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Educação domiciliar

by Lucas Gomes

A educação domiciliar, que começa a ganhar corpo entre famílias brasileiras, tem como inspiração práticas comuns nos Estados Unidos. Na interpretação de especialistas, a Constituição Federal não permite sua adoção no Brasil

A escola não faz parte da rotina do menino Lucas, 9 anos, e de sua irmã Júlia, 8. As crianças, moradoras de Maringá, noroeste paranaense, deixaram de freqüentar o ensino regular há cerca de um ano para estudar em casa, onde recebem aulas de catecismo, língua portuguesa, geografia e ciências. O pai, Luiz Carlos Faria da Silva, pensava em recorrer à Justiça para ratificar o direito ao ensino domiciliar, já que está decidido a afastar os filhos da escola formal, “um caminho deletério de corrupção moral e intelectual”. Agora, amadurece a idéia de deixar o ônus de uma atitude a terceiros, para que possa manter os filhos longe da escola e, ao lado da esposa, continuar a cuidar de sua instrução, sem despertar os representantes do Estado para que requeiram a matrícula de ambos no ensino regular. Faria da Silva teme enfrentar complicações com a Justiça, como aconteceu com a família Nunes, no interior de Minas Gerais. Moradores de Timóteo, a 216 km de Belo Horizonte, o casal Cléber de Andrade Nunes e Bernardeth Nunes protagoniza o mais novo capítulo do embate que, de tempos em tempos, confronta a Justiça e os adeptos do homeschooling, o ensino domiciliar. Desde o ano passado, os Nunes respondem a dois processos – um criminal, por abandono intelectual; outro cível, por infringir o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que já resultou em uma condenação. O casal recorreu e a briga promete se arrastar na Justiça. Enquanto isso, os filhos Davi, 15 anos, e Jônatas, 14, recebem aulas em casa. Há mais de dois anos não vão à escola.

Os pais reclamam a liberdade de escolher; o Estado, o dever de assegurar a educação dos menores e fazer valer os preceitos constitucionais.

“Queremos garantir o direito de educar e instruir nossos filhos”, diz Faria da Silva, doutor em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). “Não aceitamos que o Estado passe por cima da família e decida como educar nossos filhos, inclusive, confrontando os princípios e os fundamentos da moral na qual os educamos”, argumenta.

Soa óbvio que lugar de criança é na escola, mas há famílias que se ancoram em convicções morais, religiosas e, principalmente, no fracasso do sistema oficial de ensino, para pleitear o direito de ensinar em casa. Casos como os da família Nunes e da família Silva não são isolados. É de se prever outros tantos Brasil afora, a maior parte na clandestinidade.

No bairro de Santo Antônio, em Chapecó/SC, um casal de missionários repete os mesmos argumentos e inicia em casa a instrução do filho mais velho, sem intenção alguma de integrá-lo ao ensino regular. A experiên­cia é descrita no estudo acadêmico Educação domiciliar: uma visão geral do homeschooling no Brasil, desenvolvido por Fábio Stopa Schebella e apresentado à Universidade Comunitária Regional de Chapecó.

Schebella registra que o pai da família pesquisada também recebeu instrução em casa, equivalente ao ensino médio. É nascido nos Estados Unidos, embora tenha vivido boa parte do tempo no Brasil, em especial no Rio Grande do Sul, nas cidades de Nonoai, Gramados dos Loureiros e na área indígena de Bananeiras, onde sua família, também missionária, realizou trabalho de caráter religioso entre os índios kaingang. É descrito pelo pesquisador como bacharel em missiologia (estudo sobre a missão de uma determinada igreja), título conquistado em um seminário não especificado, que não requer comprovação de escolarização prévia.

O estudo analisa ainda “outros sujeitos de Chapecó e região que foram instruídos por meio do ensino em casa”, e aponta que também tiveram em sua formação forte influência do modelo norte-americano. “Como se percebe, o único empecilho decorrente do homeschooling para as pessoas pesquisadas se restringe à falta de certificação por parte do Estado brasileiro”, conclui Schebella.

Além desses casos, há aqueles em que pais de crianças com necessidades especiais, por exemplo, ao sentir que seus filhos não são adequadamente atendidos por professores que, na maioria das vezes, não têm preparo específico para lidar com suas deficiências, preferem eles próprios assumir a tarefa.

Direito ou arbítrio

Mas, afinal, os pais são mesmo obrigados a matricular os filhos na escola ou têm a opção de eles próprios serem os responsáveis pela educação e instrução dos menores?

“Não é reconhecida essa possibilidade de os próprios pais ensinarem os filhos em casa. O que a lei quer é a matrícula no ensino formal”, sustenta Murilo Digiácomo, coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias da Criança e do Adolescente do Paraná, para quem o Estado tem o dever de intervir nas situações em que a criança ou o adolescente estão fora da escola. Para o representante do Ministério Público do Paraná, os pais infringiram princípios constitucionais, contrariaram o Código Penal, feriram o ECA, o Estatuto da Criança e do Adolescente, e ainda a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (9394/96).

O debate é recorrente. Há aqueles que defendem com veemência a idéia do ensino domiciliar e outros tantos, ainda em maior número, rechaçam a proposta.


A família Nunes, de
Timóteo, Minas Gerais:
“anseio legal para a
legitimação do ensino
domiciliar”

Em 2001, a polêmica chegou ao Superior Tribunal de Justiça, onde Carlos de Vilhena Coelho e Márcia Vilhena Coelho impetraram um mandado de segurança para garantir o direito de ensinar em casa os três filhos mais velhos, à época com 9, 8 e 6 anos de idade. As crianças, apesar de formalmente matriculadas no Colégio Imaculada Conceição, de Anápolis/GO, nunca haviam freqüentado regularmente a escola. Recebiam instrução em casa, dos pais, indo ao colégio apenas para a entrega de trabalhos ou para a realização de provas. Com o instrumento jurídico, Carlos e Márcia pretendiam garantir aos filhos o reconhecimento do ensino domiciliar e a emissão de um diploma quando concluíssem mais tarde o ensino fundamental.

“A família concluiu que chegou a hora de buscar o reconhecimento estatal dessa modalidade de educação”, registra a petição, assinada pelo representante jurídico do casal, o ex-procurador-geral da República, Aristides Junqueira.

Perderam por seis votos a dois. Seis dos oito ministros do Supremo Tribunal de Justiça não reconheceram a validade dos argumentos da defesa, que questionou o Parecer 34/2000 do Conselho Nacional de Educação, evocando a Declaração Universal dos Direitos Humanos e a própria Constituição brasileira.

Ao atacar a visão do CNE, o pedido do mandado de segurança impetrado pelos Vilhena queixava-se de cerceamento. “(…) o Estado brasileiro deixaria de ser democrático para ser absolutista, totalitário, posto que desrespeita a liberdade de educação: ou a escola ou a escola, mas sempre a escola!”. Conclui que o mesmo parecer ” feriu-lhes o direito líquido e certo de, na qualidade de pais, educarem em casa seus filhos menores, afrontando, assim, os direitos humanos e as normas constitucionais brasileiras”.

Valorização curricular


Lançado em 2006 nos
Estados Unidos, o
documentário Acampamento
de Jesus (foto),
candidato ao Oscar no ano
passado, mostra uma
comunidade religiosa em
Dakota do Norte, nos
Estados Unidos. No filme,
uma mãe que educa o filho
em casa diz: “Não vou
mandar meu filho para a
escola. Lá eles ensinam
mentiras como aquecimento
global e evolucionismo”.

Outra base da argumentação dos Vilhena Coelho apoiava-se no desempenho escolar das crianças, seguindo um discurso amplamente difundido pelos adeptos do ensino em casa. Sem escolarização anterior, tiveram de ser avaliados antes de formalizar a matrícula, como prevê a LDB. O mais velho foi classificado na 5ª série antes de ter completado 10 anos; a menina obteve classificação na 4ª antes dos 9 anos completos, enquanto o caçula foi inscrito na 1ª série aos 6 anos, quando ainda era facultativa a matrícula no ensino regular. E, ao longo do período letivo, demonstraram aproveitamento acima da média.

“Como poderá atestar a mencionada unidade escolar, os resultados obtidos nas disciplinas tidas por obrigatórias foram bastante satisfatórios, inserindo-os entre os primeiros lugares de suas turmas”, registra o instrumento jurídico.

O mesmo argumento é usado agora pela família Nunes. Para provar que não existe o abandono inte­lec­tual, conforme previsto no artigo 246 do Código Penal, os garotos Davi e Jônatas prestaram no ano passado o vestibular de Direito para uma faculdade particular, a Fadipa, em Ipatinga. Foram aprovados, respectivamente, na 7ª e 13ª colocações. O resultado do exame serve agora como peça de defesa no processo criminal que transita no 1º Tribunal de Justiça Especial de Minas Gerais.

Cléber e Bernardeth orgulham-se do desempenho dos filhos. O pai, designer gráfico, segue com os filhos os princípios do trivium (retórica, dialética e gramática) e quadrivium (aritmética, geometria, astronomia e música), que datam do século 13, além do estudo de duas línguas estrangeiras – inglês e hebraico.

Contra o ensino regular, os Nunes esbanjam argumentos. No recurso que movem na Justiça, contra a condenação em primeira instância no processo cível, lembram a “deficiência crônica” da escola brasileira e, na intenção de comprovar sua tese, recorrem ao exame promovido em 2000 pelo Pisa (Programa Internacional de Avaliação de Alunos), quando o Brasil amargou o último lugar no ranking de 32 países.

A defesa dos Nunes também critica os Parâmetros Curriculares Nacionais, em particular o volume 10 (Pluralidade Cultural e Orientação Sexual), dedicado ao ensino fundamental (Ministério da Educação, Brasília, 1997), sublinhando que “(….) A bibliografia desse currículo contém livros que aprovam a masturbação, o sexo oral e anal, o incesto e o sexo antes do casamento”. E, por essas e outras, pleiteiam a autorização legal para a prática do chamado homeschooling.

“Há um anseio legal para a legitimação desse método educacional”, sustenta o recurso.

Consultado sobre a possibilidade de ter negado o direito ao ensino domiciliar, Cléber considera a hipótese de deixar o país. Seguiria, então, os passos do pastor evangélico Josué Jehoshua Bueno, hoje radicado no Paraguai, também praticante do ensino domiciliar.

Pai de nove filhos, Bueno e a esposa foram denunciados ao Ministério Público em maio de 2005 pela disciplina física imposta às crianças e por mantê-las completamente apartadas da escola formal, o que desencadeou uma ação civil pública. Ao final do processo, a Justiça ordenou a matrícula escolar e exigiu acompanhamento psicológico para toda a família, prevendo sérias sanções caso descumprissem a decisão.

“Ameaçados da perda da guarda de nossos filhos, não nos restou outra opção a não ser sair do país”, diz Bueno, que desde criança teve contatos com missionários americanos que trabalhavam na área do rio Amazonas. Na juventude, foi para os Estados Unidos, “reforçando os contatos feitos desde a infância”. “Quando o Estado se coloca como autoridade maior na educação dos filhos, ameaçando a própria integridade familiar, é sinal de que é o Estado que precisa ser reformado e destituído de poderes, e não a família”.

Já a a presidente da Câmara de Educação Básica, Clélia Brandão Alvarenga Craveiro, crê que o convívio escolar tem um papel importantíssimo na vida da criança e do adolescente. “Vivemos um momento de transição, de redefinição, inclusive, de valores, mas tirar a criança e o jovem da escola não é solução. A sociedade norte-americana, onde os direitos individuais são altamente privilegiados, sofre agressões violentíssimas nas escolas. Quem sabe até que ponto os jovens, por ficarem fora da escola no período da infância, não se tornam fundamentalistas e com enorme dificuldade de conviver com as diferenças?”, pergunta.

Sob Véu Comunitário

Ao final da petição em defesa dos Nunes, Márcia Vilhena e seu filho mais velho figuram como testemunhas, seis anos depois de terem eles próprios protagonizado a ação no STJ. A atitude dos Vilhena Coelho parece ser marca registrada dos adeptos do ensino domiciliar. Também eles, em 2001, receberam manifestações de apoio. “Por favor, telefonem e escrevam para a embaixada brasileira com esta mensagem”, apelava a HSLDA (Associação de Defesa Legal do Ensino Domiciliar, na tradução em português), introduzindo um documento que informava que “Famílias inocentes praticantes do ensino domiciliar, como a de Carlos Vilhena, estão sendo perseguidas no Brasil”. O manifesto a favor do ensino domiciliar foi também dirigido, nominalmente, a cada um dos ministros do STJ.

Natural que aqueles que partilham a mesma visão queiram amparar-se mutuamente em defesa do propósito comum. No blog Escola em Casa, Júlio Severo cumpre esse papel a favor do ensino domiciliar. Traz de tudo um pouco: recomenda livros didáticos, escreve artigos difundindo a prática do homeschooling e ainda se dedica à tradução e adaptação de artigos afins, extraídos de periódicos americanos. Um deles, de 2006, exortava os pais da Califórnia a “rejeitar o ambiente pró-homossexualismo das escolas públicas” para educá-los em casa, repercutindo o depoimento de Charles Lowers, diretor-executivo da organização pró-família Considering Homeschool. Para os pais interessados na prática do ensino em casa, faz um alerta via internet: “Quando oculta de forma adequada, não há perigos, mas muitas vezes um parente, um vizinho ou um indivíduo desconhecido intervêm para delatar ao Conselho Tutelar, que tem lidado com todos os casos de educação em casa no Brasil”.

Constituição Federal (1988), Título VIII, Capítulo III, seção I
Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.

Constituição Federal (1988), Título VIII, Capítulo VII
Da família, da criança, do adolescente e do idoso
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

Fonte: Revista Educação

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