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Desenredo (Conto da obra Tutaméia – Terceiras Estórias), de João Guimarães Rosa

by Lucas Gomes

Desenredo

, conto integrante de Tutaméia – Terceiras
Estórias
, último livro publicado em vida por João
Guimarães Rosa, em 1967. Naquele momento, no panorama literário
brasileiro, nem tudo era regionalismo. Começava a surgir a “reação
espiritualista”, ou seja, o social e a militância estavam sendo
deixados um pouco de lado para um mergulho na subjetividade. Esta ficção
introspectiva é universalizante, isto é, não é apenas
ligada ao regional.

O enredo insólito articula-se às inovações realizadas
pelo autor. A exploração de novas estruturas lingüísticas
efetuadas pelo autor funciona como eixo fundamental do conto, sugerindo e indiciando
o desenrolar dos acontecimentos na narrativa. O tema do conto é definido
no próprio título. O prefixo “des” tem sentido de ação
contrária, no caso, ação contrária à estória,
pois cria uma nova realidade e transforma o passado. O conto desmente a tradicional
honra masculina, que se lava com sangue, e que no caso não lava, “conserta”,
refazendo a estória. Encontramos situação semelhante à
de Grande sertão: veredas. Há um narrador que se dirige
a seus “ouvintes” o que constrói uma narrativa escrita, porém,
de caráter eminentemente oral.

Diferente do conto tradicional, em que há unidade de ação,
tempo e espaço, em Desenredo fragmentam-se os valores das pessoas
e das palavras. Desmonta-se a estrutura linear lógica da narrativa tradicional.
O autor se atém aos personagens, sobretudo ao perfil psicológico,
às suas ações e reações. O conto acentua
o poder da narrativa de contar o vivido, e, sobretudo, o poder de modificar,
reelaborar e inventar o real.

Sendo centrado no estado psíquico das personagens, nas indagações
existenciais, no comportamento das pessoas e suas relações, esses
estados desestruturam o tempo cronológico mensurável e passam
a uma crono-ilogia – ênfase no tempo psicológico das vivências,
dos sentimentos e emoções. O tempo é voltado para os estados
interiores da personagem, sendo que, neste conto, não há datas
específicas, e diferente do conto tradicional, em que, geralmente, a
ação tem uma duração. Neste, não se sabe
exatamente a duração, mas percebe-se que passa muito tempo. Pois
primeiro eles se conhecem e tornam-se amantes. Após a descoberta e morte
do segundo amante, eles se separam por mais um tempo. Depois da morte do marido,
retomam o romance, casam-se e, depois da traição, separam-se novamente.

O “Caso” é uma das formas de literatura oral. Vê-se
que essa narrativa assume um tom de Caso já de início, quando
o narrador convoca seus narratários com a expressão: “Do
narrador a seus ouvintes.

Este narrador, em 3ª pessoa, onisciente e intruso, narra a história
de Jó Joaquim, homem que se apaixona por uma mulher extremamente infiel,
a quem conhecera ainda casada. Flagrada pelo marido com um terceiro homem, a
amante de Jó Joaquim escapa da morte. Este decide se afastar, mas, com
a morte do marido, não resiste e casa-se com ela, que passa então
a traí-lo. Com a infidelidade mais uma vez descoberta, Jó expulsa
a adúltera companheira. Em seguida, começa uma verdadeira campanha
com o objetivo de modificar a imagem da mulher, afirmando a sua inocência.
Sua obstinação, motivada talvez por um amor incondicional, faz
com que ele transmita aos outros um modelo de fidelidade tão perfeito
que aos poucos todos começam a acreditar em sua história. E, de
tanto acreditarem, até a traidora passa a crer na imagem pelo marido
idealizada. Como que para fazer jus a tão boa fama, ela torna-se, de
fato, uma mulher fiel, voltando para o marido, com quem é feliz para
sempre.

No conto, a fala do narrador assume um tom prosaico, de forma que, mesmo negando
voz aos personagens, o discurso do narrador se faz pleno de oralidade. É
uma prosa poética escrita que se faz a partir da apropriação
criativa de contextos orais. Assim seu discurso se assume como fala, embora
o registro seja a letra impressa.

Um primeiro aspecto a ser destacado refere-se à presença recorrente
de provérbios populares e máximas. Tais aforismos têm, a
nosso ver, uma dupla função: a de apresentar Jó Joaquim
como um homem humilde, do povo, o que se confirma com a sua caracterização,
e a de atuar como indício do enredo. O fato de Jó Joaquim preocupar-se
com a imagem da mulher perante os habitantes do lugar acentua o seu provincianismo,
marca também do narrador, que aparece na introdução do
conto a narrar a história a ouvintes, como se de um causo se tratasse.
A oralidade, bem como a exploração de um tema do cotidiano, confere
ao conto um caráter popular, intensificado pelas assertivas que mapeiam
os momentos-chave da trama. A primeira delas, presente na apresentação
de Jó Joaquim, prenuncia a mudança trazida por uma mulher na vida
do protagonista, antes respeitado:

         – Jó
Joaquim (…) era quieto, respeitado, bom como o cheiro de cerveja. (…) Com
elas quem pode, porém? Foi Adão dormir, e Eva nascer.

Após o encanto mútuo, Jó Joaquim e a amante começam
a encontrar-se furtivamente. Aguardando um momento propício, o protagonista
deixa-se levar pelo amor, iludido, sonhador, como mostra o narrador com outro
de seus aforismos:

         (…) Então
ao rigor geral os dois se sujeitaram, conforme o clandestino amor em sua forma
local, conforme o mundo é mundo. Todo abismo é navegável
a barquinhos de papel.

A reviravolta na trama é antecipada pela instância narrante, que
prenuncia a tragédia a ser narrada:

         Até que-deu-se
o desmastreio. O trágico não vem a conta-gotas. Apanhara o marido
a mulher: com outro, um terceiro… Sem mais cá nem mais lá, mediante
revólver, assustou-a e matou-o Diz-se também, que de leve a ferira,
leviano modo
.

A passagem acima, além da assertiva indicada, traz ainda marcas de oralidade
no discurso – “sem mais cá nem mais lá
– e o inconfundível “diz-se”, presente nos
populares disse-me-disse.

A narrativa prossegue, e vemos Jó Joaquim afastado da amante, refazendo-se
da decepção. Entretanto, como é de desenredo que se trata,
o marido morre, permitindo o reencontro dos amantes:

         Enquanto ora, as
coisas amaduravam. Todo fim é impossível? Azarado fugitivo, e
como à Providência praz, o marido faleceu (…).O tempo é
engenhoso.

A máxima do narrador, claramente irônica, sugere os desdobramentos
que a morte do marido trará à história. Em termos narrativos,
trata-se de uma função, na medida em que temos um acontecimento
crucial para o desenrolar da trama.

Além dos provérbios citados de forma literal pelo narrador, há
outros a nosso ver ainda mais significativos, que aparecem modificados, alegorizando
a modificação da situação apresentada. Assim, mais
do que simplesmente reproduzir expressões da fala popular, o narrador
modifica tais expressões, imprimindo-lhes sua marca pessoal e adaptando-as
ao contexto da narrativa. A máxima “depois da tempestade vem
sempre a bonança
” é aqui transformada em “a
bonança nada tem a ver com a tempestade
”, numa sugestão
de que, após tantas desventuras, Jó Joaquim ainda não encontrará
a paz:

         No decorrer e comenos,
Jó Joaquim entrou sensível a aplicar-se, progressivo, jeitosão
afã. A bonança nada tem a ver com a tempestade. (…) Entregou-se
a remir, redimir a mulher, à conta inteira.

Outra expressão adaptada pelo narrador está presente na passagem
abaixo, momento em que Jó Joaquim é informado da viuvez da amada:

         Soube-o logo Jó
Joaquim, em seu franciscanato, dolorido, mas já medicado. Vai, pois,
com a amada se encontrou (…). Nela acreditou, num abrir e não fechar
de ouvidos. Daí, de repente, casaram-se.

Ao subverter o conhecido “num abrir e fechar de olhos”, o narrador
simultaneamente demonstra a eternidade do amor do protagonista, que jamais se
fecharia às palavras da amada, e sugere a credulidade de Jó Joaquim,
que confiava nas doces palavras da mulher.

Os jargões e termos técnicos também perpassam a narrativa,
relacionando palavras de um mesmo campo semântico ao enredo do conto.
Há, por exemplo, diversas referências a embarcações
quando o narrador fala da paixão de Jó Joaquim. Tais referências
atuam como metáforas da trama retratada. Ao comentar a atração
recíproca entre Jó Joaquim e a amada, diz o narrador:

         Antes bonita, olhos
de viva mosca, morena mel e pão. Aliás, casada. Sorriram-se, viram-se.
Era infinitamente maio e Jó Joaquim pegou o amor. Enfim, entenderam-se.
Voando o mais em ímpeto de nau tangida a vela e vento.

A comparação do amor com a nau tangida a vela e vento sugere,
simultaneamente, uma relação movida a paixão (a vela) e
que vagueia à deriva (ao vento), oscilando de acordo com os acontecimentos.

Outra imagem ligada à navegação é a dos barquinhos
de papel. A fragilidade e a inocência dos sonhos do protagonista são
habilmente metaforizadas nos singelos barquinhos, acentuando a pequenez humana
diante dos indecifráveis desígnios da vida:

         (…) O marido se
fazia notório, na valentia com ciúme; e as aldeias são
a alheia vigilância. Então ao rigor geral os dois se sujeitaram,
conforme o clandestino amor em sua forma local, conforme o mundo é mundo.
Todo abismo é navegável a barquinhos de papel.

O campo semântico das embarcações / navegações
é ainda vislumbrado na referência a Ulysses, célebre herói
da Odisséia que, entre tantas outras peripécias, amarrou-se
à proa do navio para não sucumbir ao melodioso e traiçoeiro
canto das sereias. O Ulysses mitológico encontrou, portanto, uma saída
contra a tentação feminina simbolizada pelas sereias, o que não
parece ocorrer com Jó Joaquim, levando o narrador a citar a sabedoria
do navegante ancestral:

         (…) Jó Joaquim
entrou sensível a aplicar-se, a progressivo, jeitoso afã. A bonança
nada tem a ver com a tempestade. Crível? Sábio sempre foi Ulysses,
que começou por se fazer de louco.

Entretanto, se por um lado pode-se ver nas palavras do narrador uma crítica
ao comportamento crédulo e apaixonado do protagonista, por outro pode
haver uma defesa de Jó Joaquim por parte da instância narrante.
Afinal, se a sabedoria de Ulysses foi a de se fingir de louco para não
ter de ir à guerra, a tentativa de redimir a imagem da esposa efetuada
por Jó Joaquim, apesar de parecer uma total insanidade, no final revela-se
sábia e bem-sucedida. O protagonista embarca em seu sonho, e com ele
chega ao local desejado.

Ainda com relação aos termos técnicos, várias são
as palavras ou expressões ligadas à lei e ao Direito, como se
pode perceber nas passagens abaixo:

         Jó Joaquim,
derrubadamente surpreso, no absurdo desistia de crer, e foi para o decúbito
dorsal, por dores, frios, calores, quiçá lágrimas, devolvido
ao barro, entre o inefável e o infando. Imaginara-a jamais a ter o pé
em três estribos; Chegou a maldizer de seus próprios e gratos abusufrutos.

         De amor não
a matou, que não era para truz de tigre ou leão. Expulsou-a apenas,
apostrofando-se, como inédito poeta e homem. (…) Tudo aplaudiu e reprovou
o povo, repartido. Pelo fato, Jó Joaquim sentiu-se histórico,
quase criminoso, reincidente.

Repare-se que, apesar de a maioria dos termos grifados possuir uma relação
semântica com crime, não é à adúltera que
eles se referem. O abuso no ato de usufruir, ou abusufruto, neologismo rosiano
que sugere o prazer desfrutado pelos amantes, aparece como um delito do protagonista,
instaurando uma espécie de contradição: o usufruto caracteriza
o direito de se aproveitar alguma coisa, enquanto o termo abuso marca o excesso
dessa prerrogativa. As delícias experimentadas nos encontros superavam,
portanto, os limites estabelecidos, numa transgressão já expressa
pelo caráter adulterino da relação. Já os termos
criminoso e reincidente se referem explicitamente a Jó, traduzindo a
imagem de que o grande erro fora dele, ao confiar novamente na mulher. O termo
decúbito dorsal, normalmente utilizado para indicar a posição
em que um corpo fora encontrado, coloca o protagonista na condição
de vítima, ao mesmo tempo em que denuncia a sua prostração
após a constatação da infidelidade da amada.

A partir do momento em que começa a sua cruzada visando a redimir a
mulher, os termos vão se aproximando mais do aspecto criminal. Para livrá-la
da calúnia, ele não hesita em modificar testemunhos e evidências,
alterando completamente a “cena do crime”.

A relação do enredo com as estruturas morfológico-sintáticas
presentes no conto é ainda vislumbrada a partir de um jogo com os parônimos
mas e mais, cada um deles constituindo um parágrafo.

O primeiro parágrafo formado apenas pela conjunção adversativa
surge logo após a notícia do casamento do protagonista, num prenúncio
das adversidades trazidas pela união:

         (…) Daí,
de repente, casaram-se. Alegres, sim, para feliz escândalo popular, por
que forma fosse. Mas.

Em outro parágrafo, desta vez sintetizado no advérbio de intensidade,
uma sugestão de que há muitas coisas ainda por contar nessa história:

         (…) Suas lágrimas
corriam atrás dela, como formiguinhas brancas. (…) Vá-se a camisa,
que não o dela dentro. Era o seu um amor meditado, a prova de remorsos.
Dedicou-se a endireitar-se. Mais.

O próprio jogo fônico-semântico entre mas e mais ilustra
o desenvolvimento da trama: primeiro, há a reviravolta; depois, surge
algo a mais, que permitirá a transformação, volvendo o
mero enredo em desenredo.

Os neologismos detectados na obra também dialogam com ela, possuindo
uma função na narrativa. Um deles indica a situação
de Jó Joaquim durante o afastamento da amada:

         (…) Jó Joaquim,
em seu franciscanato, dolorido, mas já medicado.

O termo franciscanato utilizado na referência à vida do protagonista
enfatiza o seu celibato, seu estoicismo. A renúncia aos prazeres, exigida
de qualquer monge, aliada ao voto de pobreza típico dos franciscanos,
acentua a abstinência de Jó Joaquim, penitente do amor. A existência
monástica que o personagem levava até então contrasta com
a devassidão da amada, e significativamente a referência ao franciscanato
de Jó Joaquim é imediatamente anterior ao mas, indicando a mudança
por vir.

Outro neologismo percebido em Desenredo é o termo “ufanático”,
usado para caracterizar o protagonista em sua empresa:

         Celebrava-a, ufanático,
tendo-a por justa e averiguada, com convicção manifesta. Haja
o absoluto amar e qualquer causa se refuta.

A palavra em questão, cruzamento de ufanista com fanático, sintetiza
de forma primorosa a paixão de Jó pela amada. Dotado do tom exagerado
que marca os ufanistas e da admiração exaltada do apaixonado que
comete excessos, Jó Joaquim revela-se um verdadeiro ufanático,
numa sugestão do amor quase obsessivo que manifesta. É movido
por essa paixão desmedida que ele decide transformar sua história
de amor.

Um aspecto que merece ser destacado refere-se à onomástica,
uma vez que o nome dos personagens completa a sua caracterização.
O protagonista, que tem como primeiro nome Jó, remete ao homônimo
bíblico conhecido por sua paciência e resignação.
Submetido às piores provações, manteve-se fiel a Deus.
O fato de o personagem possuir o mesmo nome do mártir bíblico
funciona como indício de todo o sofrimento que experimentará ao
longo da história, bem como a sua incontestável fidelidade.

O nome da amada de Jó Joaquim, intencionalmente omitido até
aqui, é também extremamente sugestivo. No início do conto,
o narrador refere-se a ela, sem deixar claro qual é, de fato, o seu nome:

         – Jó
Joaquim (…) era quieto, respeitado, bom como o cheiro de cerveja. (…) Com
elas quem pode, porém? Foi Adão dormir, e Eva nascer. Chamando-se
Livíria, Rivília ou Irlívia, a que, nesta observação,
a Jó Joaquim apareceu.

A indefinição do narrador traduz a incerteza quanto à
identidade da personagem e, por extensão, quanto ao seu caráter.
A inconstância da amada de Jó Joaquim é metonimizada na
inconstância de seu nome, que parece se modificar com a mesma rapidez
com que ela troca de parceiro.

O fato de Vilíria surgir com um nome outro, distinto dos referidos pelo
narrador, sugere a transformação nela operada pelos esforços
de Jó Joaquim. É essa quarta mulher, diferente de todas as anteriores,
que trará a felicidade ao protagonista. Seu último nome carrega
ainda uma polissemia condizente com sua história: apesar da aparente
oposição entre o vil e o lírio, maldade e pureza aliam-se
nessa mulher multifacetada. A própria imagem do lírio é
repleta de ambivalências, sendo ao mesmo tempo ícone de pureza
e de pecado, sendo inclusive uma das marcas das prostitutas medievais.

Esse potencial para a mudança entrevisto no simbolismo do lírio
reflete o poder de cada ser humano de transformar o seu destino, atitude tomada
por Jó Joaquim. Este, ao reescrever a história da mulher, modifica-a,
tornando-se narrador em vez de mero personagem. Ao imprimir seu desejo à
narrativa, torna-se partícipe desse processo, mudando-lhe o final e gerando
o desenredo aludido pelo título. O enredo corriqueiro e estereotipado
da mulher de mil amantes, de fim trágico e previsível, é
então reformulado, transformando-se em feliz desenredo. Com a boa-fé
dos otimistas, de tanto acreditar tornou em verdade a mudança de sua
história:

         (…) Desejava ele,
Jó Joaquim, a felicidade – idéia inata. Entregou-se a remir,
a redimir a mulher, à conta inteira. (…) Nunca tivera ela amantes!
Não um. Não dois. Disse-se e dizia isso Jó Joaquim. Reportava
a lenda a embustes, falsas lérias escabrosas. Cumpria-lhe descaluniá-la,
obrigava-se por tudo.

De tanto criar uma fantasia em que pudesse se refugiar e convencer os outros,
Jó Joaquim acaba por criar uma nova realidade. A vida imita a arte, e
é a um espetáculo teatral que o narrador compara a atitude do
protagonista:

         (…) Trouxe à
boca-de-cena do mundo, de caso raso, o que fora tão claro como água
suja.

O processo de conversão da mentira em verdade ocorre por meio de uma
lógica invertida, por uma investigação às avessas,
em que o passado modifica o presente, na arte e na obstinação
de Jó Joaquim:

         O ponto está
em que o soube, de tal arte: por antipesquisas, acronologia miúda, conversinhas
escudadas, remendados testemunhos. Jó Joaquim, genial, operava o passado
– plástico e contraditório rascunho. Criava nova, transformada
realidade, mais alta.

À medida que embarca quixotescamente em seu propósito, os vestígios
do passado maculado vão sendo apagados, dando lugar à verdade
transformada:

         Pois, produziu efeito.
Surtiu bem. Sumiram-se os pontos das reticências, o tempo secou o assunto.
Total o transato desmanchava-se, a anterior evidência e seu nevoeiro.
(…) Todos já acreditavam. Jó Joaquim primeiro que todos.

E, mágica-paradoxalmente, o sujeito das infâmias converte-se em
objeto, claro e límpido, da criação de Jó Joaquim:

         Mesmo a mulher, até,
por fim. Chegou-lhe lá a notícia, onde se achava, em ignota, defendida,
perfeita distância. Soube-se nua e pura. Veio sem culpa.

Numa espécie de exorcismo narrativo, Jó retira de Vilíria
as máculas do passado para que ela retorne, purificada. Até mesmo
o clássico “viveram felizes para sempre” é aqui resgatado,
na promessa de felicidade eterna. Transformados pelo ritual da palavra, tornam-se
livres e podem ser felizes:

         Três vezes
passa perto da gente a felicidade. Jó Joaquim e Vilíria retomaram-se,
e conviveram, convolados, o verdadeiro e melhor de sua útil vida.

E, o que era apenas ficção do protagonista, sugerido inclusive
pelo termo fábula, passa ao estatuto de verdade, sendo perpetuado com
todas as formalidades, lavrado como documento de fé pública: “E
pôs-se a fábula em ata
”.

Jó Joaquim ousou desprezar a verdade linear, redesenhando a sua história.
Personagem rosiana, ele seguiu os passos de seu criador, inovando, recriando.

Parte dos créditos: Tatiana Alves Soares, UFRJ

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