Home EstudosLivros Ensaios fotográficos, de Manoel de Barros

Ensaios fotográficos, de Manoel de Barros

by Lucas Gomes

Ensaios fotográficos

é o décimo segundo livro
de Manoel de Barros. Nele o autor mistura árvores com Bach, une Maiakovski
a pássaros, mescla Shakespeare e Buson aos seus pequenos seres, combina
Rabelais com pedras, exercitando todo seu talento e sensibilidade. Manoel de
Barros utiliza a imagem e a fotografia como meio para a busca do instante-nada
das coisas. Para tanto, encarna um fotógrafo que retrata o silêncio,
o perfume, o vento, constatando: “Hoje eu atingi o reino das imagens,
o reino da despalavra
“.

A obra estrutura-se em duas partes: “Ensaios fotográficos”
– epígrafe de Jorge Luis Borges: “Imagens não passam
de incontinências do visual”, composta por 15 poemas – e “Álbum
de família” – epígrafe de Clarice Lispector: “Eu
te invento, ó realidade!”, com 11 poemas que são mais específicos
sobre personagens que fizeram parte da vida de Manoel de Barros, além
de suas constantes reflexões sobre o fazer poético, que já
despontam na primeira parte, que dá título ao livro. . Além
das epígrafes, dois enunciados gráficos dialogam com os respectivos
subtítulos. Há, portanto, desde cedo, uma razão de continência
que sugere situar o leitor diante de algo meticuloso, pensado e estrategicamente
concebido.

Os textos da segunda parte, “Auto-retrato”, “O poeta”,
“Palavras” e “Comportamento”, falam dele mesmo e de seus
poemas. Manoel, como ele mesmo – um ortônimo?- é sua poesia. Como
diria Fernando Pessoa: “o poeta é um fingidor / finge tão
completamente/que chega a fingir que é dor / a dor que deveras sente”
.
Manoel é Manoel, mesmo quando finge ser outros. Talvez por isso mesmo
traz sua metapoesia sob o título: “Álbum de Família”.
Vamos encontrar nos poemas “Auto-retrato” e “O poeta alguns de
seus traços, a imagem que ele faz de si mesmo.

Como toda grande poesia, a de Barros trata do destino do homem, do medo da
morte, da sombra da infância se projetando sobre o adulto, da busca da
felicidade e conseqüente contencioso de frustrações e da
face oculta de um Deus que nos perseguem vida afora. Há uma técnica
de encantamento verbal, em particular, que permite ao poeta revelar os ‘limiares
primordiais’ entre as coisas da alma e da natureza. Sua poesia, repleta
de locuções regionais e surpresas sintáticas, costuma ser
associada à literatura de Guimarães Rosa.

Manoel de Barros manipula os poemas como se fotografasse cenas insignificantes,
menores, mas com uma lente estranha, que revela não a alma do objeto,
mas seu avesso, seu múltiplo, miríades de cores e formas que os
olhos não captam normalmente. Fotografias das entrelinhas, daquilo que
fica “entre”, nos interstícios da palavra com aquilo que ela
procura representar.

Seus versos são livres e brancos, não usa pontuação
nem ligação entre eles; os textos poéticos manuelinos não
apresentam uma nítida separação entre poesia e prosa. Seus
versos e realizam de forma fragmentada, por meio de cortes e montagens, através
de recorte e reorganização sintática de seus elementos.
Se por um lado seus textos são melódicos, rítmicos, apresenta
um impressionante desfile de elementos onomatopaicos e metonímicos, além
do emprego de metáforas insólitas e imagens inusitadas, o que
é próprio do poema; por outro, em seus textos perambulam personagens,
compondo seus alter-egos, entrelaçando-se em narrativas, o que é
próprio da prosa.

No poema “O roceiro”, o poeta compara o fazer poético ao ato
de plantar uma semente. E como um cuidadoso agricultor da palavra, escolhe a
semente, lança-a no terreno do papel e a burila até que encontre
o lugar perfeito; depois arranca as ervas daninhas (palavras acostumadas), afasta
aquilo que pode afetar e enfraquecer a composição como os adjetivos;
em seguida, cobre-a com os substantivos. Na esteira de Drummond e Murilo Mendes,
Manoel também busca uma poesia substantiva, objetividade e precisão
dos vocabulários, preocupa-se em desbastar suas imagens dos resíduos,
ficando apenas a nua intuição das formas e a sensação
aguda dos objetos, que delimitam o espaço do homem moderno.

Manoel procura um novo modo de representar o mundo, captando a natureza a partir
de relações. Segundo essa tendência, as coisas mudam de
aparência de acordo com o ponto de vista escolhido para focalizá-las,
procura uma nova forma de ver o mundo, de percebê-lo. Ele se distancia
de seu estado de espírito, fala a respeito do objeto sem paixão,
dando-lhes nuanças a partir do pensamento e da visão e não
do sentimento.

Uma sede de atualização técnica e um gosto da coisa e
da pedra – às vezes um manuelirismo-, entram a compor a mitologia do
nosso poeta. Sua originalidade está mesmo nesta escolha, nada convencional,
de seus motivos poéticos. Para construir suas imagens utiliza-se de comparações
e metáforas insólitas, narrações fragmentadas, combinações
novas para palavras conhecidas. Sua linguagem é enxuta, concisa. A virtude
de abstrair as linhas e as cores essenciais parece ser um traço constante
em sua obra.

No clarear do dia vou para o roçado
A capinar.
Até de tarde tiro o meu eito: arranco inços, tranqueiras
Jóias e bosta de bugiu que não serve nem para esterco.

Retoma, no poema “Línguas”, a busca da palavra primitiva,
que ainda não foi contaminada pelo uso abusivo, aquela da qual não
se busca o significado, mas a sonoridade de seus desvios. Manoel diz:

“(…)
O que eu aprendi foi manobrar com as palavras.
(…)
Escuto bem o equilíbrio sonoro das letras e das sílabas. Isso
produz harmonia nas frases
(…)”
.

Errar língua pode ser subvertê-la, renová-la ou mesmo atravessá-la
sem rumo, numa errância filosófica cheia de surpresas e deslumbramentos.
A errância do poeta se escora na liberdade dos conceitos, na possibilidade
de intervir na configuração de um termo até transformá-lo
num ente novo. Barros nos revela “que os poetas podem refazer o mundo
por imagens,
/ por eflúvios, por afeto“, no poema
“Despalavra”. Noutro texto, o poeta diz que não desestrutura
a linguagem, como teria dita algum crítico, mas que as palavras é
que desestruturam a linguagem, como se o poeta fosse apenas uma vítima.

A obra apresenta um interessante jogo entre matéria e desmaterialização,
representação objetiva e não-objetividade, na medida em
que se pretende
registrar através da fotografia as imagens selecionadas pelo poeta. A
inquestionável fotografia perde essa qualidade na medida em que deixa
de ser utilizada para registrar o objeto. No primeiro poema, “O fotógrafo”,
já se pode verificar que as imagens são irrepresentáveis:

Ia o Silêncio pela rua carregando um bêbado. (…)
Fotografei esse carregador. (…)
Tinha um perfume de jasmim no beiral de um sobrado.
Fotografei o perfume.
Vi uma lesma pregada na existência mais do que na pedra.
Fotografei a existência dela.
Vi ainda um azul-perdão no olho de um mendigo.
Fotografei o perdão.
(p.11)

A opção por fotografar o não representável: o silêncio,
o perfume, a existência e o perdão, se por um lado traduz uma nova
visualidade, por outro reafirma uma poética voltada para a palavra numa
relação essencialmente disjuntiva para com a imagem.

Pode-se perceber, desde o título, como se radicaliza a relação
da poesia de Manoel com a visualidade e como nessa relação se
vai problematizar tanto o visual como o subjetivo. Nesse livro, através
da idéia de fotografia, o poeta, ao mesmo tempo em que demonstra exatamente
o contrário do estereótipo romântico do subjetivismo, apresenta
uma nova maneira de trabalhar as imagens ligadas à natureza. A fotografia
aí é uma forma de explicitar o caráter complexo e fascinante
da imagem visual, ao mesmo tempo presença e ausência

No poema “O poeta”, por exemplo, o sujeito lírico explica
como se deu, aos treze anos, a sua entrada no universo da poesia, que aí
ganha a concepção de reino das imagens, a ser atingido através
de todos os poemas desse livro:

De tarde fui olhar a Cordilheira dos Andes que
se perdia nos longes da Bolívia
E veio uma iluminura em mim.
Foi a primeira iluminura.
Daí botei meu primeiro verso:
Aquele morro bem que entorta a bunda da paisagem.
Mostrei a obra pra minha mãe.
A mãe falou:
Agora você vai ter que assumir as suas
irresponsabilidades.
Eu assumi: entrei no mundo das imagens.

A poesia aí nasce da observação de uma paisagem comum,
a da Cordilheira dos Andes, distante e perdida no horizonte, capaz no entanto
de provocar a
inspiração poética, que não advém como uma
iluminação e sim como uma iluminura (como um pequeno ornato),
que sugere a importância do detalhe na obra de
Barros. Seu olhar procura sempre o pequeno, o sem importância, e dessa
forma transgride o lugar-comum da poesia grandiloqüente. O verso que nasce
da
iluminura parece representar o olhar de um fotógrafo que enquadra a paisagem
e vê a realidade como um desenho composto por linhas. Por isso, a imagem
poética é a transgressão da imagem perfeita: “Aquele
morro bem que entorta a bunda da paisagem
”.

Nos poemas “Comparamento” e “Despalavra”, o poeta repensa
a poesia, daí o ato de escrever ser uma depuração. Mas
esse exercício não é fácil, ele o explica no poema
“Comparamento”. À maneira das águas de um rio que ao
longo de seu percurso recebem sucatas da humanidade, mas que podem chegar à
boca filtradas, as palavras recebem torpezas, demências, vaidades em sua
depuração para a poesia, onde deságuam escorreitas e livres
das tripas do espírito de seu criador. E se mostram despidas das impurezas
como Manoel as desejou, para a nós se expor e emocionar.

O poeta brinca com o texto, mas como ele mesmo explica, são as palavras
que o tiram da construção segura, da lógica, da metáfora
esperada, desviando-o para uma construção torta, que desafia os
sentidos e a razão e que desapruma por arrevesamento sintático.
Ao se retirarem do lugar comum, as palavras desestruturam a linguagem, quebram
estruturas, fazem colagens irregulares, pintam de cores inexistentes, escrevem
e lêem de cabeça-para-baixo. Enfim, deixam Manoel levar a culpa
que é delas de desestruturar a língua. O poeta se explica no poema
“Palavras”: “(…) Foram as palavras pois que desestruturaram
a linguagem. E não eu.”
(BARROS: 2000, p.57)

É nesse processo de destruição e construção
que Manoel experimenta equivocar o sentido das palavras, numa espécie
de alquimia lingüística. No percurso para a poesia, desvirtua-se,
como confirma o poema “Comportamento”: “(…) Mas que essa
mudança de comportamento gental/para animal vegetal ou pedral / É
apenas um descomportamento semântico.
(ibid, p.65) Todo comportamento
que apresenta um desvio vira poesia. Há uma meditação acerca
da criação poética que se dá na própria composição,
instaurando o espaço para o exercício de uma metalinguagem que
está além da corriqueira definição da poesia. No
caso de Manoel, trata-se de encontrar em objetos, coisas, poetas e poemas aquelas
situações ou formas com que a sua linguagem passa a dialogar.

Fontes: Maria Adélia Menegazzo, Universidade Federal de Mato
Grosso do Sul – UFMS | Antonio Francisco de Andrade Jr., Caderno de
Letras, Universidade Federal Fluminense – UFF | Luciete Bastos, Profª de
Literatura Brasileira da Universidade Estadual da Bahia, UNEB | Igor Rossoni,
Doutor em Letras, Instituto de Letras, Universidade Federal da Bahia –
UFBA

Posts Relacionados