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Em liberdade, de Silviano Santiago

by Lucas Gomes

Em Liberdade

, de Silviano Santiago, publicado em 1981, é um diário (ficcional)
de Graciliano Ramos, uma espécie de biografia-confissional que se refere alegoricamente
ao “biógrafo” (Silviano).

O livro deveria ser publicado vinte e cinco anos após a morte do autor de Memórias do
Cárcere
, para que a mítica de um Graciliano Ramos, absolutamente verossímil, como se
o narrador de Vidas Secas pudesse ser questionada em Em Liberdade, como o
ex-detento que jamais superou a dor de ser excluído, sendo como maior e melhor amigo, o
cigarro causador da sua morte por câncer.

A ação ficcional se dá no final da década de 30, ou seja, na fase imediatamente anterior à
Segunda Guerra Mundial. Silviano Santiago nos mostra o Brasil sob o regime ditatorial de
Getúlio Vargas. A cidade é a do Rio de Janeiro nos anos de 1936 / 1937.

Para tanto, transforma o escritor Graciliano Ramos, representante de uma corrente
literária que visava retratar o Brasil através da representação de suas reais
condições sociais, em personagem de uma ficção onde uma trajetória pessoal marcada
pela profunda consciência, dialoga com a realidade.

No livro podemos encontrar a busca de continuidade do livro de memórias de Graciliano
Ramos, Memórias do cárcere, publicado inacabado após sua morte em 1953,
onde o autor escreve sobre os dez meses e dez dias em que ficou preso (3 de março
de 1936 a 13 de janeiro de 1937). Quando morreu Graciliano Ramos, faltava apenas
a escrita de um capítulo dessas memórias, tal como nos informa a nota explicativa
de seu filho, Ricardo Ramos, apresentada ao final do segundo volume. Ricardo conta
uma conversa que teve com o pai sobre esse último capítulo. Graciliano lhe dissera
ser tarefa de uma semana a redação do capítulo que faltava; “pretendia escrever
das sensações de liberdade, a saída, uns restos de prisão a acompanhá-lo em ruas
quase estranhas”: “Um fim literário”. Em janeiro de 1937, Graciliano teria escrito

um diário no calor do momento, cheio de esperança e frustração, com críticas a
amigos e inimigos. Mais tarde, percebendo que essa introdução destoava completamente
do conjunto da obra Memórias do Cárcere, Graciliano teria resolvido sacrificá-la,
entregando-as a um amigo que brodianamente as teria repassado ao editor Silviano
Santiago. Fica assim construída a ficção da ficção. É isso que faz Silviano Santiago
em 1981. Santiago deseja capturar são os meses imediatamente posteriores à
sua libertação.

Silviano Santiago coloca em diálogo o poeta Cláudio Manuel da Costa (poeta e rebelde
do século XVIII que participou da rebelião de Vila Rica em 1789), o romancista
Graciliano Ramos (na década de 1930), o jornalista Wladimir Herzog (morto em fins
da década de 1970) e ele mesmo. Temos então uma conversa onde o papel do intelectual
brasileiro frente a regimes autoritários e intolerantes ecoa durante o livro todo.
Nesse livro tudo é verídico e tudo é ficção e, portanto, as relações entre literatura,
história e biografia são objetos de constante questionamento. Tanto no plano geral
quanto no mais específico, o romance coloca em questão a discussão sobre identidade
e fragmentação, nas duas dimensões de identidade, a identidade coletiva de um
país, o Brasil, e a identidade pessoal do autor, do personagem e do próprio leitor
em vários lugares e em vários momentos.

Em uma literatura rica em sátiras e paródias, Em Liberdade talvez seja o mais
importante pastiche da literatura brasileira. Santiago incorpora o estilo característico
de Graciliano não para simplesmente imitá-lo, ou criticá-lo, ou trazê-lo para o presente,
mas para incorporá-lo, para através dele empreender uma reflexão sobre o papel do escritor
diante das ditaduras.

Na narrativa de Silviano Santiago, a grande vedete é a própria mensagem, o foco
narrativo e ficcional de Silviano sobre um Graciliano Ramos humanista e visceral,
um homem que antes do cárcere era um escritor, mas ao sair, saiu como prisioneiro
da elite e do seu desconforto em saber demais. Silviano, que compõe o prólogo
do livro como um processo de metalinguagem, compartilhando com o leitor a composição
temático-formal do seu livro, faz uma crítica ao sistema da elite que mal sabe
ler os enunciados dos livros de literatura aos escritores que se submetem para
usar palavras para ser compradas por essas elites.

A subjetividade de Silviano é aludida alegoricamente (ele se apresenta apenas como “editor”
do manuscrito de Graciliano) e só pode ser recuperada pelo leitor contando com a sua bagagem
de informação contextual.

Alegórica ou metonimicamente, a subjetividade do autor-narrador se coloca no texto através
de um mergulho numa outra subjetividade com a qual o narrador estabelece um jogo. E em ambos
os casos o que relaciona essas duas subjetividades é um trauma: o trauma dos intelectuais na
ditadura, num caso, e o trauma da morte no outro.

E esses traumas estão inscritos na História brasileira, o que dá à experiência individual
uma dimensão nacional.

Dizemos que ao se narrar a subjetividade do outro, faz-se referência à subjetividade do
narrador / autor e este procedimento se repete no interior de Em liberdade, no
projeto de Graciliano de escrever um conto sobre Cláudio Manoel da Costa: “Cláudio será
Graciliano… O desespero dele, ao saber que todos os seus planos vão por água abaixo,
porque não existe pujança para concretizá-los, é meu”. No texto a exposição da subjetividade
está mediada por uma estrutura complexa que desconstrói a possibilidade de se ler um
suposto “sujeito confissional”.

Além de problematizar o discurso confessional, o romance recusa o discurso da victimização.
O “Graciliano” de Em Liberdade se sente permanentemente incomodado com a situação
de ser visto como herói-mártir, figura que se tornara lugar comum no memorialismo dos anos
80. A recusa a narrar a experiência do cárcere, e em troca narrar os dias em liberdade, afasta
o romance daqueles escritos sob o “síndrome da prisão”.

Na obra Em liberdade, Silviano Santiago faz uma reescritura que pode ser pensada
como elaboração do passado. Uma experiência traumática se configura como uma máquina de
tempo, que relaciona momentos da história nacional. O passado não deixa de retornar na
estrutura em abismo, na qual um tempo contém o passado o futuro.

É uma obra que fala de liberdade de maneira absolutamente não lúdica, porque a liberdade
no livro é tratada por um autor que sabe muito bem o que ela deva ser, por tê-la perdido
de maneira arbitrária e de conquista por um movimento repressor. Respostas bem pouco
civilizadas. Elas utilizam a linguagem mais convincente por aquelas bandas e talvez por
todo o Brasil: a da violência de Estado. A perseguição ao inimigo torna-se idéia fixa na
cabeça dos poderosos do momento, que sim acreditam poder neutralizar, reduzir a pó toda
força de discórdia, conseguindo uma unanimidade que só existe pelo terror que amedronta e
cala. Todo governo, mesmo o que não se diz autoritário, reclama da unanimidade.

O autor, que narrava a saída de Fabiano, Sinhá Vitória e os meninos, além e Baleia, não
é o mesmo narrador da efeméride de Em Liberdade, do diário de relatos de um
Graciliano sob ponto de vista menos eloqüente, menos verossímil e mais humanista, uma
vez que a sua vida fora exposta como num diário íntimo e cronológico. Em Vidas Secas,
narrava a história como um Deus que pairava onipotente sobre as dificuldades do cenário de
horror e de seca e de determinismo e de clausura de soluções. Na obra Em Liberdade,
o autor estava sob a força de Deus e o seu pré-juízo.

Neste livro temos o Brasil em época da primeira República em choque de militarismo
dominante como garantia para uma República de domínio também ideológico e absolutamente
prepotente. No Nordeste esse quadro se confirmava com maior seriedade porque se configurava
e se justificava, uma justiça tenentista violenta e de reprimenda dos ativismos mais
exaltados, inclusive o de Graciliano. Graciliano fora perseguido pela sua super-exposição
ou análise sociológica feita em livros como: São Bernardo.

Havia uma super-exposição do seu caráter de análise sociológico comparada a sua narrativa
com a de Dostoiévsi (conhecido por seu livro Crime e Castigo e por sua narrativa
impressionista e de submundo, onde o foco de análise era sempre o lado obscuro do ser
humano e a difusão de suas idéias humanistas, como a teoria da liberdade de que o super-homem
era aquele capaz de cometer assassinatos, e se dispor da vida de outrem). Graciliano era
capaz de estabelecer com louvor e frieza de detalhes a super exposição irrisória da condição
humana, ou melhor desumana das grandes estruturas. Ele não acreditava na composição social,
não acreditava na benevolência de regimes imperialistas, não acreditava na bondade humana,
quanto mais na bondade divina, por ser absolutamente cético ou apenas crente na concepção da
adversidade como elemento primordial do homem e das relações humanas.

Vingança, perseguição, violência, cadeia e assassinatos são as armas utilizadas pelos
mandões como mecanismo de persuasão. Ver reduzidas até a morte as nossas possibilidades
de atuação política, acabamos por acreditar nas manhãs do destino ou nas mãos todas-poderosas
de Deus. Se destino houver, ele é trançado pelas artimanhas da vingança dos homens.

Graciliano e o seu clássico antropomorfismo (concepção de que Deus tem defeitos
absolutamente humanos), com um discurso magoado e agnóstico como a condição de adversidade
nordestina, na qual ele submete o Nordeste e ao nordestino. Numa narrativa cumulativa de
ódios e de passionalidades, onde ele expunha seus postulados, uma vez que se expunha como
uma ferida ou marca social do estigma da ditadura.

O livro narra por datas, as anotações de Graciliano feitas quase em expurgo depois da
saída da prisão (onde ele é o principal personagem, o epicentro da construção da narrativa
ficcional de Silviano Santiago), é uma construção antes de tudo sentimental e absolutamente
articulada pela narrativa de autor. Até a chegada de Graciliano a pensão no Catete, a
luta pela reconquista da liberdade, a reconstrução ou ressignificação da sua vida pós-cárcere,
a luta por sobrevida numa sociedade de capas, de elite, de unanimidade e que proíbe que as
dissonâncias sobrevivam com a mesma dignidade.

O ponto alto do livro, momento anacrônico de articulação perfeita de todos esses vetores,
é quando Graciliano / Santiago está pesquisando sobre a vida de Cláudio Manuel e, de um
livro de história do Brasil que ele não nomeia nunca mas diz que sempre carrega, ele
pinça o seguinte comentário sobre o pretenso suicídio do inconfidente: Tudo leva a crer que
foi levado ao tresloucado gesto por ter se conscientizado da sua situação, e estar arrependido
da sua militância.

Ao nos depararmos com esta obra em especial, não podemos nos esquecer de que o personagem
Graciliano Ramos, cunhado na pessoa do escritor Graciliano Ramos, esteve preso na Colônia
Correcional Dois Rios, na Ilha Grande, estado do Rio de Janeiro, tendo permanecido antes
alguns dias no porão do navio Manaus, rumando nele para a Ilha. Por si só, este episódio
biográfico já se prestaria a variadas interpretações simbólicas, o que, no entanto, não
será feito, a não ser quando tais circunstâncias estejam mencionadas dentro do texto
ficcional de Em liberdade.

Resumo

O personagem Graciliano Ramos, vai, logo de seu livramento do cárcere, viver como hóspede
do escritor José Lins do Rego.

Ele, o personagem Graciliano Ramos, narrador que inicia o diário dizendo que não sente,
nem deseja sentir seu corpo, vai retomar sua capacidade física e, junto com seu desejo,
seu corpo e a capacidade de trabalho.

São as caminhadas na praia, e as experiências à beira da água ou com água que, desde sua
primeira menção, acompanham esta retomada.

O mar, a areia, o ar que ele respira começam a coadjuvar seu regresso ao domínio pleno de
sua força.

No poema de Baudelaire citado pelo personagem, os abismos humanos são comparados às
riquezas íntimas do mar. Mar e homem são tenebrosos e discretos. O personagem confessa
o desejo de “levantar âncoras”, “ir à deriva”, “navegar de encontro ao desconhecido”. Mas
não tem forças e se pergunta onde está sua seiva. Constata que não sabe ainda conviver
com seu corpo doente, no calor úmido do Rio de Janeiro. Está preso dentro das quatro
paredes do quarto em que é hóspede. Diz “não me lavo em rio, lavo-me na pia.

Em seguida, reporta uma cena passada na cadeia em que identifica a paixão com o ato de
lavar voluptuosamente as mãos, de entrega total. Lava as mãos como se mantivesse uma
relação sexual, intensidade percebida e criticada pelo colega de prisão.

Depois de dias de chuva, ele sai para passear à beira-mar. Encontra um jardim onde uma
fonte jorra formando uma gaiola líquida e dentro da prisão um pássaro. A água do desejo,
da vitalidade, o pássaro como símbolo do falo, aprisionado no corpo doente. A visão do
repuxo se anula por um corpo de mulher que ele segue. Com crescente satisfação percebe a
excitação chegando, e tem uma fabulosa ereção enquanto segue a moça que vai à praia.

Com a retomada do desejo vem a mudança, da casa do amigo para um quarto de pensão. A
esposa viajou por mar para Maceió. Ele constata, antes de mergulhar numa pesquisa que
também o libertará, que desejava ter o corpo solto no ar do Rio de Janeiro, travando uma
relação sexual com a brisa marinha. Na rua, sente-se como um navio, abrindo caminho entre
ondas humanas.

Mergulhado em trabalho, as últimas reflexões de seu diário dizem “saltei do trampolim”,
“mergulhei”, “em golfos de esperança flutuando mil vezes busco a praia”, “abro as comportas”,
“volto à superfície”.

O diário do personagem começa no dia 14 de janeiro de 1937:

Não sinto o meu corpo. Não quero senti-lo por enquanto. Só permito a mim
existir, hoje, enquanto consistência de palavras.

A caminhada matinal com Heloísa pela praia de Ipanema me fez bem. Não acredito que estaria
escrevendo estas linhas se não me tivesse alheado do mundo e das pessoas esta manhã. Se não
tivesse finalmente voltado os olhos para o estado lastimável em que se encontra o meu corpo.

Pisar a areia. Ver o mar. Sentir a brisa úmida de encontro à pele do meu rosto recém-escanhoado.
Dia quente, céu azul, o sol brilhando sem tréguas.

Caminhando em direção à praia, já de longe sentia o cheiro agridoce do mar e antes de enxergar
o areal branco de Ipanema, com os olhos semi-cerrados pelo excesso de claridade, revia
ilusoriamente praias nordestinas como se tivesse assistindo a um filme. A tela era o azul que
o funil de casas configurava lá no fundo. Estava com a cabeça aqui e a mente lá.

Larguei por minutos o braço de Heloísa e apressei o passo para chegar logo e sentir-me tão
forte como antes da cadeia.

Respirava fortemente e aproximava-me do corpo de Heloísa percebendo quão indispensável
era sua presença ali. O cheiro do mar se confundia com o seu cheiro.

O cheiro do mar confundiu-se de novo com o cheiro feminino, ativado que estava pelos corpos
das moças que ondeavam correndo em direção ao mar. O sol cintilava contra as águas, lá no
fundo, ferindo a minha vista já cega pela luminosidade do verão. Escondemo-nos por alguns
minutos debaixo de uma amendoeira, seguindo sugestão minha. Abraçados como estávamos,
parecíamos um casal de namorados em encontro furtivo. Agora, dava descanso à Heloísa,
amparando-me contra o tronco da árvore. Era sólido e firme e invejei-o. Invejei a seiva
que corria por dentro do seu cerne e alimentava galhos e folhas. Com palavras impensadas,
lamentei a frustração da minha vida em liberdade. Heloísa levou a mão até os meus lábios e
fez-me calar. Agradeci-lhe mentalmente o gesto e, em retribuição, recitei-lhe uns versos de
Baudelaire, sem saber em que armadilha caía:

“Vous êtes tous le deux ténébreux et discrets:
Homme, nul n’a sondé le fond de tes abîmes,
O mer, nul ne connaît tes richesses intimes,
Tant vous êtes jaloux de garder vos secrets!”

(“Sois todos os dois tenebrosos e discretos:
Homem, ninguém sondou o fundo dos teus abismos,
Ó mar, ninguém conhece tuas riquezas íntimas,
Tão ciumento que sois de guardar vossos segredos!”)

Repeti em seguida as rimas, procurando um jogo de significados que a estrofe escondia:
“discrets secrets”, “abîmes intimes”.
Segredos discretos, abismos íntimos. Heloísa me olhava e me escutava. Os segredos discretos
jazem para sempre em abismos íntimos. Do fundo dos abismos os segredos exalam odores
semelhantes às flores do jardim protegidas por grades intransponíveis. Do jardim, no entanto,
saía o perfume da mocidade em ruído e alegria. Os corpos bronzeados femininos dançavam em
direção ao mar. “Quand tu as balayant l’air de ta jupe large / Tu fais semblant d’un bateau Qui
prend le large.” (quando vais varrendo o ar com a saia rodada /Pareces um navio que avança
para o alto-mar.) Levantar âncoras. Soltar-me. Abrir as velas, ir à deriva, navegar em
direção ao desconhecido, seguir com os olhos, com as narinas com o corpo, alcançá-las.
Acariciar a pele tafetá de serpente. Heloísa devia perceber a minha sofreguidão, a minha
ânsia de vida. Queria amparar-me e conduzir-me. Dar-me-ia o seu próprio corpo, se fosse
possível. Vi que me contemplava penalizada, julgando-me um enfermo sem forças para poder ir
até o fim do desejo. Percebia que a chama acesa da paixão se acendia apenas nos meus olhos e
era logo apagada pelo desgaste corporal. Onde a seiva? Não quis que tivesse pena de mim.
Larguei a amendoeira. Perguntei se continuávamos.
Sátiro, disse de mim para mim, com grande felicidade. Descobria que os meus sentidos não
tinham sido embotados pela escrotidão da cadeia. O meu corpo pesava e me deixava triste,
paralisado. Era preciso conduzi-lo à sua alegria de antes, ao seu ardor de buscas e encontros,
de fugas e rompantes.
Heloísa, os segredos não exalam odores, os segredos são narinas que se revelam ao capricho
dos odores. O cheiro do mar, o cheiro de Heloísa, o perfume de flores encarceradas, a essência
dos corpos. Por mais que estivessem escondidos no fundo dos abismos, por mais que os julgasse
mortos e sepultados nos corredores e celas escuras e tenebrosas, os desejos voltavam a trabalhar
à superfície da nossa caminhada matinal em direção ao mar. Os desejos encaminhavam-me para uma
jovialidade de sensações que considerava coisa do passado.

Alguns dias depois, num fragmento identificado como “Sem data”, encontrado na narrativa após
às páginas correspondentes ao dia 18/02/98, encontramos o seguinte:

O meu corpo, no entanto, está doente. Não sei ainda como conviver com este calor úmido do
Rio de Janeiro e com as possibilidades (magníficas em outra ocasião) de um caminhar sem rotas
marcadas, como este que é propiciado pela liberdade numa grande cidade.O périplo entre as
quatro paredes deste quarto dá às pernas a rotina da marcha dentro de limites estreitos,
calculada e reticente, econômica. No cubo protetor deste quarto, as pernas atrofiam-se, o
corpo compraz-se com a horizontal, ou dobra-se ao meio no conforto da cadeira. Não piso terra,
piso o chinelo; não vejo sol, vejo a lâmpada; não me lavo em rio, lavo-me na pia.

A paixão requer o desperdício. Requer que se gaste sem economias, sem o espírito de poupança.
Requer o corpo e espírito em toda a sua plenitude. Sem perspectiva de futuro, existe o
presente.
Outro dia, na cadeia, riam de mim enquanto lavava voluptuosamente as mãos. Alguém, às minhas
costas, queria que eu não gastasse o sabonete como estava gastando. Depois queria que eu me
apressasse, pois desejava usar também a pia, o sabão e a água. “Está gastando demais, vai
acabar”, “usa e abusa”, “deixa para os outros, seu egoísta” – eram os pedaços de frases
que se escutava, repetidos até a exaustão. O meu companheiro de cadeia queria que economizasse
o sabão, a água e a pele das minhas mãos. Que até mesmo – quem sabe – economizasse a minha
energia. Quanto `a mim, só sentia que queria interromper-me na metade. Tornar rotina o ato de
lavar as mãos. Deixar-me sem a satisfação, frustrado. Entreguei-me com mais sofreguidão à
água e ao sabão, ao esfregar. A voz sem rosto visível não soava mais. Fechara os ouvidos.
De repente, eis que uma frase, precisa como um golpe de martelo na cabeça de um prego, abre
os meus ouvidos e fura os tímpanos:
Ele lava as mãos como se estivesse fodendo.

Em 22/01/1937, o personagem sai de casa, após dias de chuva que impediam-no de caminhar e se
dirige à praia de Botafogo:

Chegando ao destino, parei por alguns instantes junto a um repuxo que fica defronte à baía.
É um repuxo onde, se não colaborou a mão do artista original, entrou a do artesão hábil e
sentimental, desses que conseguem, se fazem filme ou escrevem peça de teatro, arrancar
lágrimas de comoção da platéia. Sua intenção, bem lograda por sinal, foi a de fazer que os
jatos circulares de água desenhassem no espaço uma gaiola líquida, dentro da qual se banhava
uma ave em mármore. Um cisne, penso, pois tinha o bico voltado contra as penas da asa. Estava
admirando a precisão e, por certo, a delicadeza da composição, quando de repente a imagem do
repuxo é anulada pela do perfil de uma garota dos seus vinte anos. Atravessava a avenida,
escapando dos carros. Ia bronzear-se neste dia de sol ralo, que se sucedeu aos dias chuvosos.
A areia da praia, já tinha reparado, nem seca estava.
Admirei o corpo e o andar, o torneado das coxas e a rigidez da carne, as curvas
esculturais do traseiro, o vigor no busto e a limpidez de pensamentos no rosto
e no olhar. Admirei o corpo e o andar e, sem o sentir, já estava amarrado à corrente
da concupiscência, como se fosse o mais fiel dos cachorrinhos. A moça deixava
atrás de si um rastro de perfume silvestre, impregnando o ar com doçura e severidade.
Deixava-me absorver por aquela atmosfera cálida e esquecia passantes, trânsito,
barulhos, vozes. Apenas os dois. Caminhava ela na direção do Morro da Viúva, e
lá ia eu atrás.
Nisso passou-se o inesperado: mais caminhava, mais sentia o meu membro enrijecer-se. Como
tinha saído de paletó, não tive receio do escândalo que poderia causar. “Sátiro”, “tarado”,
“ridículo” – foram palavras que nem passaram pela minha cabeça na hora. Passam agora,
quando não posso impedir-me de rever moralmente a cena, encontrando dificuldade em narrar,
de maneira singela e verdadeira, o que aconteceu. Enfiei a mão esquerda no bolso das calças
e arranjei-o de tal forma que ficaria todo o tempo protegido da curiosidade alheia pelas
abas do paletó que se entrecruzavam.
Obrigado a abotoar o paletó, já não sentia a aragem que circulava pelo seu interior, esfriando
com a umidade da manhã as axilas. O suor ameaçava empapar a camisa.
O membro enrijecido – e sensação era extraordinária, tenho de confessar – inchava e subia.
Ao subir, levava literalmente consigo o meu corpo, dando-me a nítida experiência de estar
em ascensão. Flutuava no espaço. Levitava, como diria um amante das ciências ocultas. Era
tomado por uma força que vinha da junção das pernas, da fricção operada pelo movimento
cadenciado delas, como se ali estivesse um dínamo que transmitia energia para o membro e
toda a parte superior do corpo, esquentando-a, dando-lhe vigor. Tomava conta do tórax,
deixava a transpiração solta e forte como um fole, atingia o esôfago, esquentava a boca,
iluminava o rosto, fechava os ouvidos, clareava a vista, atiçava os cabelos curtos. Inchava
como se fosse um balão de São João. Subia pelos ares.

Após alguns dias, em 25/01/1937, o personagem acompanha a esposa ao cais, onde ela embarca
para Maceió. Duas semanas depois, ele se muda para uma pensão, onde reflete, em 15/02/1937:

Tenho o esqueleto tenso, tenho os músculos tensos. Gostaria de aprender a soltá-los, como
que para deixar que o meu corpo exista sem os constantes enredos, mandos e desmandos da cabeça.
Queria o meu corpo solto no ar do Rio de Janeiro, fazendo brincadeiras coma brisa marinha,
como se travasse com ela uma relação sexual. Quando passo pela rua, sinto que abro caminho
no ambiente como se fosse um navio torpedeiro, antagonizando o ritmo natural das ondas humanas.
Viver no ar como se bóia na água.

A partir de então, já de novo pesquisando e escrevendo ficção, o personagem lança-se ao
trabalho em seu quarto de pensão. Uma pesquisa sobre o inconfidente Cláudio Manuel da Costa
passa a ocupá-lo por inteiro. Quase ao final da narrativa, na data de 20/03/1937 ele nos conta:

Há dias saltei do trampolim. Há dias mergulhei. Retenho a respiração por dias seguidos;
retive-a enquanto não explodiam os meus pulmões. Não agüento mais a pressão da água. Tenho
de voltar à superfície para respirar.

Quando mergulhar de novo, Cláudio já existirá na folha de papel em branco, onde jogarei as
suas palavras. Não serei mais eu.

Fui eu quem escreveu: em golfos de esperança flutuando mil vezes busco a praia desejada; e
a tormenta outra vez não esperada ao pélago infeliz me vai levando.

Sinto a energia e a intensidade que existem reprimidas na frase de Cláudio. Abro as
comportas. Deixo que se espichem, se robusteçam, exercitando-se por algumas páginas mais.
Volto à superfície.

O final da narrativa se dá em 26/03/1937, quando o personagem vai ao cais buscar a esposa.

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