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Dos valores do inimigo, de Pedro Salgueiro

by Lucas Gomes

Em Dos valores do inimigo, de Pedro Salgueiro, os fatos se organizam
num enredo de estrutura simples obedecendo à ordem lógica de causa e conseqüência.
Do mesmo modo que ocorreu com a protagonista de “Fotografia”, a personagem viaja
com o amado, volta sozinha depois de dois dias, enclausura-se em um quarto nos
fundos da casa e cala-se para sempre. De acordo com o narrador, o motivo da
ruptura jamais será revelado. As lacunas existentes neste conto são menores e
dizem respeito somente aos dois dias de duração do casamento, cujo fracasso o
narrador já havia antecipado para o leitor (não só pela maneira como se conheceram,
por meio de um anúncio em revista de novela, mas também por suas vivências opostas:
ele, no mar a maior parte dos dias e ela, numa cidadezinha perdida no interior).

“Olhos de Cão” e “Rasga-Mortalha” são contos que seguem a mesma técnica narrativa
das lacunas e dos hiatos. Nos dois casos um narrador externo sabe menos que as
personagens. Em “Olhos de Cão”, o acontecimento se dilui e o espaço cede lugar a
uma atmosfera onírica e alucinante. Composto de um só parágrafo compacto, inicia-se
com a descrição de uma cena captada por uma câmera pequena e escura (o narrador
parece encontrar-se num plano superior ou por trás da câmera) que descontrolada
rasteja pelas coxias, sobe muros, telhados e focaliza pessoas que saem assustadas de
becos escuros. Pode-se dizer que duas cenas compõem a narrativa: uma noturna, em que
pessoas sorrateiras tiram velhos papéis dos bolsos e os pregam em paredes de casarões
em ruínas e outra diurna (“… afugentadas pelos primeiros raios de um sol laranja e
orvalhado”), na qual uma pequena multidão se forma em torno dos papéis disputando-os
a cotoveladas (“e as pessoas voltavam a ter sombras”). Para dar uma maior ilusão de
realidade, o autor situa o acontecimento num espaço real: as ruas do Benfica, espaço
freqüentado pelo cineasta (já falecido) Eusélio de Oliveira a quem o conto é oferecido.

Logo de início, o leitor de “Rasga-Mortalha” percebe que tempo, personagens e
objetos não se encaixam:

Sempre no início da madrugada, se observava o estacionar de carros: seus passageiros,
impecavelmente vestidos, traziam consigo estranhos objetos.
(p. 25)

E o estranhamento cresce, à proporção que ele toma conhecimento dos objetos: um antigo
arado enferrujado e sujo de barro, um pássaro enorme que tinha os pés metidos num saco
de plástico e o bico amarrado com tiras de pano. A casa também lembra os cenários das
histórias fantásticas de Théophile Gautier, nas quais o antigo e decrépito propiciam a
ocorrência do inexplicável:

A casa desabitada fazia muitos anos preservava em seus jardins galhos secos e retorcidos
sobre os muros. Na cumeeira, um ninho de rasga mortalha, de quando em vez um rufar de
asas saindo pela clarabóia.
(25)

Para completar o clima de mistério, existe uma figura sinistra: um homem alto, de cabelos
grisalhos, barba rala e olhar profético. Está tudo preparado, mas falta o fenômeno insólito
e a narrativa termina sem que o narrador descubra o que acontece dentro da casa.

Por tudo que foi exposto, podem-se considerar esses contos como narrativas de mistério.

Dos contos fantásticos

O primeiro conto fantástico dessa primeira divisão é “Invasão”, que tem, como a
maioria dos contos de mistério e fantásticos do livro, um narrador de primeira pessoa,
o mais indicado para a construção do gênero fantástico.

Tendo como espaço uma cidade grande, com suas ruas iluminadas e seus altos edifícios,
o ambiente não sugere qualquer acontecimento sinistro, embora seja madrugada, por isso
o personagem narrador caminha tranqüilamente, pensando nas coisas que, de tão
conhecidas, não são realmente notadas. Tomado por esses pensamentos ele pára em frente
a seu edifício e observa-o demoradamente. De repente, vê passar por sua janela aberta
uma silhueta magra, fica intrigado com aquela presença em sua sala de visitas e
senta-se no meio fio para pensar. Nisso percebe que as coisas familiares estão
diferentes: a cor do prédio em frente; na esquina, ao invés da farmácia, há uma
floricultura. Essas mudanças o deixam inseguro e perplexo.

O conto nos leva a refletir sobre a incerteza do real, sobre a veracidade do que vemos.

“A Passagem do Dragão”, baseado em acontecimento real – a comprovação da Teoria da
Relatividade Geral, de Albert Einstein, por pouco não se tornou apenas um exemplo do
fantástico-estranho. Logo no primeiro parágrafo, o narrador introduz o fenômeno
insólito: o horror vivido pelos habitantes de um povoado, quando, em plena tarde, o
sol tornou-se pálido e desapareceu de vez e, durante a escuridão, ouviu-se um forte
bater de asas atravessando o vilarejo. Domina todo o texto um sentimento de estranheza,
principalmente pela presença de três grupos de forasteiros, que chegaram ao lugar uma
semana antes do acontecimento, trazendo enormes caixas, das quais foram retiradas
estranhas máquinas que apontavam para o céu.

O conto termina com os estrangeiros comemorando e tentando explicar ao povo o
acontecido. Essa explicação do fato insólito caracteriza o estranho, mas a
incerteza é reintroduzida pelo comentário do narrador: “… porém não souberam
explicar de onde surgiu e para onde foi o imenso pássaro que sobrevoou a vila na
escuridão”.

Como o discurso pode desvanecer o fantástico a qualquer momento, o autor, ao
colocar a nota de roda pé explicando a origem do conto, pôs em risco o gênero.

“Brincar com armas”, conto que dá título a uma outra obra de Salgueiro, também
é um fantástico atenuado, quase um estranho, porque o narrador, após o fim da
narrativa, acrescenta um P.S. explicando por que a arma estava carregada. Um
leitor menos atento, não leva em conta a retificação, entre parênteses, de que
o morto levara dois tiros no pescoço, quando a arma só havia disparado uma vez.

“A festa” é a variação de uma história bastante conhecida: o narrador usa a
primeira pessoa do plural nós, para contar como ele e sua companheira, durante uma
viagem tiveram que ficar para o réveillon e, durante a festa, observaram algumas
pessoas, que destoava das demais, tinham caras tristes e usavam roupas fora de moda,
pareciam penetras. Ao perceberem que eram observadas por eles, foram desaparecendo.
No dia seguinte, a dona da casa mostrou-lhe um velho álbum de fotografias de seus
antepassados mortos e, para surpresa do casal, lá estavam todas aquelas pessoas
estranhas, vestidas exatamente como estavam na festa.

Em “Acontecimento”, o narrador encontra-se dentro de um ônibus, numa cidade movimentada
e quente. É nesse espaço do cotidiano que vai emergir o sobrenatural. Ele levanta a
cabeça para desatar o nó da gravata e, apesar do sol forte ofuscar-lhe a visão, vê algo
que o deixa tão aflito, que ele chega a perder a voz: “Um nó na garganta me impediu de
gritar”. A personagem reage, tenta se comunicar com os vizinhos que se mantêm
indiferentes. Utilizando o referido recurso da insuficiência de informação, o narrador
não confessa o que viu, como se tivesse medo de nomear o extranatural. Diante da
indiferença dos demais, o narrador hesita, já não tem certeza do que viu: “… e agora
eu duvidava de tudo: do ônibus que parecia irreal, das pessoas que deviam ter saído de
um sonho, desse calor infernal e daquele prenúncio de tudo o que estava para acontecer”.
A personagem tenta fugir através do sono, mas quando desperta vê que nada mudou: a
senhora gorda está se desmanchando, outros passageiros tornando-se avermelhados e ele
vê subir de seus próprios ombros uma fumaça preta. Diante do impacto da estranha realidade,
o narrador entrega-se às forças do sobrenatural. Como vemos, o narrador nega informações
essenciais ao leitor, mas o acontecimento insólito deixa conseqüências.

Dos contos realistas

Dos dezessete contos desta primeira divisão, apenas seis são realistas: “Procissão”,
“No Carnaval”, “Esquecimento”, “Asas ao Vento”, “Todo Domingo às Três ou Balada de
Consolo para Altino do Tojal” e “Pânico”. Também são realistas quase todos os contos
da última divisão, “Soluço Antigo”, com exceção de “A rua do cemitério”, cujo humor
dissipa o fantástico, pois a razão não permite que o gênero sobreviva, mas restam
alguns resquícios de incerteza, e “Jeremias ou o Vampiro da Rua das Flores”, em que
o narrador, ao longo do conto nega e confirma os fatos a respeito da personagem,
deixando o leitor confuso; no final, entretanto, ele jura ter escutado choro de
crianças ou latido de cães e a dúvida volta a rondar o leitor.

Nos contos realistas, os acontecimentos se organizam numa ordem lógica de causa e
conseqüência, sem grandes rupturas, no máximo uma volta ao passado, e estão vazados,
quase sempre, numa linguagem padrão ou coloquial, com alguns regionalismos: alpercata
de rabicho, caviloso, lamparina, boquinha da noite, a caneca de alumínio no beiço do
pote.

Na última divisão, predominam os temas relacionados à velhice, como a solidão, a
senilidade, a ambição familiar, o desamor, a morte. Vale ressaltar a capacidade
de concisão conseguida pelo autor em “Soluço Antigo”, o conto que denomina a
divisão. O narrador, nas três primeiras linhas, cria uma atmosfera fantástica
que subverte o real, e nas duas seguintes, ao transcrever a fala da empregada,
desfaz a natureza insólita do acontecimento e traz o leitor de volta à realidade
que o circunda.

Da recorrência de temas, motivos e elementos narrativos

Pode-se afirmar que a intratextualidade é uma das características marcantes do
texto de Salgueiro, seus contos mantêm uma constante relação dialógica entre si,
seja em relação ao tema, seja em relação ao espaço, ou mesmo à atitude de um personagem,
o certo é que temos a impressão de já ter lido aquela passagem. Para exemplificar
essa recorrência nos valeremos de contos da segunda e da terceira divisão da obra.

A maioria das narrativas tem como espaço cidades do interior, com sua igreja, sua
estação, sua bandinha, sua gente simples que costuma sentar embaixo de árvores depois
do almoço e na calçada à noitinha.

O conto fantástico “O Jogo de damas” apresenta um costume muito comum entre pessoas
que vivem em pequenas cidades, que não oferecem muita diversão: jogar damas. Por ser
um jogo popular que pode ser realizado em espaços abertos ou fechados e que não exige
esforço físico, esse tipo de entretenimento, assim como o gamão, tem a preferência das
pessoas mais idosas. Aliás, Salgueiro demonstra grande interesse por essa faixa etária
que é o leitmotiv da terceira divisão do livro. Em várias passagens o jogo de damas
está presente, exemplo disso são os contos “Ausência” (“O tabuleiro de damas continua
empoeirado em cima da mesinha de cabeceira”) e “Em Família” (“Há anos deixou de jogar
damas e já nem se lembrava mais das infindáveis partidas que ajudavam a vencer a
quentura da tarde”).

O trem e a estação também são motivos recorrentes, talvez por ser o meio de transporte
mais utilizado na época em que se passam as histórias. O certo é que há sempre um
personagem descendo de um trem, como em “A Viagem” que se inicia com a seguinte frase:
Dom Eugênio descia do trem, pequena mala de viagem à mão e caminhava devagarinho
pela rua empoeirada
. Em “Elefante” quem chega à cidadezinha é Gumercindo Freire:
Desde que avistou os primeiros telhados pela janela do trem, sentia-se perdido
(…)
. Estes dois contos têm como tema o retorno à cidade natal e há trechos em que
julgamos tratar-se da mesma cidade. “Madrugada” repete o motivo do trem (“Nesses dias
eu escuto, com o ouvido colado à parede, o barulho do trem chegando ao povoado”) e
descreve a mesma paisagem desolada já descrita em “A Viagem”, comparemos: “Aproximou-se
da estação, o capim cobrindo tudo” (p.48) e “A estação vazia, o capim cobrindo a
plataforma” (p.62).

Não se pode esquecer a predileção do autor por narrativas que tratam de crimes,
principalmente crimes que têm por motivo a vingança: “O olhar”, “A longa espera”,
“Elefante”, “Procissão”, “Pânico”.

Dois contos, “Pânico” e “A Rosa Encarnada”, mantêm um intenso diálogo entre si
e levam o leitor, intrigado e seduzido, a uma releitura. Neles Salgueiro mostra,
através de sua excelente técnica narrativa, como transformar um conto fantástico
em um conto estranho.

Dos valores do inimigo oferece inúmeras possibilidades de leitura, esta é apenas
uma delas, espera-se que outras venham contribuir para a compreensão da obra de Pedro
Salgueiro.

Há, em Pedro Salgueiro, um mundo escuro, mas, ao mesmo tempo, prenhe de vida, implicando,
assim, um universo em que se anuncia o grotesco, isto é, um mundo conhecido
estranhado, uma vez que composto por elementos que estão muito distante de nós,
os leitores.

Vejamos as análises dos contos “Meninos” e “Um velho”, ambos da obra Dos
valores do inimigo

MENINOS

Sentado na espreguiçadeira, o padre Heládio retira vagarosamente algum piolho
dos testículos – uma perna encolhida, a outra bem aberta e escorada num tamborete
de trava quebrada. Daqui a pouco, ele vestirá a batina, limpando o sebo das
mãos com um molambo, pegará a bicicleta e irá espantar a molecada que joga bola
no pátio da igreja, usando a porta principal como trave.

Ao longe vagueia D. Francisca Melo pelas calçadas, falando ao vento e gesticulando
muito. A criançada a percebe e não tardam os insultos:

– Chica sabão, Chica sabão.

Ela desvia sua eterna rota das calçadas e vem enxotar a cambada sem-vergonha,
sem pai nem mãe, que se afasta gritando – a bola de meia à mão, chinelos na
outra.

D. Francisca chega esbaforida à porta da igreja e só encontra o vigário, que
a custo sobe o alto da matriz, aproveitando todas as sombras para respirar fundo
e limpar o suor do rosto. Bem longe a meninada, antes de procurar outro local
para brincar, ainda grita os últimos insultos:

– Chica sabão, Chica sabão.

Mais tarde ela passará de casa em casa, informando-se de quem eram os meninos
para, em seguida, enredar aos pais deles os desaforos recebidos. Pela boca da
noite o vigário reservará um cantinho na pregação para reclamar dos moleques
que maltratam, a boladas, a porta da igreja e nem respeitam os mais velhos.

No outro dia, bem cedo, lá estará o reverendo a remexer os testículos ensebados
– pernas escanchadas no tamborete manco-, logo em seguida irá enxotar os garotos
do pátio da igreja, mas não os encontrará, vistos que já foram perseguidos por
D. Francisca; aí então ele destilará alguns conselhos sobre como agir nessas
ocasiões, indo atrás dos pais e relatando o sucedido… e, depois, pela boquinha
da noite, reservará um canto da missa para reclamar dos meninos, que destroem
a igreja e sequer respeitam os mais velhos.
(“Meninos”, p.105-106)

Esse conto “Meninos”, além espelhar o grotesco, aponta, também, a influência
do contista Moreira Campos sobre a escritura de Pedro Salgueiro.

Dos recursos estilísticos mais recorrentes em Moreira Campos, Pedro Salgueiro
serve-se aqui da técnica da circularidade, pois, na construção dos momentos
finais do conto, reúne, no último parágrafo, fragmentos colhidos ao longo de
todo o texto, reforçando uma idéia de fatalidade, de as coisas sempre retornam
ao mesmo lugar.

Há, também, como em geral nos contos de Dos valores do inimigo, a captação
dos elementos do real a partir de um rigoroso senso de observação, daí a valorização
dos detalhes: “a perna encolhida, a outra bem aberta”; “um tamborete de trava
quebrada”; “o suor do rosto”; “os testículos ensebados”.

Desde a abertura, o conto assinala uma certa divisão temporal que marca e constitui
a realidade das duas personagens – o padre Heládio e D. Francisca: “Sentado
na espreguiçadeira, o padre Heládio retira vagarosamente algum piolho dos testículos…
[…] Daqui a pouco ele vestirá a batina… […] D. Francisca chega esbaforida
à porta da igreja… […] Mais tarde ela passará de casa em casa… […] No
outro dia, bem cedo, lá estará o reverendo a remexer os testículos ensebados…
[…]”

A partir desse fragmento, vêem-se os tempos que organizam os acontecimentos:
o presente (momento em que as personagens realizam suas ações ); e futuro (momento
que essas mesmas ações outra vez ocorrerão), sugerindo, assim, imobilidade,
repetição, tédio, ausência de perspectiva.

Desse modo, o futuro dessas personagens consiste em uma repetição de seu próprio
presente, já então passado.

A ação – ainda que mínima – se desenrola, ao que tudo indica, numa cidade do
interior, situada no agreste, e que se anuncia ao leitor por elementos emblemáticos:
o vigário já quase caduco, a louca Francisca, o espaço referencial da igreja,
o fato de que tanto o padre quanto a louca conhecem os pais dos meninos.

Há uma harmonia entre a pasmaceira do lugar e a “imobilidade” das personagens.

O conto, enquanto tendência moderna, valoriza a personagem em detrimento da
ação; assim, a ação exterior só tem importância na medida em que revela o mundo
interior da personagem, uma vez que esta se expressa em suas contradições, angústias,
insatisfações, desejos, interrogações.

Ao aproximar-se de um quadro, o conto dilui, às vezes ao extremo, a sua trama,
e as ações deixam de ser o centro do texto. Por esse mesmo motivo, as personagens
têm a brevidade dessa descrição, são fragmentadas, e são poucas as informações
de aspectos relativas a seus aspectos físicos.

UM VELHO

Segurou o corrimão com dedos trêmulos, os olhos entre serenos e assustados,
fez um esforço enorme e subiu no ônibus pela porta da frente. Cumprimentou o
motorista sem obter resposta, levando muito tempo para atravessar o espaço desde
os degraus até as primeiras cadeiras.

Tinha um ar de marinheiro de muitas viagens; os olhos acesos procuravam, brilhando
quando encontravam outros bem mais jovens; selecionou uns tantos e ficou à espreita
– um caçador analisando a presa. Segurou no suporte da cadeira e suspirou fundo,
disfarçando em um assovio baixo, tentando se acalmar – os olhos, mais acesos,
vasculhavam; mirou um par deles, bem novos, quase infantis; aguardou por instinto,
paciente… e a moça, pensando entender o olhar, retribuiu com uma simpatia
que puxou um sorriso no canto do lábio. O velho renasceu, a respiração dobrou,
a pele do pescoço ficou avermelhada que nem um galo de briga. As idéias rodopiavam
na cabeça, no longo espaço entre o sorriso da moça e as primeiras palavras.

– O senhor quer sentar? Sente-se – e, sem dar tempo à resposta, foi levantando-se.

O moço antigo sentiu o golpe, murchando; as idéias rodopiavam mais e mais na
cabeça; pigarreou tentando ganhar tempo, e a boca, sem o seu consentimento,
respostou:

– Não… não, obrigado! – Mas o corpo já vencido o levava à cadeira, ante a
insistência da moça que alegava notar seu cansaço, e ainda por cima o segurou
pelo ombro na ajuda inesperada.

O homem murchou de vez, encolheu os ombros; as mãos – que, até o sorriso, se
mantinham firmes – retomaram o ligeiro tremor, o pescoço novamente enrugou-se,
e ele então sentiu uma paz tranqüila e triste… como nunca havia sentido na
vida.
(“Um velho”, p.112 – 113)

Sobretudo, inquietante essa narrativa. Enquanto ação, há, tão-somente, os movimentos
de um “velho”, em um ônibus, dos “degraus até as primeiras cadeiras”. A princípio
recusa a ajuda de uma “moça” que lhe oferece um lugar, mas, “o corpo já vencido
o levava à cadeira”, onde, sentado, sente “uma paz tranqüila e triste… como
nunca havia sentido na vida”.

A narrativa se trata aparentemente da degeneração oriunda da velhice: a precariedade
dos movimentos, a dificuldade em ordenar os pensamentos, o cansaço, a discrepância
entre o corpo e o espírito: o “velho” não deseja a ajuda, mas o corpo já não
lhe obedece a vontade.

Uma leitura vertical, entretanto, abre caminhos a uma série de especulações.
Em primeiro lugar, a personagem, o “velho”, age como um voyeur: “os olhos acesos
procuravam…”; “os olhos, mais acesos, vasculhavam…”; depois, a metáfora
“um caçador analisando a presa”, bem como as suas reações quando deparou “um
par deles, (olhos) bem novos, quase infantis”, – reações como: suspirar fundo;
aguardar, por instinto, pacientemente; o avermelhar-se da pele quando “a moça,
pensando entender o olhar, retribuiu com uma simpatia…” – tudo isso pode apontar
a possibilidade de tratar-se de um psicopata sexual. Observe-se a sutileza do
símile: “a pele do pescoço ficou avermelhada que nem um galo de briga”, pois
alude a uma peleja, ao papel de predador.

O olhar surge, num primeiro momento, como o sentido primordial; e poderoso,
pois corrosivo, capaz de converter o sujeito em coisa – concupiscente, sobretudo.

É substancial o recurso da estilística da repetição: a reiteração das “idéias”
que “rodopiavam na cabeça” serve de ponta entre o presente e o passado: na primeira
aparição dessa passagem, as idéias rodopiam “no longo espaço entre o sorriso
da moça e as primeiras palavras”; por fim, tais idéias aparecem quando ele,
o “velho”, recupera – ou tenta fazê-lo – o “moço antigo” e sente “o golpe, murchando”.

A expressão “moço antigo” é a imagem-chave da composição da personagem, pois,
a partir desses opostos, é possível compô-la no passado, quando, vigoroso, entrava
nos ônibus, selecionava a vítima e se punha à espreita, até que esta, “pensando
entender o olhar”, retribuía-lhe a gentileza, para, finalmente, converter-se
em presa.

Até o sorriso da “moça”, as mãos do velho “se mantinham firmes”, pois ele entrara
no ônibus carregando um caçador adormecido.

Assim, o sorriso da “moça”, ao mesmo tempo em que reconstrói a antiga relação
caçador x presa, inscreve no “velho” a sua realidade atual, por isso ele “murchou
de vez”, encolhendo os ombros – num gesto de resignação.

A “paz tranqüila e triste… como nunca havia sentido na vida” talvez faça alusão
às torturas que tomam conta de um psicopata sexual após o gozo de exterminar sua
vítima e o horror de fazê-lo. Tal passagem constitui um ritual; por isso, só quando
mais uma vez apaziguado (há de encontrar um motivo – quase sempre de natureza
mística – que lhe justifique o comportamento), voltará a agir.

Texto parcial: Diário do
Nordeste

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