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Eles eram muitos cavalos, de Luiz Ruffato

by Lucas Gomes

Primeiro romance de Luiz Ruffato eles eram muitos cavalos (cujo título
é escrito em letras minúsculas), foi publicado em 2001.

Toda a ação do livro se passa num só dia, o dia 9 de Maio de 2000. A localização
precisa da ação é dada logo no início: São Paulo, 9 de maio de 2000.

Rapidamente, somos expostos a textos que expressam o que poderia ser um mínimo
recorte de uma visão aérea da megalópole. Em cada um desses textos podemos encontrar
desde orações religiosas, cenas de amor e violência, ódio e paixão, seres que
se completam e seres que nunca se compreendem.

Luiz Ruffato busca desvendar São Paulo. Não apenas a metrópole com seus engarrafamentos,
seus parques, ou o dinheiro correndo por entre os conglomerados econômicos.
Ele decifra a cidade que está estampada todos os dias, minutos e segundos em
nossa frente. Uma cidade rasgada pela diversidade humana, mosaico composto por
gente de todos os lados do Brasil e de todas as classes sociais existentes e
inexistentes.

A linguagem fragmentada reflete a correria da maior metrópole da América do
Sul. Cada mudança de história parece uma simples piscadela para o tempo impossível
de São Paulo. Os muitos personagens não se encontram. O emaranhado de suas vidas
escorre sem que ninguém, a não ser eles mesmos, tome conhecimento disso. A ótica
não é a do expectador, mas a do próprio personagem, o que torna o livro singular.

Ruffato mostra histórias de gente que vemos todos os dias, perdida por diversos
pontos da cidade buscando menos um motivo e mais uma maneira de sobreviver.
Um olho mágico bastante revelador do grande rebanho anônimo que vive desgarrada
e desesperadamente em São Paulo.

A grande personagem, a única que, onipresente, interage com as outras em seus
inúmeros dramas, infelicidades e pequenas tragédias urbanas, é mesmo a mutifacetada
São Paulo.

Quanto ao título, perguntou-se a Ruffato quem eram os “cavalos”. E ele respondeu
que os cavalos somos todos nós: desde o que vai trabalhar de ônibus ao que vai
de helicóptero. Cavalos seriam uma grande metáfora – cavalos de corrida, cavalos
de umbanda… apenas somos caixas de ressonância de alguém.

A narrativa é dividida em 70 pequenos textos. Em alguns deles, os narradores
escrutinam a vida de vendedores ambulantes, motoristas de táxi, idosos, pastores,
pedintes, assaltantes que, embora vivendo em uma mesma cidade, não exercem
qualquer influência direta uns sobre os outros. Isso pode até ser típico da vida da
grande cidade, mas se torna peculiar quando representa uma proposta de romance,
na medida em que, em nenhum momento, as histórias se cruzam.

Assim, não há um enredo como fio condutor que relacione qualquer uma
das partes ou as personagens. O único vínculo entre elas parece ser o do tempo
ficcional, um dia, o que permite ler este conjunto de textos como um grande retrato
da diversidade na paisagem humana no cotidiano da cidade.

A fragmentação entre as partes, às vezes, é marcada pela diferença entre os gêneros da narrativa. Os
narradores formam um mosaico textual composto por cartas, orações, cardápios,
previsões meteorológicas, lista de livros, anúncios de classificados, além de textos
que podem funcionar como pequenos contos.

Flâneur, o autor estabelece o palco de suas andanças na abertura do livro,
em linguagem que se quer objetiva, mas que não se esquece do imaginário cristão,
que paira sobre a cidade tentacular. Cúmplice, o leitor acompanhará o andarilho
Ruffato durante as próximas horas desse dia 9 de maio de 2000, marcado pela
violência, pelo oportunismo, pela corrupção, pelo sonho, pelo medo, pela coragem.
Um dia como outro qualquer, mas que se torna especial porque foi destacado como
situação sensível e exemplar.

Dramas da banalidade do cotidiano. Fragmentos da vida, visitados com olhos de
ver e captados por ouvidos atentos. Nada que o leitor não conheça, pelo menos
de ouvir falar ou porque leu em algum jornal. Marginalidade, anonimato, desimportância…
Os que vivem e os que morrem e os que são mortos; os que chegam e os que partem.
Quase sempre sem nome, como a vovó pernambucana que vem visitar o filho e conhecer
a nora e os netos, trazendo bagagem de expectativa acerca da vida do filho e
a bexiga cheia, porque o banheiro do ônibus estava fedido depois de tanta estrada
a caminho do desconhecido. José Geraldo não tem nome de família; é apenas mais
um que quer se dar bem na vida e vai encontrar o amigo nos Estados Unidos, como
exemplo de quem escapa da vidinha apertada e medíocre, de muita batalha e pouco
ganho.

Os textos independentes mimetizam a atmosfera caótica dos cenários paulistanos,
habitados por figuras-sombras se desfazendo o tempo todo: cada fragmento é tão
forte, um grito de socorro, que um intervalo se faz necessário. Mas o intervalo
pode ser ainda mais assustador, como se as vozes continuassem ecoando mesmo
depois de pronunciadas. Ruffato constrói uma imagem e logo a faz desvanecer,
deixando-nos quase desamparados, para em seguida construir outra.

Mas, é dos intervalos entre os textos em suma, do não-dito, não-visto, que emana
a presença do real. O real que não é a realidade, mas o impensável do pensamento
o irrepresentável da representação, o invisível do visível, ou seja, o que se
expressa no vazio. Vazio que revela a angústia da impossibilidade da tragédia
num universo sem sujeito nem voz narrativa.

Sem pedir licença, o autor vai entrando na intimidade das criaturas e escancara
ao leitor o interior da vida da classe média, como na manhã fria de pão velho
com margarina, enquanto o marido está lendo Foucault, comprado no sebo, e a
mulher saturada da vida apertada nos limites do orçamento doméstico “já não
reconhece quem é esse homem”. Mas também entra com a professora na escola destruída
pelo vandalismo de elementos da própria comunidade, que arrasaram a hortinha
da merenda escolar. Solidão e desespero, capta o narrador na atitude desolada
da professora. Por vezes, Ruffato entrega o discurso à personagem, tornando
mais contundente o quadro de solidão e desespero… É o que acontece quando
o leitor o acompanha ao quarto de motel, no qual uma prostituta é violentada
por uns indivíduos bêbados; sem saída, ela se refugia na lembrança antiga de
um cliente gentil e endinheirado, que lhe dera tratamento especial e até a levara
a um restaurante chique; impotente, traduz seu desprezo pela escória que a agride
na certeza de que naquele restaurante “esses putos nunca entraram, nunca entraram
nem nunca vão entrar, nunca vão entrar…” – pois é: as pessoas precisam manter
sua integridade, mesmo que impedidas de reagir, ainda que recorrendo a um argumento
ingênuo diante das circunstâncias…

Aos que ainda têm fé e esperança, a cidade oferece o discurso do pregador solitário,
que fala da salvação eterna; simpatias, uma oração a Santo Expedito, ou a Igreja
do Evangelho Quadrangular… Para outro tipo de fé e de esperança, pode-se percorrer,
com a ponta do dedo, tanto as listas de empregos oferecidos como os anúncios
de serviços sexuais, até com garantia de discrição e de sexo seguro nos tempos
que correm… Quem preferir pode parar diante da estante e escolher um livro,
entre os vários citados por Ruffato, e deixar lá fora os gritos e o ranger de
dentes… se puder, sirva-se do cardápio requintado, que convida o leitor ao
banquete da indiferença…

A certa altura, pergunta o autor: “(são paulo é o lá fora? é o aqui dentro?)”.
Na verdade, São Paulo é a menina que se prostitui, é o índio bêbado, é o pai
que sonha com um futuro melhor para o filho, é a garota morta pelo assaltante
de bairro, tão miserável quanto sua vítima… é o corrupto engravatado, é o
desempregado, é a mulher desolada, é a roda de amigos. São Paulo é o lá fora
de sua multidão; é o aqui dentro de cada medo, esperança, desespero, mesquinharia…
São Paulo é o pacto de silêncio assustado do casal que sabe haver alguém ferido
lá fora, mas que prefere dormir, porque “amanhã a gente fica sabendo” – nada
se pode fazer por alguém atingido pela violência urbana, altas horas da noite
– questão de preservação da vida…

A São Paulo de Ruffato não se limita ao lugar comum da “selva de pedra”. É humanidade,
contemplada cuidadosamente pelo olhar desse autor que se mistura à multidão
para traçar o vasto painel da condição humana, algumas vezes deixando que o
leitor perceba sua comunhão com as dores e as alegrias da gente miúda, que não
se sabe bem de onde vem ou para onde vai; mas, está aí, fazendo o significado
da cidade.

Palavras do autor: “se formos considerar o projeto como um todo, teria sido
a última coisa que iria escrever. É assim um painel, um grande painel, porque
seria, grosso modo, sobre a formação da classe operária brasileira entre 1950
e 2000, pegando o Brasil saindo do meio rural passando para o urbano, depois
do mundo urbano transformando isso na formação de uma burguesia e um proletariado.(…)
Depois, na década 70, isso vira a migração das cidades pequenas para as cidades
grandes. “eles eram muitos cavalos” seria exatamente esse momento em que a cidade
já está se deteriorando e o homem perde completamente a sua identidade.”

Esta é uma das leituras possíveis desse universo que Luiz Ruffato decalca na cidade de São Paulo.

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