Sempre-Vivas. Meus parentes espalharam-se ou
morreram. 0 escritor tornou-se urbano.

III

Publiquei três livros, que foram extremamente louvados por meus companheiros de geração e de pensão, e
que os críticos acadêmicos olharam com desprezo. Dois volumes de contos e um de poemas. Distribuí as
edições entre jornais, amigos, pessoas que me pediram, e mulheres a quem eu desejava impressionar.

Sobretudo entre as últimas. Minha tática, de resto bem simples, consistia em jamais pronunciar ou sugerir
a palavra literatura. Eu não era um literato que se anunciava, mas um homem que, no fundo, sofria por
saber-se literato. Minha literatura assumia feição estranha, com alguma coisa de nativo e contrariado na
origem, mas vegetando não obstante.

— O senhor escreve coisas lindíssimas, eu sei…

— Calúnia de meus inimigos. Infelizmente, é impossível viver sem fazer inimigos. Eles é que espalham
isso, não acredite…

Meu sorriso ambíguo, de dentes não suficientemente íntegros (ganhei fama de irônico por causa do sorriso
envergonhado) sublinhava a intenção discreta da negativa.

O sujeito afastava-se, impressionado. Muitas reputações nacionais não se estabelecem de outro modo. Eu
escrevia.

IV

Escrevia realmente para que, escrevia por quê? Autor, tipógrafo e público não saberiam responder. Eu não
tinha projetos. Não tinha esperanças. A forma redonda ou quadrada do mundo me era indiferente. A maior ou
menor gordura dos homens, sua maior ou menor fome não me preocupavam. Sabia que os homens existem, que
viver não é fácil, que para mim próprio viver não era fácil, e nada disso contaminava meus escritos.
Dessa incontaminação brotara, mesmo, certa vaidade. “Artista puro”, murmurava dentro de mim a vozinha
orgulhosa. “Não traia o espírito”, acrescentava outra voz interior (borborigmo, talvez). Como o espírito
não protestasse, eu me atribuía essa dignidade exemplar, feita de gratuidade absoluta. E escrevia. Rente
a meu ombro, outros rapazes faziam o mesmo. E não queríamos nada, não esperávamos nada. Éramos muito
felizes, embora não soubéssemos, como acontece geralmente.

O meu, o nosso individualismo fundamental proibia-nos o aconchego das igrejinhas. Éramos ferozmente
solitários. Em cada Estado do Brasil, uma academia de letras reunia os gregários, distribuía louros
inofensivos. Esses louros repugnavam-me, e os acadêmicos, geralmente pessoas sem complexidade, eram a
meus olhos monstros de intolerância, inveja, malícia e incompreensão, intensamente misturadas. O fato de
terem quase todos mais de 45 anos apenas adoçava esse sentimento de repulsa, para introduzir nele um grão
de piedade triste. Em verdade, ter mais de 45 anos era não somente absurdo como prova de extrema
infelicidade. Até certo ponto, os acadêmicos mereciam simpatia. Como os dromedários, animais estranhos
que não podem ser responsabilizados pelo gênero de vida que lhes impõe o vício de nascença.

Fugindo aos mais velhos, seria natural que nos ligássemos uns aos outros, os de 20 a 25 anos.
Cultivávamos mais ou menos os mesmos preconceitos. As mesmas fobias em cada um de nós. Desgraçadamente,
elas nos impunham o cauteloso afastamento recíproco, e nossas conversas de bar, noite afora, tinham
traços de ferocidade e autoflagelação. Entretanto…

Licurgo, que compusera comigo o “Poema do Cubo de Éter”, descobriu certa noite o tomismo, e eu o expulsei
de minha convivência. Mas, sua voz, continuou pregando os novos tempos, perturbando almas sedentas de
verdade e metafísica.

Aleixanor, tendo comprado num sebo as Cartas aos Operários Americanos, de Lenine, e começando a colaborar
no Grito Proletário, sofreu de minha parte uma campanha de descrédito intelectual. Voltou-se para a ação
política, fundou sindicatos, escreveu e distribuiu manifestos, e desfrutou de certa notoriedade até o
golpe de 35, quando emudeceu.

A poetisa Laura Brioche fundou um Clube de Psicanálise, que procurei desmoralizar na primeira reunião,
introduzindo sub-repticiamente entre os sócios, antes da votação dos estatutos, volumosa quantidade de
uísque, genebra e gim. A sessão dissolveu-se em álcool, mas restaram aqui e ali grupos de bem-aventurados
que se entretinham na interpretação onírica e confrontavam gravemente seus respectivos complexos,
recalques e ambivalências.

Fundaram-se sucessivamente, a Associação dos Amigos dos Livros de História, a Academia dos Gramáticos de
Ouro Preto, um Curso de Alimentação Racional, a Sociedade de Aculturação Ário-Africana, o Grupo
Deus-Pátria-Justiça-Ensino Profissional, o Clube Esperantista Limitado, o Instituto de Genética.

Todos, em redor de mim, se iam afirmando, fixando.

Todos optavam. Nos jornais, passavam do suplemento de domingo à página editorial. Alguns recebiam
manifestações de apreço, outros eram chamados a trabalhar em gabinetes de secretários de Estado. Vários
compraram lotes, começaram a edificar. Um deles, extraordinário, conquistou um cartório. A floração de
filhos, vitoriosos em concursos de puericultura, afirmava o rumo seguro de minha geração.

Eu perseguia o mito literário, implacavelmente, mas, sem fé. Nunca meus poemas foram mais belos, meus
contos e crônicas mais fascinantes do que nesse tempo de crescente solidão. Solidão, solidão… Era só o
que havia em torno a mim, dentro em mim. Era como se eu morasse numa cidade que, pouco a pouco, fosse
ficando deserta. Algum tempo mais, não haveria ninguém para dirigir os sinais luminosos nas esquinas, dar
corda aos relógios, velocidade aos bondes, carne, pão e fruta às casas. De resto, para que bondes,
relógios?… Já não havia ninguém, todos se haviam mudado para as cidades em frente, ao norte, ao sul, e
eu passeava lugubremente minha solidão nas ruas que ressoavam a meu passo, ruas que outrora me eram
familiares, e agora pareciam escurecer, mudar de forma, de cheiro: de tal modo estavam ligadas a uma
época, uma geração, um estado de espírito que se decompunham… Tudo ia escurecendo… escurecendo… Mas
eu andava, eu continuava, eu não queria acreditar…

Risquei um fósforo, já sob a escuridão absoluta, e na lâmpada que minhas mãos em concha formavam, percebi
que tinha feito 30 anos. Então morri. Dou minha palavra de honra que morri, estou morto, bem morto.

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