Home EstudosLivros A cidade ilhada, de Milton Hatoum

A cidade ilhada, de Milton Hatoum

by Lucas Gomes

A cidade ilhada

é o primeiro livro de histórias curtas
(contos) de Milton Hatoum. Segundo o autor, “‘A Cidade Ilhada’
reúne 18 contos que selecionei nos últimos 18 anos
“.
É limitado demais dizer que se trata de uma obra de caráter regionalista.
Há uma organização espacial bem definida, é verdade,
mas os conflitos acentuados no enredo são amplos, universais.

A maioria dos contos tem como cenário a mesma Manaus cosmopolita que
costuma aparecer em sua obra, cidade habitada pela memória inventada
de narradores nativos e estrangeiros e, é claro, do próprio autor,
e também pelo contraste entre esplendor e miséria, pelo fascínio
encarnado na exuberância natural da região, com seus rios e mistérios,
e a decadência que a consumiu nas últimas décadas.

O trânsito se dá também em outro sentido na coletânea
de contos: vez ou outra reaparece um personagem já visto em seus livros
anteriores. É o caso do tio Ranulfo, original de Cinzas do Norte,
que surge em dois momentos de A Cidade Ilhada.

Se o cenário e os personagens soam familiares, há algumas novidades
de tom em A Cidade Ilhada. Pois, em vez da violência tão
impetuosa que permeia suas histórias anteriores, nos contos reverbera
um lirismo que, se não é novidade (ele parece estar sempre à
espreita nos textos de Hatoum), aqui ousa se aproximar cada vez mais do humor.
Os contos refletem mais a vida nômade, que foi também a de Miton
antes de se tornar um autor consagrado, pois viveu por alguns anos na Europa;
depois, deu aulas de Literatura nos Estados Unidos, e hoje mora em São
Paulo. As histórias têm humor e leveza porque dizem respeito à
sua vida de andarilho, que foi uma época de pobreza, mas de muita alegria,
segundo Hatoum.

A leveza está em histórias como “Dançarinos na última
noite”, a preferida de Hatoum, no qual o empregado de um hotel encontra
uma pequena fortuna dentro de uma jiboia. Em vez de mudar de vida, decide viver
como um rico, por apenas uma noite. Ou em “Encontros na península”,
em que o protagonista ensina Machado de Assis a uma viúva espanhola,
que quer estudar a obra do brasileiro para se vingar do ex-amante – um dos contos
nos quais Hatoum se distancia de Manaus e de seus personagens habituais.

Mas o momento de maior lirismo está talvez em “Um oriental na
vastidão”, outro no rol de preferidos do escritor: um professor
japonês realiza, de forma inusitada, o maior sonho de sua vida, conhecer
o Rio Negro. Como de praxe, em todos os contos se mistura a história
do próprio Hatoum, suas “memórias recriadas”.

Trabalhando com temas aparentemente comuns Milton Hatoum constrói contos
repletos de silêncios e sutilezas, exigindo atenção e participação
do leitor, retribuindo com conflitos profundos e universais.

“Varandas da Eva”, o primeiro conto do volume, já é
um bom exemplo. A história narra a lembrança de um episódio
ocorrido na infância do narrador, quando visitou, pela primeira vez, o
bordel Varandas da Eva, e lá passou uma noite, sua primeira, com uma
bela e enigmática mulher. Voltou ao local no dia seguinte, e em outros,
e outros, e nunca mais encontrou-a, até que muito tempo depois encontraria
um grande amigo seu, também dos tempos de meninice, e descobre que aquela
mulher era sua mãe. As diferenças sociais de um grupo de amigos
parecem pequenas quando todos não passam de meninos que descobrem a vida.
O tempo passa e as memórias de uma juventude de aventuras livres são
atropeladas pela separação (inevitável?) entre pobres e
não pobres e por uma atormentadora coincidência. Hatoum faz uma
leitura nostálgica do passado neste texto. Chora a passagem do tempo,
capaz de dissipar “os gozos sem fim”, dando espaço para que
a aspereza de cada ato da vida surja “como um cacto, ou planta sem perfume”.

Em uma leitura mais atenta percebe-se o amigo do narrador como o menino pobre
que ganhou as roupas para visitar o bordel e se emocionou ao experimentá-las,
para chacota dos demais; a hesitação do menino no dia da tão
esperada visita, e seu posterior sumiço; o carinho e o mistério
da mulher para com o narrador. E vê-se que cada frase, cada cena, cada
comentário tem uma função no texto e ajuda a construir
aquele desfecho, e é nessa leitura que entende-se ser esta não
a história de um menino em busca da primeira mulher, mas de um menino
tornando-se homem e perdendo, com isso, muito da antiga ingenuidade, muito da
ilusão:

“Anos depois, num fim de tarde, eu acabara de sair de uma vara cível,
e passava pela avenida Sete de Setembro. Divagava. E já não era
jovem. A gente sente isso quando as complicações se somam, as
respostas se esquivam das perguntas. Coisas ruins insinuavam-se, escondidas
atrás da porta. As gandaias, os gozos de não ter fim, aquele arrojo
dissipador, tudo vai se esvaindo. E a aspereza de cada ato da vida surge como
um cacto, ou planta sem perfume. Alguém que olha para trás e toma
um susto: a juventude passou.”

A outra ponta da vida, a velhice e os desejos vencidos estão lindamente
apresentados em “Dois Poetas da Província”. O texto aborda
o encontro de Albano e Zéfiro, dois poetas, um ex-aluno do outro, ambos
apaixonados por Paris. Albano se prepara para embarcar para França. Zéfiro,
um poeta que nunca publicou um livro, vive em Manaus o sonho europeu, e se orgulha
em desprezar o governo militar com a mesma altivez em que ignora “a cachaça,
o sol da tarde e a floresta”. Albano, o ex-aluno, é também
uma espécie de alter ego do professor, se não por sua postura
diante da poesia, certamente por sua postura diante da vida.

As memórias de menino são recorrentes, e outro texto fantástico
protagonizado por um menino, provavelmente o mesmo de “Varandas da Eva”,
embora isso não fique claro e nem seja necessário, é “Uma
estrangeira da nossa rua”. Aqui a história aparente conta o amor
platônico de um menino por uma vizinha ruiva, filha de estrangeiros que
jamais deixavam a casa, embora fossem afáveis com todos na rua. A história
oculta, porém, revela mais, revela o fosso social que se cria entre comunidades
muito próximas, revela a dificuldade de relacionamento entre culturas
diferentes, revela o medo e até a soberba daqueles que julgavam trazer
o progresso. O conto, aliás, lembra muito um conto de Cortazar, “Final
do jogo”, em que também uma narradora menina conta a história
de um amor impossível, que surge pela juventude e ingenuidade dos amantes
e não se concretiza pelas complicadas e definitivas regras sociais.

O olhar estrangeiro em Manaus permeia praticamente todo livro, como deve mesmo
ser para quem cresce na fronteira entre o país urbanizado e a floresta,
entre a modernidade e o selvagem. O estrangeiro de “A Cidade Ilhada”
é atento, curioso, desconfiado com tudo que cerca o mundo real.

Em “Uma Estrangeira da Nossa Rua”, a família Doherty mantém-se
distante do entorno. Pai, mãe e duas lindas filhas estão isolados
do país pelo muro da casa, numa discrição excessiva que
os afasta das relações mais casuais. É nesse ambiente de
distanciamento que o narrador percebe a presença de Lyris, a jovem sedutora
porque o garoto sente “alguma coisa terrível e ansiosa parecida
com a paixão”. Outro olhar estrangeiro, dessa vez de um brasileiro
em Berkeley, está em “Uma Carta de Bancroft”. Aqui, o narrador
descreve seu espanto ao encontrar uma carta fictícia de Euclides da Cunha
numa biblioteca americana. No manuscrito, o escritor descreve um sonho e uma
cena premonitória. Mais uma vez, Manaus aparece emaranhada. O narrador
diz que a cidade o persegue, mesmo quando não é solicitada, “como
se a realidade da outra América se intrometesse na espiral do devaneio
para dizer que só vim a Brancoft para ler uma carta amazônica do
autor de Os sertões.

Há nessa cidade ilhada, ainda, espaço para crimes (“A casa
ilhada”), fascínios (“Um oriental na vastidão”),
sonhos (“Dançarinos na última noite”) e até espaço
para outras cidades, como “Bárbara no Inverno”, que conta a
história de um casal de exilados políticos em Paris, ou “Encontros
na península”, interessantíssimo conto-ensaio que dialoga
com a obra de Machado de Assis.

O conto “Manaus, Bombaim, Palo Alto”, é um dos mais divertidos,
quase anedótico: um escritor amazonense recebe um telefonema misterioso
de um assessor do governo, pedindo que receba a visita de um almirante indiano.
O estrangeiro, segundo o funcionário, quer simplesmente conhecer um homem
de letras da cidade. O encontro, no apartamento do escritor é embaraçoso:
um temporal deixa goteiras à mostra, e Leon, seu gato amarelo, insiste
em se enroscar na calça impoluta do almirante. Anos depois, o autor descobre
que esse é, na verdade, um jornalista disfarçado, e que descrevera
num periódico indiano que a casa do escritor mais parecia um chiqueiro.
Hatoum revela que este é o conto mais autobiográfico do livro.

Vale ainda um trecho de “Encontros na península”, em que um
jovem brasileiro morando em Barcelona é procurado por uma mulher para
aprender português do Brasil com o intuito de ler Machado de Assis e refutar
a afirmação de seu amante português de que ele fora infinitamente
inferior a Eça de Queirós:

“Não, mas é louco por Eça de Queirós.
Ele disse que Machado foi pérfido ao criticar cruelmente dois romances
do escritor português. Não sei se isso é verdade; sei que
Soares não se conforma com essas críticas, e até ficou
exaltado quando perguntou: por que a dor física e a miséria são
menos aflitivas que a dor moral? Ele não se cansa de afirmar que Eça
é muito superior a Machado, que é o maior escritor brasileiro.
Por isso eu quis ler no original o rival de Eça. Coisas de amantes.”

Leia na íntegra o conto “Varandas da Eva”:

“Varandas da Eva: o nome do lugar.

           Não
era longe do porto, mas naquela época a noção de distância
era outra. O tempo era mais longo, demorado, ninguém falava em desperdiçar
horas ou minutos. Desprezávamos a velhice, ou a ideia de envelhecer;
vivíamos perdidos no tempo, as tardes nos sufocavam, lentas: tardes paradas
no mormaço. Já conhecíamos a noite: festas no Fast Clube
e no antigo Barés, bailes a bordo dos navios da Booth Line, serenatas
para a namorada de um inimigo e brigas na madrugada, lá na calçada
do bar do Sujo, na praça da Saudade. Às vezes entrávamos
pelos fundos do teatro Amazonas e espiávamos atores e cantores nos camarins,
exibindo-se nervosamente diante do espelho, antes da primeira cena. Mas aquele
lugar, Varandas da Eva, ainda era um mistério.
           Ranulfo, tio
Ran, o conhecia.
           É um
balneário lindo, e cheio de moças lindas, dizia ele. Mas vocês
precisam crescer um pouquinho, as mulheres não gostam de fedelhos. Invejávamos
tio Ran, que até se enjoara de tantas noites dormidas no Varandas. A
vida, para ele, dava outros sinais, descaía para outros caminhos. Enfastiado,
sem graça, o queixo erguido, ele mal sorria, e lá do alto nos
olhava, repetindo: Cresçam mais um pouco, cambada de fedelhos. Aí
levo todos vocês ao balneário.
           Minotauro,
fortaço e afoito, quis ir antes. Foi barrado no portão alto, cuspiu
na terra, deu meia-volta, quase marchando para trás. Era um destemido,
o corpo grandalhão, e um jeito de encarar os outros com olho quente,
de meter medo e intimidar. Mas a voz ainda hesitava: era aguda e grossa, de
periquito rouco, e o rosto de moleque, assombrado, meio leso.
           Gerinélson
era mais paciente, rapaz melindroso, sabia esperar. Já namorava de dar
beijos gulosos e acochos, e nos surpreendia em pleno domingo guiando uma lambreta
velha, roubada do irmão. Na garupa, uma moça desconhecida, de
outro bairro. Ou estrangeira. A máquina passava perto da gente, devagar,
roncando, rodeando o tronco de uma árvore. Depois acelerava, sumindo
na fumaceira. Ele sempre gostou de desaparecer, extraviar-se. Gerinélson
era e não era da nossa turma. Eu o considerava um dos nossos. Ele, não
sei. Tinha uns segredos bem guardados, era cheio de reticências: não
se mostrava, o rapaz.
           O Tarso era
o mais triste e envergonhado: nunca disse onde morava. Desconfiávamos
que o teto dele era um dos barracos perto do igarapé de Manaus; um dia
se meteu por ali e sumiu. Raro sair com a gente para um arrasta-pé. Ele
recusava: Com esses sapatos velhos, não dá, mano. Um cineminha,
sim: duas moedas de cada um, e pagávamos o ingresso do Tarso. E lá
íamos ao Éden, Guarany ou Polytheama. Depois da matinê,
ele escapulia, não ficava para ver as meninas da Escola Normal, nem as
endiabradas do Santa Dorothea. Tarso queria vender picolés e frutas na
rua, queria ganhar um dinheirinho só para entrar no Varandas da Eva.
Mas era caro, não ia dar. Então tio Ranulfo prometeu: Quando chegar
a hora, pago pra todos vocês.
           Tio Ran, homem
de palavra, foi generoso: espichou dinheiro para a entrada e a bebida. Depois
tirou um maço de cédulas da carteira. Disse: Isso é para
as mulheres. E nada de molecagem. Cada um de vocês deve ser um gentleman
com aquelas princesas.
           Contamos as
cédulas: dava e sobrava, era a nossa fortuna. Compramos na Casa Colombo
um par de sapatos, e tia Mira costurou uma calça e uma camisa, tudo para
o Tarso. Quando ele experimentou a roupa nova, parecia outro, ia chorar de alegria,
mas Minotauro, maldoso, debochou: Deixa pra chorar depois da farra, rapaz. Quem
fica feliz de roupinha nova é moça.
           Eles ficaram
cara a cara, os olhos com faíscas de rancor. Tia Mira se intrometeu,
com súplicas de trégua e paz. Os dois olharam para minha tia,
os rostos mais serenos, o pensamento talvez em outras searas.
           Marcamos a
noitada para uma sexta-feira de setembro. Gerinélson pegou o dinheiro,
quis ir sozinho, de lambreta. Tio Ran nos levou em seu Dauphine, parou quase
na porta, nos desejou boa noitada. Quando íamos entrar, Tarso hesitou:
deu uns passos para a frente, recuou, quis e não quis entrar. Ficou mudo,
mais e mais esquisito, fechou-se. Nós o desconhecemos: luz e dança
não o atraíam? Minotauro puxou-o pela camisa, enganchou a mão
no pescoço dele, repetindo: Bora lá, seu leso. Nosso amigo abaixou
a cabeça, concordando, mas com um salto se desgarrou, e correu para a
escuridão.
           Tarso, um
desmancha-prazer. Deixamos o nosso amigo. A vontade não é de cada
um e em cada dia? Minotauro soltou um grunhido, resmungou: Não disse?
Roupinha nova é mimo pra mocinha.
           Entramos.
Um caminho estreito e sinuoso conduzia ao Varandas da Eva. Aos poucos, uma sombra
foi crescendo, e no fim do caminho uma luminosidade surgiu na floresta. Era
uma construção redonda, de madeira e palha, desenho de oca indígena.
Mesinhas na borda do círculo, um salão no meio, iluminado por
lâmpadas vermelhas. Uns casais dançavam ali, a música era
um bolero. Minotauro apontou uma mesinha vazia num canto mais escuro. Sentamos,
pedimos cerveja, um cheiro de açucena vinha do mato. E Gerinélson,
se extraviara? Na luz vermelha, quase noite, Minotauro me cutucou: uma mulher
sorria para mim. Não vi mais o Minotauro, nem quis saber do Gerinélson.
Só olhava para ela, que me atraía com sorrisos; depois ela me
chamou com um aceno, girando o indicador, me convidando para dançar.
Não era alta, mas tinha um corpo cheio e recortado, e um rostinho dos
mais belos, com olhos acesos, cor de fogo, de gata maracajá. Dançamos
três músicas, e dançamos mais outras, parados, apertadinhos,
de corpo molhado. Ela percebeu minha ânsia, me apertou com gosto, e me
levou, no ritmo lento da música, para fora do salão. Por outro
caminho me conduziu a uma das casinhas vermelhas, avarandadas, na beira de um
igarapé. Ficamos um tempo na varandinha, no namoro de beijos e pegações.
Depois, lá dentro, ela fechou a porta, e deixou as janelas entreabertas.
O som de um bolero morria na casinha avarandada.
           Ela me ensinou
a fazer tudo, todos os carinhos, sem pressa, com o saber de mulher que já
amou e foi amada. Passamos a noite nessa festa, sem cochilo, e muitos risos,
de só prazer. Fez coisas que davam ciúme, carícias que
não se esquecem. Perguntei como ela se chamava. Ela disfarçou,
e disse, rindo: Meu nome? Tu não vais saber, é proibido, pecado.
Meu nome é só meu. Prometo.
           A voz e a
risada bastavam, minha curiosidade diminuía. Nome e sobrenome não
são aparências?
           Não
quis me ver nem ser vista à luz do dia; quando as águas do igarapé
ficaram mais escuras do que a noite, ela pediu que eu fosse embora. Obedeci,
a contragosto. Saí no fim da madrugada, caminhando na trilha de folhas
úmidas. Naquela manhã o sol teimou em aparecer no céu fechado.
           Voltei ao
Varandas no mesmo dia, a fim de revê-la; voltei muitas vezes, sempre sozinho,
nunca mais a encontrei.
           O Tarso disse
que não entrou no Varandas porque teve medo.

           Medo?
           Ele sério,
e calado.
           Minotauro me
contou sua farra, cheia de façanhas. A grande gandaia, noite e dia, ele
disse com uma voz que não tremia mais, voz bem grossa, de cachorrão.
O Gerinélson me olhou de soslaio, sorriu de fininho, desconversou. Ele
não se mostrava mesmo. Gostava das coisas só para ele, guardando
tudo na memória, dono sozinho de seus feitos e fracassos.
           Nos meses seguintes,
ainda tentei ver a mulher, pulava de um clube para outro, os lupanares de Manaus.
Até hoje, sinto ânsia só de lembrar.
           Tia Mira dizia
que eu estava babado de amor. Estás tonto por uma mulher, ela ria, observando
meu devaneio triste, meu olhar ao léu.
           O Tarso não
quis conversar sobre aquela noite. Foi o primeiro a se afastar da turma: teve
de abandonar a escola, queria ser prático de motor, ou, quem sabe, capataz
numa fazenda do Careiro.
           Três anos
depois, meus tios Mira e Ran mudaram de bairro; os encontros com meus amigos tornaram-se
fortuitos, minha vida procurou outros rumos. O único que cruzou o meu caminho
foi Minotauro; cruzou por acaso, quando eu saía do bar Mocambo e ele ia
visitar um amigo no quartel da Polícia Militar. Estava fardado, era soldado
S1 e se preparava para o exame de suboficial da Aeronáutica. Servia na
base terrestre, de guerras na selva. Não queria voar.
           Sou homem com
pés no chão, ele foi logo dizendo. É emocionante a gente
se perder na mata, os perigos me atraem, mano. A gente entra na floresta, escuta
os ruídos da noite e a noite é escura que nem o dia. É um
desafio. Toda a cambada tem que caminhar naquele ziguezague escuro, dormir sem
saber onde está, matar os bichos e encontrar a saída para a sede
do comando.
           Falava com desembaraço,
cheio de si, alisando com os dedos grossos a boina azul. O rosto continuava assombrado,
quase feroz, e a risada saía que nem uivo. Ele havia topado com o Gerinélson:
           O leso do Geri
viajou para São Paulo. Quer ser doutor, médico de mulher. Quer se
aproveitar delas, riu o Minotauro, tenebroso, mostrando dentes de cavalo. Tu nem
sabes… O Geri sempre foi sonso, andou pelo Varandas antes da gente, sempre foi
caído por mulheres de todas as idades.
           Dei um risinho
chocho, sem vontade. Minotauro já era meu ex-amigo? Está em outro
mundo, nossos pensamentos não se encontram. Foi o que eu remoí naquele
instante.
           E o Tarso?
           Mais pobre do
que eu, ele disse. Deve estar caído por aí. Pobre pobre não
se levanta, mano. Nem soldado o coitado do Tarso pode ser.
           O Minotauro
me tratou com carinho. Não sei se naquele dia eu tive pena ou raiva dele.
Desprezo, talvez. Ele se despediu com um abraço forte, de estalar as costelas.
Era socado, um monstro. Pôs a boina na cabeça e saiu andando, desengonçado,
cumpridor de deveres.
           Anos depois,
num fim de tarde, eu acabara de sair de uma vara cível, e passava pela
avenida Sete de Setembro. Divagava. E já não era jovem. A gente
sente isso quando as complicações se somam, as respostas se esquivam
das perguntas. Coisas ruins insinuavam-se, escondidas atrás da porta. As
gandaias, os gozos de não ter fim, aquele arrojo dissipador, tudo vai se
esvaindo. E a aspereza de cada ato da vida surge como um cacto, ou planta sem
perfume. Alguém que olha para trás e toma um susto: a juventude
passou.
           Quando andava
diante do Palácio do Governo, decidi descer a escadaria que termina próxima
à margem do igarapé; parei no meio da escada e me distraí
com a visão dos pássaros pousados nas plantas que flutuavam no rio
cheio. Foi então que vi, numa canoa, um rosto conhecido. Era Tarso. Remou
lentamente até a margem e saltou; depois tirou um cesto da canoa e pôs
o fardo nas costas, a alça em volta da testa, como faz um índio.
O corpo do meu amigo, curvado pelo peso, era o de um homem. Subiu uma escadinha
de madeira, deixou o cesto na porta de uma palafita, voltou à margem e
puxou a canoa até a areia enlameada. À porta apareceu uma mulher
para apanhar o cesto. Reapareceu em seguida e acenou para Tarso. Num relance,
ela ergueu a cabeça e me encontrou. Estremeci. Eu ia virar o rosto, mas
não pude deixar de encará-la. Ela me atraía, e a lembrança
surgiu agitada, confusa. A voz dela chamou: Meu filho! A mesma voz, meiga e firme,
da moça, da mulher da casinha vermelha, no balneário Varandas da
Eva. Era a mãe do meu amigo? Isso durou uns segundos. Por assombro, ou
magia, o rosto dela era o mesmo, não envelhecera. Mal tive tempo de ver
os braços e as pernas, a memória foi abrindo brechas, compondo o
corpo inteiro daquela noite.
           Tarso escondeu
a canoa entre os pilares da palafita, e entrou pela escadinha dos fundos. A mulher
já tinha sumido.
           Permaneci ali
mais um pouco, relembrando…
           Nunca mais voltei
àquele lugar.”

Créditos: Marcelo Spalding, Digestivo Cultural | Juliana
Krapp
, Gazeta Mercantil

Posts Relacionados