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Emigrantes, de Ferreira de Castro

by Lucas Gomes

Os homens transitam do Norte para o Sul, de Leste para Oeste, de país para
país, em busca de pão e de um futuro melhor

. É assim que começa o romance
Emigrantes, de Ferreira de Castro.

Sem sombra de dúvidas, a obra Emigrantes,
publicada em 1928, é uma das obras mais importantes de sua carreira pois é considerada
uma das precursoras do Neo-Realismo em Portugal. É com este romance que
se inicia definitivamente a sua carreira literária.
 

Manuel da Bouça
é o personagem central deste romance. Ao regressar à sua terra, depois de uma
estadia de alguns anos no Brasil, até a visão de “…um velho moinho com
as suas quatro pétalas – um muro em ruínas…Que lindo! Que lindo! constitui
motivo para que se emocione. Símbolo de todos os emigrantes, Manuel representa
o indivíduo inserido em sua comunidade que, como todos os outros, nutre uma série
de sonhos e aspirações. 

Ferreira de Castro, com a publicação deste romance,
talvez já intuísse e observasse a transformação do mundo que o século XXI agora
tanto se esforça por compreender. Neste livro descortina-se a condição do homem,
o eterno emigrante. O autor procura desconstruir o imaginário português sobre
a emigração para o Brasil e também denunciar a sua exploração econômica.

Enredo

O livro começa
com uma belíssima descrição da natureza na qual Manuel da Bouça aparece
integrado. Assim como a pega, que de graveto em graveto vai construindo seu
ninho no alto do pinheiro, tão desenvolta, Manuel  da Bouça também constrói
no campo sua modesta existência, cultiva suas ouves e ergue sozinho o muro que
protege a sua vinha. A identificação primeira com a terra pode ser observada até
mesmo em seu nome – Manuel  da Bouça – onde “bouça” é o nome dado a um
terreno, normalmente impróprio para a cultura, onde eventualmente crescem
pinheiros ou carvalhos.

Aqui a identidade está ligada diretamente à vida no campo e ao trabalho rural.
Há uma coincidência entre o indivíduo e a terra, mais especificamente a aldeia,
à qual ele pertence. Do seu nome verdadeiro – Manuel Joaquim dos Santos – só
temos notícia uma vez, justamente no momento em que ele desembarca no país
estrangeiro. Desse modo, podemos ser levados a tomar a paisagem exterior como
uma metáfora direta da paisagem interior que assentaria sobre a identidade
nacional. O relato minucioso dos diversos detalhes do cotidiano campesino
possibilitariam, em uma leitura mais apressada, que tomássemos Manuel da Bouça
como o representante de uma história naturalizada, isto é, como o detentor de
uma identidade fixa e ligada a uma essência. Entretanto, mesmo neste primeiro
momento do livro em que o personagem aparece tão integrado à sua comunidade e à
sua terra, há a presença de um dado exterior, um elemento que fura esta ordem
tão bem estabelecida: os campos improdutivos de seu vizinho Esteves.

Essas terras, que não
por pura eventualidade representam o objeto do desejo de Manuel da Bouça, são a
brecha através da qual toda a estrutura inicialmente apontada irá sofrer uma
transformação irreversível. Devido à sua origem campesina, Manuel se percebe
inserido na comunidade formada por sua região, muito mais do que naquela formada
por seu país. Seu olhar rústico não consegue discernir muito além dos campos por
ele cultivados, alcançando apenas as cores pálidas de sua aldeia em comparação
com as vizinhas.

As aldeias vizinhas
prosperavam, tinham casas novas, chafarizes, grandes quintas com portões de
ferro, porque os rapazes de lá, mal tiravam as sortes, partiam – passem bem que
eu vou tratar da vida! – e só regressavam quando haviam enriquecido. Ali porém,
[…] os homens só deixavam as saias da mãe para se meter debaixo das saias da
mulher – e por isso a aldeia seria sempre a mesma cousa feia e triste.

Assim, sua modesta
existência é atravessada pelo imaginário da emigração, em função do qual ele
empenha todos os seus bens, deixando mulher e filha para tentar fazer fortuna no
Brasil. Seu grande sonho é comprar as terras improdutivas de seu vizinho
Esteves, cultivá-las e viver com fartura, como conseqüência de seu próprio
esforço.

Munido de tais
esperanças e do pouco que possui – saúde e força de trabalho – Manuel da Bouça
parte confiante rumo a um destino incerto, atravessando terras e mares
desconhecidos.

Os episódios
dramáticos da partida do personagem serão reforçados pela presença de três
profissionais oportunistas: o Carrazedas, que ganhava dinheiro através das
hipotecas que os emigrantes faziam de suas terras para financiar a viagem, como
ocorre com Manuel da Bouça, que hipoteca as suas courelas para conseguir o
dinheiro da passagem; o Nunes, agente de viagens sem escrúpulos que explorava a
inocência dos camponeses e enriquecia às suas custas; e o jornalista Borges, que
se deixa convencer – ou corromper – por Nunes ao publicar um anúncio sobre a
inauguração da nova agência de viagens ao lado de um outro, louvando as
maravilhas da emigração para a América em um momento em que esta se mostrava
totalmente inadequada.

A jornada de Manuel
da Bouça está marcada, do começo ao fim, por uma série de surpresas, isto é, de
vivências de situações imprevistas, de confrontações com o real que produzem
sempre um estado de perplexidade. A primeira dessas situações ocorre durante o
desembarque do personagem no Rio de Janeiro. Esta passagem no livro é muito bem
trabalhada, pois apresenta um nítido contraste com o cenário campestre da
aldeia. Assustadora e hostil, a cidade é vista como uma paisagem caótica de
altos edifícios e multidões de pessoas, onde nada é conhecido ou reconhecível,
produzindo apenas sensações perturbadoras, como o ruído ensurdecedor dos
automóveis e o vermelho sensual da boca das mulheres. Manuel, por estar inserido
em uma outra realidade, aquela do campo, não possui o código necessário para
decifrar os signos que a cidade lhe oferece, captando apenas um conjunto
desordenado de imagens que diluem a lembrança de sua aldeia distante.

Do trabalho em uma fazenda de café no interior de São Paulo aos serviços desempenhados
como ajudante em um armazém, o infortúnio de Manuel da Bouça é exposto ao longo
do romance através de uma série de experiências malsucedidas, onde ficam evidentes
a ingenuidade e o despreparo do personagem.

As situações imprevistas sucedem-se continuamente e determinam uma série de
perdas, dentre estas a das courelas hipotecadas e a morte de sua esposa.
Entretanto, a perda maior e mais radical é deixada para o fim.

Foram os porcos,
grunhindo na pocilga e assomando às tábuas o focinho redondo, escuro e voraz,
que deram a Manuel da Bouça a certeza de que não se encontrava num mundo
completamente diferente daquele que seus olhos estavam habituados a contemplar.
Também, logo a seguir, as galinhas que se espoliavam ao sol, na esplanada, e o
pequeno milharal, que dali se vislumbrava, lhe pareceram velhos amigos,
sorrindo-lhe familiarmente.

Todos os laços que
davam consistência à imagem a partir da qual a identidade de Manuel da Bouça se
estruturava irão, pouco a pouco, desfazendo-se, até que, em um golpe final,
ocorre também a perda da identificação com a terra natal. A primeira indicação
dessa perda nos é fornecida no momento em que Manuel se prepara para empreender
seu regresso a Portugal. Não podemos negligenciar aqui algumas palavras muito
elucidativas do narrador:

O Andes transpunha a barra com o seu carregamento de carne humana, exausta,
quase morta, que a América devolvia à Europa – homens que dir-se-ia estarem a
mais no mundo e se arrastavam pelos dois hemisférios como se fossem o refugo de
outros homens.

O próprio Manuel da Bouça se surpreende com uma certa saudade da terra do exílio
e daqueles que compartilharam de seu destino, reconhecendo que não havia
previsto essa tristeza no momento da partida. Ao chegar a Portugal, sua primeira
sensação é de contentamento, de recuperação do tempo, sentida através das
recordações da infância; e do espaço, através do reconhecimento das árvores –
pinheiros e oliveiras – e da própria vila. Mas essa impressão não é duradoura, e
logo o sentimento de familiaridade dá lugar, mais uma vez, ao de estranheza. Não
conhecia os rostos que o contemplavam e até mesmo sua casa parecia não ter
relação alguma com seu destino. O ponto máximo de sua perplexidade se dá com a
visão de um palacete, pois tal construção ergue-se justamente nas terras que ele
tanto desejara. A visão do palacete abre na história de Manuel da Bouça um vazio
de sentido, impossível de ser significado.

A perplexidade
decorrente dessa visão é agravada ainda pela descoberta de que aquele que
enriqueceu a ponto de construir esse edifício grandioso esteve sempre ali tão
próximo, nunca abandonou sua terra, apenas se beneficiou dos sonhos dos
camponeses. Pois o tal palacete pertencia ao Nunes. E o mais notável é que o
próprio Manuel se surpreende com a opulência da construção, chegando mesmo a
confessar que era muito mais do que aquilo que ele havia sonhado. Aquilo
ainda era melhor do que a casa que ele havia imaginado para si, porque em ter
automóvel nunca pensara e a terra do jardim rendia mais feita horta.
Isso
demonstra claramente que as aspirações de Manuel da Bouça não ultrapassaram, em
momento algum, sua própria realidade de camponês, configurando-se apenas dentro
de um imaginário delineado por suas identificações com a terra e a aldeia.

A partir daí, Manuel
da Bouça sente que será impossível reatar o laço que o prendia à terra. Um
momento, admitiu o seu regresso à enxada, ao cultivo do seu quintal, ao trabalho
nos campos dos outros. Mas já não se via nitidamente na situação pretérita e
parecia-lhe difícil, impossível quase, adaptar-se de novo à sua vida de outrora.
Sentia algo que não sabia explicar a si próprio, mas que o divorciava da terra;
algo que se intrometera no seu espírito enquanto estivera longe, fazendo dele um
homem diferente do que era antes de ir para o Brasil. Sentia-se quase um
estranho ali
e via tudo com olhos de quem não vem para ficar, de quem já não é capaz de ficar
sem grande sacrifício.

Manuel da Bouça
decide abandonar sua aldeia em direção a Lisboa, pois a terra e a vida no campo
já não significam mais nada, chegando ao ponto de surpreender-se com sua antiga
vontade de comprar os campos do Esteves. Agora é a cidade e sua polissemia que
acenam para ele como possibilidade derradeira; a cidade com sua multiplicidade
de signos, de cores e sons dentro dos quais ele poderá permanecer absolutamente
anônimo.

Manuel das Bouças
sofre duas vezes a experiência de ser estrangeiro: a primeira, durante o período
de emigração, relacionada à sua vivência no exterior onde ele se sente
deslocado no meio estranho, pobre, mazorro, analfabeto, entregue ao desânimo da
ambição que não se realizava
; a segunda, ao retornar à sua terra, já não
conseguindo reconhecê-la através das mudanças pelas quais ambos haviam passado.

Manuel da Bouça vive
como se fosse um autômato, realiza seu trabalho mecanicamente, pensando apenas
no retorno.

O fato de o livro
encerrar-se com a partida de Manuel da Bouça em direção a Lisboa é muito
significativo. As metrópoles são espaços híbridos, onde nada está fixado. O
final do livro aponta, portanto, para um movimento de abertura, de
desnaturalização, já que não podemos adivinhar qual será o destino de Manuel da
Bouça em meio.

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