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Duelo (Conto de Sagarana), de Guimarães Rosa

by Lucas Gomes

Conto narrado na terceira pessoa. O narrador em Duelo é onisciente, ou seja, sabe o que passa pela cabeça das personagens. Porém, com alguns diferenciais, como o toque de humor que Guimarães Rosa dá à narrativa, o estabelecimento de diálogos com o leitor, a mesclagem entre o que se narra e a fala de algumas das personagens, opiniões pessoais do narrador em determinadas situações, dentre outros recursos.

Duelo pode ser lido como uma alegoria da fatalidade, de inexorabilidade do destino humano. Enquanto os homens se perdem na busca de seus objetivos, de um fim, algo superior dispõe o contrário, o imprevisto.

Sobre o título do conto, não se pode interpretar a palavra “duelo” literalmente dentro da história. Pode-se observar, então o duelo entre o forte o fraco, por exemplo: quando Turíbio chegou em casa e viu a mulher em adultério com Cassiano, Turíbio pensou antes de enfrentá-lo: Cassiano Gomes havia servido ao Exército, sabia manejar muito bem as armas e, por isso, poderia dar um fim à vida do marido traído ali mesmo. Percebendo que Cassiano era mais forte, Turíbio decidiu matá-lo em outra ocasião, covardemente com um tiro pelas costas: porém, não obteve êxito, matando o irmão de Cassiano. Turíbio foge e assim começa a perseguição…

Durante toda a caçada, Cassiano e Turíbio não se cruzam uma só vez. Cassiano pára em um vilarejo chamado Mosquito devido a problemas de seu debilitado coração e conhece Timpim, um garoto franzino, frágil mesmo, a quem Cassiano decide apadrinhar – ele e seus três filhos. Nesse ínterim, Turíbio decide ir à São Paulo ganhar a vida. Cassiano vem a falecer, mas faz Timpim Vinte-e-Um prometer que vai matar Turíbio Todo. Pois ocorre que, quando Turíbio volta de São Paulo, encontra com um “camarada meio quilo de gente” no caminho e começam a cavalgar juntos. E esse camarada magrelo era Timpim, que matou Turíbio Todo com um tiro de garrucha no rosto… mais uma vez, essa oposição aparece, já que o “fraco” (Timpim) acaba matando o “forte” (Turíbio).

O cenário é o Arraial de Vista-Alegre, no interior de Minas Gerais.

A linguagem especial de Guimarães Rosa aparece sob diferentes matizes em sua obra. Em Duelo não é diferente. A linguagem não é difícil ou rebuscada, mas sim recriações, invenções e resgates que levam o leitor a constantes redescobertas. Guimarães rosa era um “artesão” da língua, trabalhava as palavras como ninguém, a fim de transmitir profundamente a mensagem que desejava.

O humor está presente em toda obra, em tom, muitas das vezes, satírico. O maior exemplo é a personagem Silivana, esposa adúltera de Turíbio Todo; primeiramente, o narrador a descreve como tendo “grandes olhos bonitos, de cabra tonta”; no decorrer do conto, o narrador volta a repetir essa mesma sentença, causando uma impressão humorística na estória: “(…) Turíbio Todo (…) estava com saudades da mulher, Dona Silivana – aquela mesma que tinha belos olhos grandes, de cabra tonta (…)”; “Mas (Turíbio) tinha de fazer ainda um dia a cavalo e estava com pressa, porque Silivana tinha os olhos bonitos, sempre grandes olhos, de cabra tonta”.

A trama se desenrola de maneira linear durante todo o conto. Há ausência de flash-backs das personagens, visto que elas não se remetem ao passado para tentar buscar explicações de conflitos no momento atual. Com relação à duração da trama, não é possível afirmar quanto tempo ela dura exatamente; porém, o narrador diz em determinada parte do conto o seguinte: “E continuou o longo duelo, e com isso já durava cinco ou seis meses e meio a correria, monótona e sem desfecho.” Ou seja, um tempo impreciso demais para virmos a afirmar que o conto teve esta ou aquela duração (deve ser levado em consideração, também, que a estória ainda continua depois daquela colocação do narrador).

Com relação à época em que se passa o conto, pode-se dizer que é bem condizente com a época em que foi escrito pelo autor: a década de 30, mais precisamente em 1937. Foi uma tentativa do autor em retratar uma sociedade que começava a ser esquecida, devido à acelerada urbanização a que vinham se submetendo os grandes centros na época.

Personagens

As personagens de Duelo estão intimamente ligadas à paisagem do interior mineiro, à vida nas fazendas – como em todos os contos de Sagarana.

Seus personagens são admiravelmente delineados e caracterizados não apenas externamente, mas com uma rara penetração da psicologia do homem rústico. Suas descrições atestam um conhecimento minucioso de gentes, plantas e bichos em contato com o ambiente sertanejo.

Durante a narrativa de Duelo, Guimarães procura caracterizar bem suas personagens, dando mostras de que é um profundo conhecedor da alma humana.

É curioso também o modo como nomeia as personagens, apelidando ou distorcendo nomes próprios: Turíbio Todo, Vinte-e-Um, Silivana, Chico Barqueiro, dentre outros nomes, compõem um recurso literário para, através do exagero, destacar as características específicas, a personalidade própria de cada um (assim como, talvez, o próprio hábito de apelidar, presente até hoje nas sociedades interioranas).

Com relação ao ambiente rural em que as personagens estão inseridas, procura-se também caracterizá-lo, e delimitá-lo, na trama, ao oeste de Minas Gerais. A fauna, a flora, os lugarejos por onde passam Turíbio Todo e Cassiano Gomes, a topografia, tudo é retratado da maneira mais verossímil possível, para que o leitor realmente perceba o espaço físico no qual se desenvolve o conto.

Turíbio Todo – Seleiro de profissão, tinha pêlos compridos nas narinas, chorava sem fazer caretas. Papudo, vagabundo, vingativo e mau.
Dona Silivana – Esposa de Turíbio Todo; tinha grandes olhos bonitos, de cabra tonta.
Cassiano Gomes – Ex-militar, fama de exímio atirador, andava sempre com um rifle ao alcance da mão. Solteiro, tinha um caso Dona Silivana, esposa de Turíbio Todo.
Timpim Vinte-e-Um – Caipira pequenino, morador do povoado Mosquito. Cassiano, antes de morrer, salvou-lhe o filho e deu-lhe dinheiro. Vinte-e-Um matou Turíbio Todo.

Resumo do conto

Turíbio Todo foi pescar e avisou à mulher que só voltaria no outro dia. À beira do córrego, faltou-lhe o fumo de rolo para espantar os mosquitos; bateu com os dedos nos tocos e ficou com o pé direito ferido. Por isso, voltou para casa à noite. Ouvindo vozes no quarto, olhou por uma fisga da porta e viu que a mulher estava na cama com outro. Sem arma e conhecendo bem o outro (Cassiano Gomes que pertencera à polícia e era exímio atirador), Turíbio não fez nada. Afastou-se tão macio como se havia aproximado.

No outro dia, ao voltar para casa, “foi gentilíssimo com a mulher, mandou pôr ferraduras novas no cavalo, limpou as armas, proveu de coisas a capanga, falou vagamente numa caçada de pacas, riu muito, se mexeu muito, e foi dormir bem mais cedo do que de costume.” Isso tudo foi na quarta-feira.

No outro dia, quinta, Turíbio terminou os preparativos e foi tocaiar a casa de Cassiano Gomes. “Viu-o à janela, dando as costas para a rua. Turíbio não era mau atirador: baleou o outro bem na nuca. E correu para casa, onde o cavalo o esperava na estaca, arreado, almoçado e descansadão“.

Turíbio Todo, iludido pela semelhança e alvejando o adversário por trás, matara não o Cassiano, mas o Levindo Gomes, irmão daquele. O morto não era ex-militar e detestava mexer com a mulher dos outros.

Cassiano Gomes fez o enterro do irmão, recebeu as condolências, trancou bem as portas e as janelas da casa (era solteiro), conferiu as armas, comprou a besta douradilha com arreios e tudo, mandou lavá-la e ferrá-la. Só então, partiu para vingar a morte do irmão.

Cassiano não encontrou Turíbio na primeira tentativa. O papudo conseguiu enganá-lo, voltando por caminho diverso do imaginado. Cassiano queria pegar Turíbio desprevenido. Por isso, passou a andar à noite e dormir de dia. Os planos de Cassiano iam fracassando. Turíbio conhecia a região como a palma da mão. Assim, ia conseguindo escapar com boa margem de estrada e tempo.

Foram tantos os desencontros que Cassiano trocou pela segunda vez de montada, comprando um cavalo alazão. Também Turíbio Todo já trocara de animal umas quatro vezes.

Turíbio Todo teve a audácia de voltar ao arraial e passar uma noite de amor com a esposa, Dona Silivana. Até contou a ela, na hora da despedida, sob segredo, o seu estratagema último. Estava apostando que o coração de Cassiano não ia agüentar a perseguição. Dona Silivana contou isso a Cassiano na primeira oportunidade. Depois, muita gente sabia da intenção de Turíbio.

A correria monótona, sem desfecho, já durava mais de cinco meses, e os dois rivais não se encontravam. Certa vez, Cassiano chegou primeiro à margem do rio Paraopeba, onde só se atravessava de balsa. O dono da balsa não estava, mas um moleque, seu filho, garantiu que o papudo ainda não chegara por ali. Cassiano ficou de tocaia à espera do inimigo. À noite, houve troca de tiros. No outro dia, Chico Barqueiro quase agrediu Cassiano, pensando que ele fosse um inimigo. Explicados os mal-entendidos, ao meio-dia, Cassiano despediu-se: estava disposto a dar uma trégua, descansar, esperar que Turíbio relaxasse. Depois que partiu, Turíbio chegou, pronto para atravessar o rio. Em cima da balsa, Chico Barqueiro ainda o ofendeu.

Depois de atravessar o Paraopeba, Turíbio andou muito, sempre para o sul, até topar o rio Pará. Ali, encontrou uns baianos que iam para São Paulo, atraídos pela cultura do café. Falaram em dinheiro fácil. Apesar da saudade da mulher, Turíbio foi também. Depois mandava buscá-la.

Turíbio cansava-se à toa. Na parte da tarde, inchava as pernas e os pés. Foi ao boticário que lhe deu vida até o próximo São João. Se piorasse, morreria pelo Natal. Diante de tal realidade, tomou uma decisão: vender tudo que possuía e ir atrás de Turíbio; precisava matá-lo antes de morrer.

No caminho, Turíbio piorou e teve que fazer alta no Mosquito – povoado perdido num cafundó de entremorro, longe de toda a parte – com três dúzias de casebres. Esteve mal, com respiração difícil. Quando melhorou um pouquinho, “indagou se por ali não havia um homem valente, capaz de encarregar-se de um caso assim, assim…” Pagava até um conto de réis. Não havia. Nem no povoado, nem na redondeza. Cassiano via o tempo passar, dia após dia, sentado à porta de um casebre. A paisagem era triste.

Um dia, Cassiano assistiu a um irmão grandalhão batendo noutro menor. Chamou o menor, de apelido Timpim Vinte-e-um, e indagou-lhe o nome e por que ele não reagia às pancadas do irmão. O nome verdadeiro era Antônio, e o apelido oficial era Timpim Vinte-e-Um. É que a mãe dele tivera vinte e um filhos, e ele foi o último. Não reagia às pancadas do irmão porque a mãe lhe dissera que ele não levantasse a mão para irmão mais velho. E todos eram mais velhos. Vinte e um era casado, e a mulher dele acabara de ter criança. Cassiano deu-lhe dinheiro para comprar galinhas e alimentara a esposa. No outro dia, Vinte-e-Um fez uma surpresa ao doente: trouxe-lhe o filho para lhe tomar bênção. Cassiano ficou emocionado e piorou. Um dia, quando Cassiano estava pior ainda, Vinte-e-Um apareceu chorando: o filhinho estava muito doente, ele sem recursos para socorrê-lo. Cassiano deu-lhe o dinheiro para trazer o médico até a criança e comprar os remédios necessários. “Veio o médico; veio o padre: Cassiano confessou-se, comungou, recebeu os santos óleos, rezou, rezou“. Sentindo que a morte já estava na porta, deu todo o dinheiro que possuía para o compadre Vinte-e-Um (agora tratavam-se como compadres). Logo depois, morreu e foi para o céu.

Por meio de uma carta da mulher, que o invocava para o lar, Turíbio Todo ficou sabendo da morte de Cassiano. “Ele já tinha ganhado uns bons cobres“. Comprou mala e presentes, pôs um lenço verde no pescoço para disfarçar o papo, calçou botas vermelhas de lustre e veio de trem. Para perfazer o resto do caminho, alugou arranjou um cavalo emprestado. No caminho, foi alcançado por um cavaleiro miúdo, montando um cavalo magro. Via-se que os dois estavam em petição de miséria. Depois de continuarem pela estrada, a miniatura de homem perguntou se ele era mesmo o Turíbio Todo, seleiro de Vista-Alegre, que estava vindo das estranjas. Turíbio confirmou. A viagem prosseguiu. Turíbio falava da felicidade próxima: ver a mulher, levá-la para casa, talvez levá-la para São Paulo. O caipirinha mostrava-se pessimista: não valia a pena a gente alegrar-se.

De repente, no meio da estrada fechada, Turíbio levou um susto: o capiauzinho falou com voz firme e diferente, segurando uma garrucha velha de dois canos: “Seu Turíbio! Se apeie e reza, que agora eu vou lhe matar!” Turíbio fez voz grossa, mas o caipira explicou: não ia adiantar nada porque ele prometeu ao Compadre Cassiano, na horinha mesmo de ele morrer. Turíbio tentou ganhar tempo, fez que ia rezar e puxou o revólver. Mas a garrucha não falhou: foram dois tiros, um do lado esquerdo da cara, outro no meio da testa. Turíbio caiu morto, e Vinte-e-Um esporeou a montaria, tomando o caminho de volta.

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