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A confissão, de Flávio Carneiro

by Lucas Gomes

Em A confissão, Flávio Carneiro retorna ao fantástico
(tão presente em seu primeiro livro), escrevendo cada palavra sobre a
linha finíssima que separa sanidade e loucura, realidade e fantasia.
O livro é um romance que começa muito realista e depois há
uma virada fantástica (o personagem que se confessa é o causador
da morte de Emma, porque ele é um vampiro), parte do real para inventar
uma nova concepção de vampiro: o vampiro moderno.

Não, é preciso que eu lhe tome esse tesouro, essa coisa
tão preciosa e ao mesmo tempo tão simples, corriqueira, isso que
atende pelo nome, ouça bem, que atende pelo nome de medo…

É o narrador-protagonista, cujo nome não é pronunciado,
anunciando o desenlace de uma estranha história. Ele seqüestrou
uma mulher e a levou para uma casa. Ali, ele começa a contar sua vida,
que envolve sentimentos como amor… e medo. Tudo começa assim: “A
senhora me escute, por favor. Em primeiro lugar, peço desculpas pelo
mau jeito. Sei que não foi nada gentil de minha parte interceptar seu
carro…

Uma busca frenética em que prazer e morte servem como meios para um
homem aparentemente comum restaurar as rédeas de sua própria vida.

A figura do vampiro é uma das formas como o diabo é visto e retratado
na literatura, é uma antítese ao cristianismo. Entretanto, o vampiro
de Flávio Carneiro é um personagem híbrido “mocinho-vilão”
ou “vilão-mocinho” que embora cause suspense e medo não
é visto como monstruoso, horroroso. Pois o desconhecido se torna conhecido
através de nós, leitores, que nos identificamos com o personagem
e identificamos a nós mesmos nele.

O autor cria o sugar da vítima, que não se torna vampiro pela
relação sexual, e o fato de o vampiro absorver não a juventude
ou a vida, mas o dom, o talento, que ele desejasse obter de sua vítima.
Situações como a vítima morrer, porém com a expressão
da felicidade, ou o vampiro ter que ser convidado pela vítima para entrar
na casa, ou lhe agradar mais os dias nublados que os dias ensolarados, claros,
mostram características tradicionais dos vampiros porém suavizadas;
elas servem no início do romance como sutis alusões à sua
vampiridade.

O romance é narrado por um homem que seqüestra uma mulher e a
leva para uma casa numa praia deserta. Ali, ele a amarra a uma poltrona e diz
que precisa lhe contar uma longa história. Aos poucos, vamos sabendo
que se trata de uma história de amor, medo e muitas surpresas, na qual
a mulher seqüestrada desempenha um importante, e inusitado, papel. O personagem-narrador
é um ser mimético, ele incorpora diferentes personalidades como
se fosse um personagem diferente de acordo com a situação que
quer causar. Assim, no início da narração ele transforma-se
no personagem que ele era antes para contar a história: em um episódio
que estava em um hotel, decide ser um homem estrangeiro e quieto, para não
estabelecer comunicação, ele opta por fazer o papel do que não
falar, e por vezes, camufla-se para conquistar uma mulher como ocorreu com Emma.
E, além de mimético, é um vampiro confesso.

Um seqüestrador explica para sua vítima, durante uma longa madrugada,
suas razões para capturá- la. Amarrada a uma poltrona, ela escuta
uma história de amor, medo e muitas surpresas. Da inusitada ocupação
do protagonista – um ladrão especializado em furtar livros – às
descobertas que ele faz sobre sua própria identidade, tudo é revelado
gradualmente no longo monólogo do seqüestrador em A Confissão.

O nome do protagonista nunca é mencionado, como também não
são revelados detalhes de sua família. Narrado na primeira pessoa
e sem diálogos, A Confissão é o relato labiríntico
e entrecortado das muitas histórias que o narrador tem para contar. O
leitor acompanha passo a passo as aventuras deste estranho sedutor, que parece
querer ao mesmo tempo atrair e amedrontar a mulher que tem diante de si. Mesclando
elementos de terror com suspense de policial “noir”, a narrativa
ágil de Flávio Carneiro é uma leitura surpreendente.

E assim como a mulher ouve com ansiedade o relato de seu seqüestrador
– querendo saber, afinal, por que está naquela casa e qual o seu destino
-, também o leitor é, de certa forma, capturado.

Com um ritmo ágil, A confissão transporta o leitor
para dentro da mente de um homem atormentado, sedento por retomar o controle
de suas próprias experiências. De sua tentativa, resulta um romance
forte, delicado, surpreendente.

Narrado em primeira pessoa, trata-se de um relato, ou melhor, da confissão
de um personagem anônimo que se descobre detentor de um dom, que é
ao mesmo tempo dádiva e maldição. Este dom leva o protagonista,
numa jornada que mescla o prazer à morte, a reunir uma gama considerável
de conhecimento e habilidades. Entretanto, exausto após anos de peregrinações
infindáveis, ele se vê com um desejo incontrolável de retornar
à cidade de origem, o Rio de Janeiro, e de volta percebe que nada mais
há para ser buscado ou aprendido. Angustiado, seqüestra uma senhora
da alta sociedade e decide lhe contar toda a sua história, na tentativa
de recobrar o controle sobre sua própria vida. É claro que a escolha
desta mulher não é aleatória, mas o real motivo que a teria
motivado só conhecemos ao final da narrativa.

Para a tessitura do texto, Flávio optou por uma linguagem limpa, correta,
que não abusa nem de excessiva erudição, nem de um simplismo
populista. O relato é construído de maneira investigativa, assemelhando-se
às narrativas policiais, sendo que, de dentro da narrativa principal,
a do protagonista, emergem as histórias das mulheres que ele conheceu,
dos diálogos que tiveram, das confissões que lhe ofereceram, das
memórias de que se apropriou. E a cada nova história, surgem novos
mistérios que não se revelam e acabam culminando no enigma principal.
Esse entremeado narrativo, longe de confundir o leitor, o atrai inevitavelmente
pela força da expectativa, que a cada nova história é potencializada.

Além disso, Flávio articula magistralmente o fantástico
ao verossímil, ao construir um discurso que narra o absurdo como possível,
sem soar falso, mas sem a obsessão de demonstrá-lo como verossímil.
E interrompe a narrativa no ápice, oferecendo possibilidades várias,
permitindo ao leitor mais exigente que a finalize com suas próprias interpretações.

Ao fazer de nós cúmplices de terríveis segredos, o romance
A Confissão, não só nos estimula a curiosidade
e o interesse com uma narrativa envolvente, mas também nos ensina que
uma metáfora bem feita pode permitir reflexão mais profunda e
efetiva que a clara obviedade.

A confissão feita no livro apresenta várias faces, pois são
várias confissões, várias histórias, de várias
pessoas. O que o narrador pratica é uma dupla confissão, a dele
e, indiretamente, a das mulheres que ele “sugou”, o que poderíamos
chamar também de múltipla confissão, pois na confissão
dele há muitas histórias (vivenciadas por ele ou narradas para
ele e que não foram vivenciadas diretamente nem narradas).

No entanto, essa relação pode ser interpretada como uma confissão
do livro para o leitor seqüestrado ou seduzido pela força (a obrigação
de ler o livro para a prova), pela palavra ou pela protelação
(o suspense gerado pela interrupção da história no momento
final, que só será revelado depois). Entre a mulher seqüestrada
e o leitor obrigado a ler há uma relação de semelhança,
como se um mimetizasse o outro: os dois são ouvintes por obrigação.

No romance, há também verossimilhança em relação
ao contexto do leitor e do autor pois o personagem narra os acontecimentos como
qualquer outra pessoa (escritor ou leitor) ao contar algo, sem obedecer a uma
ordem exata, abandonando a história no final e partindo para outra que
também será abandonada no final, final este que só será
revelado depois – o que gera suspende e sedução -, fazendo
observações próprias nas histórias de sua vida ou
da vida dos outros e respondendo espontaneamente supostas perguntas do ouvinte
(o que gera muitas vezes a sensação de que o narrador está
falando com a mulher seqüestrada, mas diretamente com o leitor). E, ainda,
porque o personagem é como nós que muitas vezes não queremos
dialogar, só precisamos de alguém que escute com atenção
sem sentenciar nenhum de nossos questionamentos, para os quais, na maioria das
vezes, já temos as respostas.

Assim, a confissão feita pelo homem não objetiva receber respostas
ou fórmulas certas de resolução porque ele estava contando
as suas histórias, de sua vida e da vida de suas vítimas, talvez,
apenas para ter certeza de que existia. Ela é estruturada pelo autor
de maneira a realçar o suspense, que é uma experiência contínua
que vai crescendo até atingir um clímax – isso é obtido
ao diminuir o terror, que se obtém como surpresa.

Ao lermos o livro tememos, ao nos identificar com os personagens, e então
descobrimos a necessidade de temer. De maneira que podemos concluir que o romance
comunicou toda a importância e necessidade do medo na vida, através
das identificações e relações de vampiridade que
foram estabelecidas entre leitor e livro, entre leitor e personagens.

Ao final do livro fica claro que o próximo ato do personagem será
transar com a mulher seqüestrada mesmo contra a vontade dela. No entanto,
o autor pára a história um instante antes do seu desfecho, o que
nos permite aumentar infinitamente os limites de nosso universo de leitura.
Assim, pode ser que ele tenha desistido de violentá-la, ou que a mulher
tenha quebrado um vaso na cabeça dele e fugido, ou, como sempre é
possível esta interpretação pobre: talvez tudo não
tenha passado de em sonho e o personagem acorde todo suado olhando para aquele
teto cheio de infiltração de seu quarto naquela pensão
barata do centro da cidade.

O anônimo narrador é também um anônimo trambiqueiro
das ruas do Rio de Janeiro, vivendo de roubar livros que vende a colecionadores
e a sebos. Costuma se embriagar de vinho barato, e sofre de uma ausência
de paladar. Sofre de outras ausências, certamente, conforme o leitor fatalmente
irá supor, ao longo do romance.

O que é pertinente à caracterização desse homem
como vampiro, inicia com sua fascinação por uma rica jovem chamada
Emma, que ele seduz após um encontro fortuito. O contato sexual com ela
termina com a morte da moça, de uma maneira que ele não consegue
explicar. Obcecado com a morte dela, ele vaga pela cidade até cair desmaiado
no centro do Rio, para ser socorrido por uma médica madura, Agnes, que
lhe informa sobre a sua natureza “vampírica”, por assim dizer.

Há dois aspectos interessantes, nesse momento do romance – o primeiro
é a evocação de um fandom de vampiros, pessoas fascinadas
com essa figura recorrente dos mitos e folclores e também da ficção,
e que muitas pessoas levam a sério como a versão que o esoterismo
fornece do vampiro – uma espécie de sanguessuga das energias vitais dos
outros. É claro, o segundo aspecto é justamente essa variação,
vinculada ao esoterismo, do vampiro como alguém que drena as energias
ou que consome ou abusa emocional e espiritualmente de outro alguém.
(A outra variação que sobra é a do vampiro animal, o morcegão
mesmo, que Martin Cruz Smith explorou em Terrores da Noite, de 1977.)

Em A Confissão, esse vampiro emocional é capaz de matar,
e durante o sexo, no que Flávio Carneiro evoca a sedução
fatal do vampiro da ficção posterior a Drácula. Essa é
uma associação direta e suficientemente clara. Uma dedução
que se firma ao longo do romance, porém, é a de que o narrador
possui encantos invisíveis (como pode um pobre-coitado seduzir tantas
mulheres sofisticadas e ricas?), um “magnetismo animal” aparentemente
infalível, para usar outro termo antigo. Para complicar e inserir um
outro plano de significados, Agnes, a aficcionada por vampirismo, entrega-se
a ele mesmo sabendo que irá morrer, mas disposta a enfrentar a morte
especial, que ele traz.

Tudo isso já seria bastante original e instigante, no contexto brasileiro,
mas uma sacada particularmente inspirada sobre a idéia do vampiro emocional,
é a de que este herdaria da vítima suas memórias, suas
sensações, suas experiências de vida. Assim o narrador cura-se
de sua falta de paladar, torna-se um apreciador de bons pratos e vinhos. Essa
absorção de memórias e experiências leva a uma outra
alusão instigante, a da imortalidade. O narrador-vampiro de Flávio
Carneiro envelhece como todos nós, mas ele é uma criatura muito
mais longeva, porque incorpora as existências das mulheres que matou.

Ele obviamente não herda qualquer solidez de caráter ou profundidade
existencial de suas amantes. Continua se comportando como uma espécie
de espertalhão pé-de-chinelo das ruas, sempre racionalizando precariamente
suas mesquinharias. Resulta na caracterização de um “narrador
não-confiável”, no sentido de que o leitor não pode
pôr a mão no fogo sobre tudo o que ele afirma, especialmente quando
ele diz que fazia “bem” às mulheres, ao matá-las, dando-lhes
o que supostamente elas queriam. Ao descobrir seu poder, usa-o para não
só amealhar conhecimentos que deseja possuir na sua ascensão da
sarjeta, mas para roubar de suas vítimas os valores que estiverem disponíveis.
Com isso ele viaja pelo mundo, conquistando novas amantes na Inglaterra, em
Portugal e em lugares que não se dá ao trabalho de nomear nem
numerar.

Sem dúvida, um aspecto determinante do romance é a imersão
do leitor, na personalidade do narrador, em sua incerteza e sua volubilidade,
simbolizada pela metáfora do copo meio cheio, meio vazio – quando ele
costuma tomar meias-resoluções. Para realizar esse mergulho, Flávio
tenta criar um discurso meio oral, meio literário, com certo relaxamento
da pontuação como principal recurso. Mas me pareceu quase perfunctório,
já que há uma gramática bastante correta subjacente, de
modo que quase que sem perceber o leitor vai mentalmente colocando os pontos
nos lugares certos. Ritmos da oralidade e rupturas mais radicais com o discurso
literário bem constituído poderia ter levado a um resultado mais
audacioso.

No plano do enredo, o romance realiza um final bastante terrificante, mas que
poderia ter causado um impacto ainda maior se tivesse se detido mais em detalhe,
nas mortes de suas amantes – especialmente na segunda metade, que é um
pouco mais “magra” em descrições, que a primeira. E
por falar em detalhes, o livro também teria alcançado uma visualidade
e um envolvimento maior (para este leitor, ao menos), com a presença
de mais detalhes específicos – de todo tipo: nomes de pessoas e lugares,
objetos e paisagens.

Enfim, a última característica de interesse seria o lado metaficcional,
de A Confissão – não apenas confissão, mas narração
– de uma narrativa composta de outras narrativas “roubadas” (das vítimas
do narrador). Como o escritor americano Lucius Shepard afirmou certa vez, na
roda das profissões da mitologia hindu, em que supostamente o sujeito
ascende espiritualmente ao assumi-las em encarnações sucessivas,
a atividade de escritor está logo abaixo da de ladrão. Tem-se
portanto a imagem do autor amarrando o leitor para ser “ouvido” por
ele, numa narrativa composta de histórias roubadas, e que almeja derradeiramente
incorporar também o leitor.

Fontes: Aline Aimée | Juliana Ramos, Teoria da Literatura
| Roberto de Sousa Causo, escritor e crítico |

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