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Elenco de cronistas modernos (Parte 3), de Rachel de Queiroz

by Lucas Gomes

Elenco de Cronistas Modernos

é uma obra que reúne crônicas de Carlos Drummond de Andrade, Clarice Lispector,
Fernando Sabino, Manuel Bandeira, Paulo Mendes Campos, Rachel de Queiroz e Rubem Braga. Foram selecionadas dez
textos de cada autor, além de breve biografia desses autores.

Crônicas são sempre curtas, tematizando os acontecimentos triviais
da vida. Pode-se observar nestas setenta crônicas o predomínio
do foco narrativo em primeira pessoa, um tom confessional, uma linguagem leve,
o humor e as reminiscências.

Nesta parte veremos

RACHEL DE QUEIROZ

Para Rachel de Queiroz, a crônica é o gênero
literário mais confessional do mundo
e diz: tudo que comento, que canto e que exploro, foi tirado do meu dia-a-dia: o menino
que me trouxe uma flor… as memórias do Ceará… e os fatos políticos… também os sentimentos, as angústias e esperanças, alvoroços
do coração, saudades, perdas, promessas e alegrias…
. Para ela, compete ao leitor descobrir tudo isto em seus textos.

Crônicas

1. Os revoltosos – O texto refere-se à Coluna Prestes,
sua marcha pelo interior e o romantismo gerado entre as moças pela fama
dos revoltosos; menciona a ação do Governo que os combate armando os cangaceiros, como Lampião, chamados de “provisórios”.

Íntegra:

Isto é uma história velha, passou-se por 1926. O país
andava numa situação política tão complicada quanto
a de agora. Não, minto. Tanto não. Era um complicado diferente,
mais visível mais à flor da pele. Havia gente de armas na mão,
contudo não era assim por conflito pessoal e ideológico irredutível
como agora. Era mais uma questão de princípio, de interpretação
dentro de uma mesma ideologia – todos se diziam igualmente democráticos,
nenhum dos combates disputavam sobre questão social (e o que mais tarde
optou pelo marxismo – L. C. Prestes, saiu da briga e foi para a Rússia).
Ademais, o povo em geral, embora não se pronunciasse abertamente, por
medo de represália do Governo ou descrença nas possibilidades
da luta, o povo de coração estava com os chamados “revoltosos”,
seduzido pela legenda e bravura dos jovens tenentes – os feitos dos dois
de 5 de Julho, a imolação dos 18 de Copacabana.
Acima de tudo, aquela marcha épica da Coluna Prestes pelos fundões
ignorados do Brasil, faltava às imaginações e suscitava
os mais ardentes entusiasmos. Creio mesmo que feito nenhum, na história
nacional, tocara tanto o coração do povo. Os moços “generais
e coronéis” da Coluna, que nos retratos recortados de revista e
jornais se mostravam tão belos e românticos, desencadeavam paixões
nas moças e meninas. Ah, quanto peito clássico, ascético
na sua barba negra, do chamado “Cavaleiro da Esperança!”.
E os outros todos tinham o glamour da mocidade e embelezá-los, sendo
além disso na maioria solteiros, conquistáveis, disponíveis!
Não havia moça que não sonhasse; meninas do interior, então,
que não dispunham dos astros de cima, concentravam em Juarez, Prestes,
Siqueira Campos, os sentimentos que levavam as outras aos Valentinos e aos John Barrymore.
E enquanto a Coluna Prestes marcava seu nome no mapa com tinta indelével,
o Governo tratava de a combater como podia. Uma das formas de combate que descobriu
foi armar cangaceiros constituindo os bandos em unidades de emergência,
os famosos “provisórios”. Um desses “oficiais”
defensores da legalidade era o Capitão, Virgulino Ferreira, o Lampião.
Como é dever, enorme era a inquietação entre a gente do
interior. Os legalistas tinham medo dos revoltosos, os revoltosos tinham medo
das tropas legais, e todos juntos tinham medo dos bandidos.
Mês de julho no sertão, fins de águas. O mato já
zarolho, enrolando as folhas. O céu muito limpo, o sol muito forte, começava
o verão. Na casa grande da fazenda, a família se sentava à
mesa do almoço. O pai já trinchava o lombo do carneiro, os meninos
discutiam entre si, a mocinha olhava, através do janelão, os pintos
que ciscavam o curral. Nisso aparece na porta o vaqueiro, todo encourado, respirando
forte; pede desculpas, vendo a família à mesa, mais diz que precisa
falar urgente com o patrão. O patrão sai com o vaqueiro para o
alpendre. Daí a pouco volta, de beiço branco – evidentemente
a comunicação foi grave. Vendo a emoção do pai,
os filhos lhe prestam uma homenagem rara: escutam-no com atenção
reverente. Ele joga sobre a mesa o guardanapo que levara nas mãos e se dirige à mulher:
– Não precisa se afligir, mas a notícia é séria.
O Pedro veio avisar que uma coluna de revoltosos está chegando aqui.
– Jesus! – e a dona soltou da cadeira, assustadíssima. Enquanto
isso o vaqueiro explicava que estava campeando uns garrotes pelos lados do Riacho
da Pedra, quando avistou aquela nuvem de poeira em cima da estrada. Foi ver
– e era um bando de revoltosos, enorme, enchendo o caminho todo. Cavalo
de não acabar mais, e parece até que viu mulheres e meninos. Virou o cavalo, veio correndo nos avisar.
Osd meninos começaram a dar pulos de alegria:
– é a Coluna Prestes! é o Prestes, é o Prestes!
E a mocinha:
– E o Juarez, e os outros…
Vamos conhecer todos! Ante aquele alvoroço, o pai se voltou indignado:
– Vocês são uns idiotas. Já se lembraram que a primeira
coisa que os revoltosos fazem numa fazenda é requisitar tudo –
gado, ovelhas, mantimentos – raspam completamente. Até dinheiro. E vocês nessa alegria cretina…
O pai realmente estava aterrado com aproximação da coluna. Muito
bom é a gente achar bonito revoltoso, mas muito diferente é ver
a soldadesca matar a tiro as vacas no curral, carnear os reprodutores de raça,
saquear os paióis, como diz que eles faziam por todo lugar onde andavam.
Um dos filhos contraditou: –
– Mas papai, eles dão recibo. O comandante assina a requisição
para ser pago logo depois da vitória.
O pai se inflamou: –
– Vitória? Que vitória? Se eles esperassem vitória, andavam
aí nesses ziguezagues , por Goiás e Bahia? Se eles tivessem força
para vencer, procuravam tomar cidades. O que eles acabam é se internando
aí pela Bolívia ou Paraguai!
E voltando-se para o vaqueiro que dava sinais de inquietação,
o patrão ordenou que fosse levar as melhores vacas de leite para manga escondida, atrás de lagos:
– E não se esqueça dos bezerros, senão eles ficam berrando e descobrem tudo…
A mãe de repente se lembrou:
– Minhas jóias!
E, como tinha feito nos tempos da revolução do Juazeiro, quando
a casa fora cercada por bandidos, despejou a gaveta das jóias num guardanapo,
fez uma trouxa, que foi esconder entre os coentros do canteiro, no quintal.
Quando ela voltava viu que o filho mais velho, muito branco, dizia para o pai
que, se os revoltosos o aceitassem, iria embora com eles. E a mocinha emocionadíssima
– parecia que estava num teatro! – correu a abraçar o irmão.
Mas o pai não se enternecia com esses heroísmos, ficava era ainda mais furioso.
– Se for, é sem o meu consentimento. Não lhe dou cavalo, nem sela
nem um tostão. Só leva a roupa do corpo – isso mesmo, para não sair nu.
O filho segundo gritou do seu canto:
– Cavalo, ao menos papai tem que dar! Se não der, eles requisitam!
A mão foi rezar no oratório. A filha mocinha entrou sorrateira
no quarto e foi mudar o vestido. Passou o pente no cabelo e voou ao alpendre,
para assistir à chegada. O coração lhe batia como um coelho
assustado dentro do peito, querendo fugir. E foi ela a primeira a gritar:
– Lá vem vindo!
Corram todos para fora. Só a mãe ficou no oratório; e a
negra velha, ama dos meninos, caiu de joelhos no corredor, clamando:
– Valei-nos S. Francisco do Canindé! Nossa Senhora do Perpétuo
Socorro, para quem nada é impossível…
Agora os vultos a cavalo se delineavam. Vinham sem formação marcial,
mulheres misturadas com os homens, crianças na lua da sela.
O filho mais velho, que passara a mão no binóculo antigo, firmou os vidros, comentou decepcionado:
– Parece mais um bando de ciganos…
Era um bando de ciganos. Formado por vários grupos federados, unidos
pelo medo da guerra, fugindo à frente dos temidos “batalhões provisórios”.
Ciganos, coitados, que nunca entenderam – eles sempre tão enxotados,
tão escorraçados – por que, daquela vez, o fazendeiro mandou
matar para eles um carneiro gordo e ainda deu um quarto de farinha para o pirão.
O irmão herói pegou no cavalo e na espingarda e disse que saía
para uma caçada, longe, de onde só voltou daí três
dias. O segundo rogava praga nos ciganos. Mas foi a mocinha quem mais custou
a esquecer o “feliz engano” – diziam o pai e a mãe.
Ela, porém, teimava em dizer a amarga decepção.

2. Casa de farinha – Tom de veracidade, estilo descritivo-narrativo.
Texto passa a uma reflexão a respeito da vida miserável dos trabalhadores.
Alguns dados colocados no texto lembram cenas do romance O Quinze.

3. Rapadura – Crônica de humor. Uma narrativa bem humorada sobre o adultério.

Íntegra:

Outro dia foi presa uma senhora porque numa banca de mercado, em pleno
sábado de feira, agrediu a rival com uma rapadura, dando-lhe uma tijolada
que exigiu doze pontos no couro cabeludo. Rapadura é arma perigosa, um
paralelepípedo de doce bruto, pesado e com arestas. Batendo de quina pode até matar.
A banca de rapadura era o local de comércio do próprio marido
da agressora. Vinha ela descuidosa, passando ali por acaso, e de repente depara
com o quadro ofensivo: o marido em idílio público com a dalila,
a messalina, a loba do seu lar! Ela debruçada ao balcão e ele,
de dentro, segurava o queixo da sereia e lhe cochichava no ouvido. O monte de
rapaduras estava ao lado. Foi só passar a mão na rapadura de cima
e virá-la de quina, para castigar mesmo, no pé do ouvido da outra.
A agredida se pôs a gritar, com a cara coberta de sangue, e o infiel asperamente
ralhou: “Cala a boca, mulher, senão aparece a polícia”.
Mas avisou tarde, porque a polícia já vinha na pessoa de um cabo
a quem o idílio adúltero também repugnara, pois de há
muito que ele, cabo, suspirava pelos favores da destruidora de lares. Debalde
lhe fizera serenatas, com uma radiola cheia de discos do Roberto Carlos; e ela
até lhe atirara um sapato pela janela, certa vez em que ele encostara
a máquina cantante à rótula, tocando aquela música
em que RC declara à amada : “Você vai aprender a ser gente!”
– Quem vai aprender é a mãe, gritara a julieta ofendida.
Mas o cabo apanhou o pé de sapato como se fosse o chapim da Borralheira,
foi na loja do Geraldo e escolheu a sandalinha mais mimosa que tinha lá,
com tiras prateadas e flor de contas no peito do pé. Entregou-a com um
bilhete: “Recebi a medida e lhe mando a encomenda”.
A bela pagou com um sorriso. Mas continuou com o homem das rapaduras, que tinha
o que gastar com ela. Cabo arranchado mal ganha para o cigarro.
Agora porém tinha o cabo a sua oportunidade. Mandou a amada para o Samdu,
num jipe, e bradou esteje preso para os mais.
Na delegacia a agressora já vinha muito unida ao marido (que a tratava
até de meu bem) e declarou à autoridade que de nada se lembrava.
Só sabia que vinha fazer umas compras, e passando pela banca de rapadura,
viu aquela piranha com os dentes na cara do marido – marido de padre e juiz!
– Sentira um escurecimento de vista – e aí não sabia mais de nada.
O delegado, naturalmente, punia pelos direitos de família legítima;
e ia passando ao marido, para encerrar perfunctoriamente o caso, quando de súbito
aparece a sogra, avisada às pressas. Da rua, a velha vinha gritando.
Já sabia que aquilo ia acabar mal, minha filha está farta de sofrer,
o sem vergonha do marido não tem rapariga na rua do Baturité que
ele não gaste com ela, minha filha devia mesmo era ter lascado a cabeça
da vagabunda. E ele ainda bate na pobrezinha, bate de correia, a vizinhança toda sabe!
Aí a mulher do marido interrompeu agastada: “Minha mãe cale
sua boca, que o caso é outro. Ninguém está querendo saber
se ele me bate. E se bate, bate no que é dele”.
A sogra engasgou-se com a ingratidão. Desengasgando ia gritando “mal
agradecida!”, mas nesse ínterim o delegado se levantara e pedira
silêncio. E explicou que o adultério é a peçonha
dos lares; embora fosse errado apelar para a violência compreendia-se
que a senhora no desvario da privação de sentidos e inteligência,
agredisse a rival. Mas afinal não houvera morte, nem queixa registrada,
o sangue era pouco, cada um fosse para casa e não pecasse mais. Falou, estava falado.
O cabo correu ao Samdu, onde lhe foi fácil fazer entender à pecadora
que não há como a proteção das armas para uma frágil dama delicada.
O marido infiel levou a mulher para casa – conta a vizinhança que lhe
deu uma surra para ela deixar de ser valente. E depois foram muito felizes.

4. Marmota – Narração em primeira pessoa. Trata-se
do imaginário popular, causos que vão sendo contados e tomam ares de verdade.

Íntegra:

Aqui ninguém duvida de que marmota existe. Quase todo o mundo já
viu. De noite, nas conversas do terreiro, é raro quem não tenha
seu caso a contar. Marmota não é bem fantasma, pode ser alma do
outro mundo, ou é uma aparência, uma coisa do mato, quem sabe?
às vezes é um bicho. Em geral é um vulto; e também
um ruído, uma chama. Aparece de noite ou de dia.
Todo mundo encara as marmotas como realidades do cotidiano, que fazem um medo
desgraçado, mas com as quais se tem que contar. E há delas passageiras,
como há outras muito antigas. No caminho de chegada à fazenda
de minha irmã, no Choró, existe uma pedra grande, escura, bem
na descida de um alto. O povo a chama “Pedra do Bicho”, porque ali
costuma aparecer uma marmota; e já faz mais de cem anos que ela se mostra.
Milhares de pessoas já a encontraram. Pode ser do tamanho de um porco,
ou do tamanho de um cavalo, mas é sempre preta e com uma barriga mole,
se arrastando. às vezes se encontra cascavel morta junto da pedra, às
vezes um preá. é o bicho que mata. Alguns falam que há
muitos anos apareceu ali uma ossada de gente, ainda com as carnes. Engraçado,
nesses anos todos nunca mudaram o caminho.
No corte da estrada de ferro, na saída da lagoa da Carnaúba, compadre
Chico Barbosa vinha uma noite com o seu filho Eliseu e de repente lhes surgiu
à frente aquele vulto preto, de andar arrastado, como um bicho grande
e disforme, tomando o caminho. Eles desviaram à esquerda, o bicho também,
desviaram à direita, o bicho também bandeou. Chico trazia um facão,
brandiu o ferro, a marmota nem se importou. Riscaram um fósforo, sacudiram
em cima, o bicho nada. Afinal resolveram fechar os olhos e o pai esgrimindo
com o facão, o filho açoitando o ar com uma vara, correram em
frente, com bicho e tudo. Não sabem como atravessaram nem como chegaram
em casa. Mas ainda hoje ficam com as carnes tremendo quando se lembram.
Pedro Ferreira vinha de uma noitada de jogo, sozinho, pela meia-noite. Eis que
numa vereda lhe apareceu a marmota – alta, de braços abertos, no sistema
de uma pessoa. Ele trazia um pau grosso na mão, plantou o pau no bicho,
facheou o pau todo, a visagem não se espantou. Pedro sentiu que o cabelo
lhe crescia na cara, na nuca. Sentou-se no chão, ficou de olhos fechados,
esperando, com vontade até de chorar. Afinal olhou – a marmota tinha
sumido. E o pau, que ele largara no chão, ao seu lado, tinha sumido também.
Comadre Delurdes ia de manhã ao roçado, levar ao marido o “sonhim”
de pão de milho. Junto à capoeira velha deu com uma coisa – não
era bem uma marmota, era mais uma aparência, um rasgar forte de pano,
e um rufar de asas grandes, uma coisa agitando o ar, aquele sorvo, que não
se via mas se sentia. Ela correu tanto que ao chegar em casa teve uma oura,
quase morreu. O marido zombou, no outro dia foi com ela – e aí quem correu
foi ele. Ninguém da família vai mais sozinho ao roçado.
Certa noite um bando de gente vinha de uma festa, pela rodagem do Quixadá.
Zéza, a hoje finada Dora, Terezinha, seu marido Chico Ferreira, e outros.
Ao passarem perto do local onde foi encontrada a ossada de Chico Preto (morto
misteriosamente há alguns anos), viram um vulto agachado ao pé
de uma imburana. A coisa olhava de um lado e de outro da árvore, como
quem brinca com criança. Chico Ferreira soltou um uivo e desabou; e as
mulheres correram atrás, lutando para ver se chegavam na frente dos homens.
E, se a visagem quisesse tinha até apanhado um menino, coitadinho, que
ficou por último na disparada. Na hora do medo parece que até coração de mãe se esquece.
O mesmo Pedro Ferreira tem outra recordação do seu tempo de jogador.
Vinha em noite escura, por um caminho que passa perto da represa do açude
velho do Junco, cansado, com fome e frio. Nisso avistou um fogo e se alegrou
– deviam ser uns amigos que planejavam uma pescaria. Parece que tinham tocado
fogo num toco e as suas sombras iam e vinham ao redor. Pedro chamou, ninguém
respondeu. Aí a chama baixou e voou brasa pra todo lado, como se alguém
batesse com uma vara no fogo, estilhaçando-o. Assustado ele parou – firmou
a vista – agora não tinha mais toco, nem fogo, nem brasa, só um
escuro mais escuro, como um vulto, no lugar onde o fogo estivera. O chapéu
lhe subiu nas alturas; ele sentiu que o vulto se deslocava em sua direção.
Correu, botando a alma pela boca. Mas o bicho, lerdo, não o perseguiu.
E até mesmo aqui perto de casa, antes de se atravessar o riacho do açude,
tem uma moita de mofungo, junto a um pé de violeta, onde o povo sempre
encontra uma marmota. Tem dia em que ela balança a moita, e solta gemidos,
aqueles ais. Ou se divisa um vulto por baixo da moita, e então se escuta
um ruído forte de dentes, como um cachorrão quebrando ossos.
As pessoas que contam esses casos nunca mentem em outras coisas. São
gente de respeito, nem é impressão de bebida – como se diz: “visagem
de bêbedo fede a cachaça”. Será que elas mentem só nesses casos? Ou se enganam, ou sonham?

5. Verão – Bela crônica que fala do ciclo da
vida no Nordeste. O fato de o rio secar não significa tragédia
nos calores do verão a terra dorme, os homens folgam. Pra
depois rebentarem em flor e fruto, com as águas novas
.” Prosa poética, crônica.

6. Seca – Um pai vendo os filhos famintos mata uma cabra alheia.

7. Miss – Um narrador onisciente fala dos pormenores que
envolvem um concurso de Miss, no caso, Miss Guanabara: interesses, concorrência,
nervosismos, despeito, rompimento de namoro, decepção.

8. Iaiá no seu jardim – Um narrador altamente onisciente
relata o que vai por dentro de uma moça do sertão: sonhos, fantasias,
fuga da realidade. A plasticidade do texto é alcançada pelo estilo
descritivo-narrativo que permite ao leitor visualizar o jardim e sentir o cheiro dos cravos.

9. As duas mortes – Nesta crônica há uma narradora
que, ao pensar no seu enterro, imagina duas situações: morrer
na cidade ou morrer no sertão. A partir das
considerações que faz em torno destas situações,
a narradora pondera acerca das diferenças que há em ser velada e enterrada na cidade grande.

10. A arte de ser avó – O neto vem ocupar o vazio,
a saudade, a nostalgia da juventude perdida; a saudade. Ser avó é
poder amar sem pretensões pedagógicas.

Íntegra:

Quarenta anos, quarenta e cinco. Você sente, obscuramente, nos seus
ossos, que o tempo passou mais depressa do que esperava. Não lhe incomoda
envelhecer, é claro. A velhice tem suas alegrias, as sua compensações
– todos dizem isso, embora você pessoalmente, ainda não as tenha
descoberto – mas acredita.
Todavia, também obscuramente, também sentida nos seus ossos, às
vezes lhe dá aquela nostalgia da mocidade.
Não de amores nem de paixão; a doçura da meia-idade não
lhe exige essas efervescências. A saudade é de alguma coisa que
você tinha e lhe fugiu sutilmente junto com a mocidade. Bracinhos de criança
no seu pescoço. Choro de criança. O tumulto da presença
infantil ao seu redor. Meu Deus, para onde foram as suas crianças? Naqueles
adultos cheios de problemas, que hoje são seus filhos, que têm
sogro e sogra, cônjuge, emprego, apartamento e prestações,
você não encontra de modo algum as suas crianças perdidas.
São homens e mulheres – não são mais aqueles que você
recorda.
E então, um belo dia, sem que lhe fosse imposta nenhuma das agonias da
gestação ou do parto, o doutor lhe põe nos braços
um menino. Completamente grátis – nisso é que está a maravilha.
Sem dores, sem choro, aquela criancinha da sua raça, da qual você
morria de saudades, símbolo ou penhor da mocidade perdida. Pois aquela
criancinha, longe de ser um estranho, é um menino que se lhe é
“devolvido”. E o espantoso é que todos lhe reconhecem o seu
direito sobre ele, ou pelo menos o seu direito de o amar com extravagância;
ao contrário, causaria escândalo ou decepção, se
você não o acolhesse imediatamente com todo aquele amor que há
anos se acumulava, desdenhado, no seu coração.
Sim, tenho a certeza de que a vida nos dá os netos para nos compensar
de todas as mutilações trazidas pela velhice. São amores
novos, profundos e felizes, que vêm ocupar aquele lugar vazio, nostálgico,
deixado pelos arroubos juvenis.
Aliás, desconfio muito de que netos são melhores que namorados,
pois que as violências da mocidade produzem mais lágrimas do que
enlevos. Se o Doutor Fausto fosse avô, trocaria calmamente dez Margaridas
por um neto…
No entanto! Nem tudo são flores no caminho da avó. Há,
acima de tudo, o entrave maior, a grande rival: a mãe. Não importa
que ela, em si, seja sua filha. Não deixa por isso de ser a mãe
do neto. Não importa que ela hipocritamente, ensine a criança
a lhe dar beijos e a lhe chamar de “vovozinha” e lhe conte que de
noite, às vezes, ele de repente acorda e pergunta por você. São
lisonjas, nada mais. No fundo ela é rival mesmo. Rigorosamente, nas suas
posições respectivas, a mãe e a avó representam,
em relação ao neto, papéis muito semelhantes ao da esposa
e da amante nos triângulos conjugais. A mãe tem todas as vantagens
da domesticidade e da presença constante. Dorme com ele, dá-lhe
banho, veste-o, embala-o de noite. Contra si tem a fadiga da rotina, a obrigação
de educar e o ônus de castigar.
Já a avó não tem direitos legais, mas oferece a sedução do romance e do imprevisto.
Mora em outra casa. Traz presentes. Faz coisas não programadas. Leva a passear,
“não ralha nunca”. Deixa lambuzar de pirulito. Não tem a menor pretensão
pedagógica. é a confidente das horas de ressentimento, o último recurso dos
momentos de opressão, a secreta aliada nas crises de rebeldia. Uma noite passada
em sua casa é uma deliciosa fuga à rotina, tem todos os encantos de uma aventura.
Lá não há linha divisória entre o proibido e o permitido, antes uma maravilhosa
subversão da disciplina. Dormir sem lavar as mãos, recusar a sopa e comer croquetes,
tomar café, mexer na louça, fazer trem com as cadeiras na sala, destruir revistas,
derramar água no gato, acender e apagar a luz elétrica mil vezes se quiser –
e até fingir que está discando o telefone. Riscar a parede com lápis dizendo
que foi sem querer – e ser acreditado!
Fazer má-criação aos gritos e em vez de apanhar ir para
os braços do avô, e lá escutar os debates sobre os perigos
e os erros da educação moderna…
Sabe-se que, no reino dos céus, o cristão defunto desfruta os
mais requintados prazeres da alma. Porém não estarão muito
acima da alegria de sair de mãos dadas com o seu neto, numa manhã
de sol. E olhe que aqui embaixo você ainda tem o direito de sentir orgulho,
que aos bem-aventurados será defeso. Meu Deus, o olhar das outras avós
com seus filhotes magricelas ou obesos, a morrerem de inveja do seu maravilhoso
neto!
E quando você vai embalar o neto e ele, tonto de sono, abre um olho, lhe
reconhece, sorri e diz “Vó”, seu coração estala
de felicidade, como pão ao forno.
E o misterioso entendimento que há entre avó e neto, na hora em
que a mãe castiga, e ele olha para você, sabendo que, se você
não ousa intervir abertamente, pelo menos lhe dá sua incondicional
cumplicidade.
Até as coisas negativas se viram em alegrias quando se intrometem entre
avó e neto: o bibelô de estimação que se quebrou
porque o menino – involuntariamente! – bateu com a bola nele. Está quebrado
e remendado, mas enriquecido com preciosas recordações: os cacos
na mãozinha, os olhos arregalados, o beicinho pronto para o choro; e
depois o sorriso malandro e aliviado porque “ninguém” se zangou,
o culpado foi a bola mesma, não foi, vó? Era um simples boneco
que custou caro. Hoje é relíquia: não tem dinheiro que
pague.

Fonte: Unievangélica – Carlos Lisboa

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