Home EstudosLivros A Divina Comédia, de Dante Alighieri

A Divina Comédia, de Dante Alighieri

by Lucas Gomes

Análise da obra

A Comédia, poema épico e obra-prima de Dante Alighieri, foi escrita provavelmente entre 1307 e 1321. O poema passou a ser conhecido como Divina Comédia apenas em sua primeira edição impressa, em 1555.

A obra-prima de Dante Alighieri e da literatura italiana, A Divina Comédia, não pode ser considerada uma epopéia, pois não é a história ficcional de um herói que, pela suas façanhas, fundou ou glorificou uma nacionalidade. A Divina Comédia não trata nem das origens nem da exaltação do povo italiano. Esta obra é classificada como um poema didático-alegórico: didático porque tem uma finalidade educativa, e alegórica porque os ensinamentos são ministrados por uma série de símbolos, ou seja, signos materiais que tem significação espiritual. A grandeza do poeta italiano reside em ter conseguido elevar à categoria da universalidade os problemas seus e de sua terra natal, através da força transformadora da arte. O parentesco de A divina comédia com a poesia épica greco-romana é evidente. O próprio autor de Eneida, Virgilio, é escolhido como mestre e guia espiritual do poeta, sendo um dos três personagens principais do poema.

A obra se constitui num compêndio onde todo o conhecimento do mundo clássico é transubstanciado pela cosmovisão de um homem da Idade Média.

A Divina Comédia permite ter uma certa compreensão do homem medieval, não só pelas informações históricas que nos propicia, mas principalmente porque espelha, sob muitos aspectos a cosmovisão tomista e victorina típica do medieval.

Nesta obra se condensam e revivem em forma de arte dez séculos de concepção filosófica e religiosa, de instituições políticas e sociais, de cânones estéticos e morais. A motivação que determinou a transformação da enorme bagagem cultural de Dante em arte foi a realidade histórica e social. A Divina Comédia é a história de um homem – Dante Alighieri – que viveu seus últimos vinte anos de vida no exílio, peregrinando de uma cidade para outra, vivendo quase de esmolas, vítima de ódios políticos. É a história de um povo – o povo italiano do fim da Idade Média – dividido em várias cidades – estados em contínuas lutas pela sobrevivência política, cada qual recorrendo à ajuda estrangeira ou ao poder papal. A Divina Comédia é também a história da humanidade toda, pois o seu protagonista assume o papel simbólico de cidadão do mundo, que sofre e luta para alcançar os ideais cívicos de união, justiça e amor nesta terra e a fé num mundo melhor no além.

A obra apresenta, em versos, em muitos pontos, o pensamento da Suma Teológica de São Tomás. Dá a argumentação tirada do tomismo. Isto sem esquecer que Dante coloca no céu o grande inimigo de São Tomás, Siger de Brabante, tanto quanto o milenarista Joaquim de Fiore, que ele apresenta como di spirito profético dotatto. O que é um absurdo próprio dos beguinos.

Mais claramente, Dante utiliza na Divina Comédia a visão da felicidade humana, de Hugo de São Victor, fundamentada na luz e na doçura – lumen et dulcedo – isto é, na posse da verdade (lumen) e na posse do bem material (dulcedo).

Existem elementos pagãos na Divina Comédia, e se explicam pelo fato de que Dante não era plenamente católico. Ele fazia parte de uma sociedade secreta – Os Fiéis de Amor – cuja doutrina era gibelina. Como todos os Gibelinos, ele colocava o Império acima da Igreja. O Imperador acima do Papa. Daí o ódio de Dante ao Papado e à Igreja rica, à loba, carregando em sua magreza toda a fome de riqueza.

E não se deve esquecer que os Gibelinos eram, muitas vezes, cátaros. Veja, por exemplo, que Dante coloca, no inferno, Farinata degli Uberti como epicurista, quando, de fato, ele foi cátaro, e excomungado como cátaro.

No Inferno de Dante, misteriosamente, jamais aparece o termo “cátaro”. Entretanto, essa era a grande heresia que dominava o tempo em que ele viveu. Até mesmo a colocação dos hereges – e para Dante hereges eram apenas os materialistas epicuristas – é estranha, pois eles não estão colocados entre os fraudulentos, os enganadores que pecaram com o intelecto.

Também é notável como Dante exalta certos poetas conhecidos, hoje, como cátaros, como por exemplo, Arnauld Daniel, mestre do “trobar clus” (poesia em código), Sordello, Casella a quem ele faz cantar o poema praticamente esotérico Ämor che nella mente mi raggiona, de autoria do próprio Dante.

A Divina Comédia caracteriza-se por um fortíssimo sentido moralizante, pela reafirmação dos princípios cristãos e pelo desejo de renovação espiritual. Sua força narrativa reside na firmeza de caráter de Dante, enquanto personagem, ao lidar com algumas das questões mais fundamentais da condição humana. Mesmo diante dos maiores desafios, o poeta segue com convicção sua crença na existência da vida eterna e naquela que seria a finalidade de nossa existência: a busca da união com Deus, por meio da purificação.

No entanto, uma ambigüidade que marca toda a obra pode ser encontrada nas fontes de inspiração para o enredo: do VI canto do clássico Eneida, de autoria do poeta romano Virgílio, surge a temática de uma viagem ao pós-vida. Da Bíblia, Dante extrai os dogmas católicos, tão presentes na obra. Da fusão de ambos os textos, cria-se, então, uma síntese da mentalidade medieval – calcada na religiosidade -, ao mesmo tempo em que se vislumbra um anúncio da racionalidade, da valorização do ser humano e do retorno aos modelos greco-romanos, características essenciais do Renascimento.

Tal conciliação entre fé e razão projeta-se fortemente sobre A Divina Comédia, à semelhança do que ocorre na suma filosófica de São Tomas de Aquino, contemporâneo de Dante. A visão de universo apresentada na obra, por sua vez, é emprestada de Aristóteles, outro grande nome da Antigüidade Clássica a influenciar o poeta.

Também destaca-se no texto a dualidade entre aceitação e crítica à Igreja. Dante exalta e justifica as crenças do Catolicismo, defendendo, inclusive, a origem divina do poder papal. No entanto, não hesita em condenar diversos papas ao plano do Inferno, por considerá-los corruptores da fé cristã. O aparente conflito apenas reforça o sentido moralizante do livro, ao enfatizar a necessidade de uma rígida conduta ética.

Estrutura

A obra é estruturada em 100 cantos, totalizando 14.233 versos. Cada parte (Céu, Purgatório e Inferno) apresenta 33 cantos. O Inferno conta, ainda, com um canto introdutório, formando o número 100, múltiplo de 10, símbolo da perfeição (100 = a perfeição do perfeito).

Cada canto é composto de 130 a 140 versos em terça rima (versos divididos em grupos de três).

Na harmonia com os números 3, 7, 10 e seus múltiplos, aparecem os indícios do forte simbolismo da cultura medieval ou da devoção do autor à Santíssima Trindade. Essa harmonia determina a métrica adotada, com versos hendecassílabos (11 sílabas) e rimas no esquema ABA BCB, CDC… VZV (o verso central rima com os 1° e 3º do grupo seguinte). Tal estrutura deu origem ao chamado “terceto dantesco”, assim denominado por ter sido Dante o primeiro a empregá-la.

São muito discutidas as datas da composição do poema: muito provavelmente, Dante começou-o por volta de 1307, para depois nele trabalhar durante toda a sua vida.

O poema, no seu conjunto, é a história da conversão do pecador a Deus. O poeta tencionava fazer da Divina Comédia principalmente sua obra de doutrina e de edificação, uma “Suma” que compreendesse o saber do seu tempo, da ciência à filosofia e à teologia. Por isso o poema é repleto de significados alegóricos e ainda morais. Assim, por exemplo, Virgílio, que cantou os ideais de paz e justiça do Império Romano no tempo de Augusto, e que guia o poeta através do Inferno e do Purgatório, simboliza a razão integrada com a sabedoria moral, e é também a voz da própria consciência de Dante. Beatriz, a mulher amada que o guia no Paraíso, é a sabedoria cristão iluminada pela graça, a suprema sabedoria dos santos, a única que pode levar a Deus.

Tudo no poema é perfeita construção alegórica, e nisto Dante limita-se a respeitar as regras do seu tempo: pois quantas não são de fato as obras medievais que referem as viagens ultraterrenas, devidamente arquitetadas para edificação do pecador? Só que, no poema dantesco, há um sutil artifício que permite ao poeta encerrar nos seus cantos também a história do seu tempo. Dante imagina fazer uma viagem em 1300 e portanto refere naturalmente tudo quanto aconteceu antes desta data; mas, reconhecendo aos mortos a capacidade de prever o futuro, põe-nos a profetizar os acontecimentos públicos e particulares que não deseja deixar em silêncio.

Fruto de uma imaginação poderosa e de uma capacidade narrativa aguçada, A Divina Comédia encontra nos símbolos um valioso instrumento de expressão. A riqueza de alegorias, porém, além de constituir o caráter lírico e a beleza poética do livro, acaba por permitir interpretações diversas sobre o significado do texto. Ao menos quatro delas são amplamente reconhecidas:

1. A literal, que considera apenas a aventura de Dante pelos três reinos do pós-vida.

2. A alegórica, que destaca o sentido de purificação progressiva do espírito, ao longo da jornada rumo a Deus.

3. A moral, focada na rigidez de costumes e na exaltação aos valores do Bem, da Verdade e da Justiça.

4. A anagógica, ou sobrenatural, constituída na passagem de toda a humanidade da escravidão do pecado à salvação, pela Redenção de Cristo.

Haveria, ainda, um aspecto mais polêmico, o político, que enxerga na mulher amada, Beatriz, uma analogia com uma Florença purificada dos seus pecados ou com uma Itália unificada.

Personagens

Para sua viagem, Dante convida três personagens de seu imaginário: o poeta Virgílio (Inferno e purgatório), Beatriz, seu grande amor platônico (Céu) e São Bernardo (Impirium-Deus).

Enredo

A viagem de Dante na Divina Comédia inicia-se na quinta-feira da semana santa de 1.300 d.C. Sua narrativa é curiosa, assustadora, e acima de tudo singular. Dante mistura-se a um complexo conjunto de sentimentos, impressões, crenças e conhecimento cultural para desenvolver seu edifício literário. O primeiro conceito nitidamente observável é a concepção geocêntrico-astronômico de Ptolomeo de Alexandria (Séc. II d.C.). As disposições Astronômicas são exatamente aquelas encontradas no Tetrabiblos e Almagesto do mesmo Cláudio Ptolomeo.

Outro aspecto fundamental em sua narrativa é a “Teoria da Imortalidade” de Platão, que supunha a viagem da alma humana após sua morte, aos céus específicos de cada planeta, de onde teriam vindo desde o princípio.

Encontraremos Dante narrando várias vezes de seu imaginário, ícones distorcidos pela percepção religiosa de seu tempo.

Quanto à Beatriz, sua musa inspiradora, não se sabe muito. Na realidade Dante a conhecera já desposada por outro homem e sua paixão platônica o perseguiu por toda vida. Muitas vezes grandes paixões são marcadas pela dor. Beatriz morrera em tenra idade, deixando o poeta profundamente deprimido. Dante chegou a casar-se, mas jamais escrevera sequer um verso para sua esposa, tornando-se conhecido como o maior adúltero literário da história da poesia.

Para se ter uma idéia dos sentimentos de Dante por Beatriz, ele a cita 64 vezes na Divina Comédia, sendo o Cristo citado apenas 40. Beatriz só perde para Deus, que muito freqüentemente era invocado quando em sua estadia no inferno.

Dante não esconde em seus versos sua opinião sobre as coisas. De posse das chaves do universo, brinca de Deus e coloca no inferno todos aqueles que odiara e que o perseguiram durante a vida. Lá estavam também todos os que eram convenientes ao pensar teológico. Desta maneira, o poeta se vinga de todos aqueles com os quais lutara em vida e glorifica todos os seus amigos e amores, os elevando às alturas celestiais.

Dante fez uma viagem ao mundo do além. Orientando pelo poeta Virgilio, conhece o inferno e o purgatório e depois, guiado por Beatriz, visita o Paraíso. Ao longo do percurso Dante encontra vários conhecidos seus e conversa com alguns deles. O inferno é um vale nas entranhas da terra formado por vários círculos que vão e afunilando: quando mais baixo estão, maiores os pecados daquelas almas que ali padecem grandes suplícios. Satanás, com quem se encontram, tem três faces, uma só cabeça e enormes asas de morcego. Saem do inferno e sobem a montanha do purgatório. Passam pelos sete círculos que representam os sete pecados capitais. Banhando-se em águas sagradas, na saída do purgatório, são absolvidos de toda a culpa. Dante entra no paraíso seguido por Beatriz, e aí encontra santos, sábios, teólogos, e outros espíritos. No último céu, encontra São Pedro e faz um exame de fé. Beatriz ocupa um lugar no terceiro ciclo dos eleitos. No final da jornada, Dante vislumbra Deus em toda a sua glória.

Arquitetura do mundo extraterreno

Sob a crosta terrestre abre-se, no hemisfério boreal, precisamente debaixo de Jerusalém, uma profunda depressão em forma de cone que chega até ao centro da Terra. Foi provocada pela queda de Lúcifer, o anjo rebelde, o qual, efetivamente, se acha cravado no fundo do abismo. As terras que saltaram durante a queda do anjo confluíram no hemisfério austral formando uma ilha constituída por uma montanha cônica no cimo da qual está colocado o Paraíso Terrestre, exatamente nos antípodas, portanto, de Jerusalém, e na fronteira extrema entre o mundo da matéria e o da imaterialidade.

Na depressão, que se abisma em nove círculos concêntricos, está situado o Inferno. Os condenados estão disseminados nestes círculos de harmonia com a gravidade dos pecados; e o pecado é tanto mais grave quanto mais violou o que o homem tem em si de divino.

Sobre a montanha cônica do hemisfério austral está situado, por seu lado, o Purgatório. As almas estão distribuídas sobre as ravinas que se escavam no flanco do monte. Sete sãos as faixas correspondentes aos sete pecados capitais; com o antipurgatório e o Paraíso Terrestre é atingido o fatídico número nove, que com o número três se encontra na base de toda a disposição da Divina Comédia. Os dois reinos estão ligados por um estreito subterrâneo que do fundo do abismo infernal leva à ilha do Purgatório, no hemisfério oposto.

O Paraíso encontra-se, naturalmente, no Céu: onde nove esferas circulam com órbitas sempre maiores e movimento sempre mais rápido, em volta da Terra imóvel, segundo o sistema ptolomaico. Acima delas, o fulgurante Empíreo, onde resplende Deus, circundado pelos bem-aventurados triunfantes.

O Inferno

No meio do caminho da sua vida, Dante, tendo-se perdido numa floresta obscura, tenta em vão subir a colina luminosa: três feras, que simbolizam as concupiscências humanas, impedem-lhe o passo. Virgílio aparece ao poeta e propõe-lhe um outro caminho para chegar à contemplação de Deus (o cume luminoso), um áspero e terrível caminho que atravessa os reinos de além-tumba. Dante fica hesitante e aterrador, e só quando Virgílio o informa de que tal privilégio lhe foi concedido pela oração de uma mulher bendita, Beatriz, que tanto deseja a sua salvação, ele se tranqüiliza e dirige-se para o limiar do além. Virgílio guiá-lo-á através do reino da beatitude.

Atravessado o fatídico limiar infernal, Dante encontra no vestíbulo os cobardes, os que viveram “sem infâmia e sem louvor”, juntamente com os anjos que, quando da revolta de Lúcifer, não souberam de que lado se colocar. Estes, que quiseram impedir a batalha, estão agora condenados a correr sem descanso atrás de uma bandeira, pungido por vespas e zangãos. Primeiro exemplo, este, da lei do contrapasso segundo a qual em todo o Inferno as penas são infligidas em estreita relação – de analogia e de contraste – com os pecados cometidos. A mesma lei governa também o Purgatório.

Entre o vestíbulo e o primeiro círculo do Inferno corre o rio de Aqueronte. Aqui param os recém-chegados, esperando que Caronte, o demônio dos “olhos de brasa”, os atravesse para a outra margem, onde serão julgados por Minos, monstruoso juiz que, enrolando a cauda, indica o círculo a que cada pecado está destinado. No primeiro círculo, para além do rio, há o Limbo, que recebe as almas das crianças mortas sem o batismo e as daqueles que honestamente viveram antes da vinda de Cristo à Terra.

Não há penas no Limbo, mas uma atmosfera de deprimente melancolia. Dante encontra aí os grandes da Antigüidade: Homero, Horácio, Ovídio, Lucano e tantos outros. O Inferno propriamente dito começa, portanto, apenas com o segundo círculo, onde os luxuriosos são arrebatados por uma tempestade de vento. Entre esses, Francesca de Rímini, ainda abraçada ao seu Paulo, narra ao poeta a sua trágica história.

No terceiro círculo os gulosos são flagelados por uma chuva putrefata e ferozmente vigiados por Cérbero, horrível cão com três cabeças. O florentino Ciacco fala a Dante das lutas entre as facções opostas da sua cidade. No círculo seguinte, desfilam os avarentos e os pródigos, que empurram pesos enormes, e depois os iracundos, os indolentes, os invejosos e os soberbos, todos imersos na lama ardente do pântano do Estige.

Para atravessarem o pântano, Dante e Virgílio aproveitam a barca do demônio Elegias, que os deixa à porta da cidade de Dite. Os seus muros de fogo encerram a parte mais baixa e mais terrível do Inferno, aquela onde mais graves são as culpas e mais terríveis as penas. As penas parecem freqüentemente sugeridas por ímpetos de desprezo; outras, por uma fantasia atroz.

Os diabos estão bem decididos a impedir a entrada na cidade de Dite àquele que “sem morte vai pelo reino da gente morta”: trancam todas as portas, enquanto as três fúrias aparecem sobre as ruínas e, entre elas, Medusa procura magicamente petrificar Dante. Chega a tempo um enviado celeste que, com um toque de vara, abre as portas de Dite, repreendendo asperamente os diabos.

Recomeça a viagem, e Dante vê em sepulcros de fogo os heréticos, entre os quais Farinata; os violentos contra o próximo, num rio de sangue, alvejados e feridos pelas flechas dos centauros desde que ousem erguer apenas um pouco a cabeça; os violentos contra si mesmos, isto é, os suicidas como Píer delle Vigne, transformados em árvores nodosas; os esbanjadores perseguidos e devorados por cadelas ferozes.

Os violentos contra Deus e os violentos contra a natureza são submetidos a uma implacável chuva de fogo; contudo, enquanto os violentos contra a natureza (isto é, os sodomitas, como Brunetto Latini) caminham, aliviando assim o seu tormento, os violentos contra Deus devem permanecer deitados sob o flagelo da chuva ígnea. Também os usurários são submetidos a ela, mas sentados, e movendo sem descanso as mãos para se defenderem.

Os dois poetas chegam assim à extremidade do sétimo círculo, onde se abre um profundo e íngreme precipício. Para o superar, Dante deve subir com Virgílio para a garupa de Gerione, um monstro alado com a cauda afiada, o qual, com lentíssimo vôo, desce com os dois ao fundo do abismo. O oitavo círculo é dividido em dez fossos, ligados entre si por pontes. Num crescendo de horror, numa atmosfera cada vez mais alucinante, entra-se no lugar chamado “malebolge, Oodo de Pedra da cor do ferro”. O longo desfile de pecadores continua. Na segunda parte do Inferno, o espetáculo torna-se ainda mais horroroso.

Eis os alcoviteiros flagelados por demônios cornudos; os aduladores imersos em estrume; os simoníacos espetados com a cabeça para baixo em pequenos buracos, com as plantas dos pés acesas; os adivinhos com as cabeças voltadas para trás. No quinto fosso os vendilhões debatem-se em pez fervente: multidões de diabos armados com arpões abrigam os desgraçados a permanecer inteiramente submersos. Os hipócritas, oprimidos por pesadíssimas capas de chumbo, arrastam-se no sexto fosso. E o sétimo é repleto de serpentes: serpentes de todas as medidas, cores, venenos, que se lançam sobre os ladrões; envolvem os seus membros enroscando-se neles, apertam-nos e mordem-nos. No momento de ser atingido, o infeliz incendeia-se e um momento depois fica completamente incinerado, para ressurgir depois das suas cinzas como a Fênix da fábula. Mais além, por seu lado, os condenados, uma vez feridos, transformam-se em serpentes, enquanto as gestas que os mordem se tornam homens. Todo o fosso fervilha de estranhos seres em metamorfoses, entre um abater de caudas que se tornam pernas, e de braços que se retiram no corpo e línguas que se bifurcam. Depois deste monstruoso espetáculo, eis o crepitar de chamas que encerram conselheiros fraudulentos, entre os quais Ulisses e Diomedes. Ulisses conta a sua extrema aventura no oceano sem fim. (Solene a proclamação do destino dos humanos: Não fostes feitos para viver como brutos, / Mas para seguir virtude e conhecimento).

Depois de haver falado com Ulisses e com Guido de Montefeltro, Dante e o mestre fiel retoma o caminho, e encontra os promotores de discórdias e os cismáticos, cortado em pedaços pelas espadas afiadíssimas dos demônios; entre chagas horrendas e restos de braços, aparece Bertrand de Born, trovador provençal que, tendo separado um pai do filho com maus conselhos, caminha segurando pelos cabelos a sua própria cabeça, separada do tronco.

No último fosso estão apinhados os falsários, oprimidos por terríveis doenças; os falsários de metais arranham-se furiosamente, os de moedas estão tumefactos pela hipocrisia, os mentirosos ardem de febre.

Saindo de Malebolge, o poeta julga ver uma vaga paisagem de torres, mas depois apercebe-se de que as torres são de fato três gigantes agrilhoados, que pouco a pouco emergem da Bruna caliginosa. Trata-se de Fialte, Anteu e Nembrote, o que ousou desafiar Deus com a sua torre de Babel e que agora balbucia palavras que não têm sentido algum. Cabe a Anteu o encargo de fazer descer Dante e Virgílio no derradeiro precipício: toma-os de fato, inclina-se e coloca-os no mais profundo círculo infernal.

Não há fogo, nem demônios, nem gritos de condenados: o fundo do Inferno é gélido, um imenso bloco de gelo. Prisioneiros aí, com a cabeça imersa da estrutura gelada, estão os traidores: as lágrimas no gelo significam as suas pálpebras. Naquela imobilidade alucinante, o conde Ugolino raivosamente rói o crânio do seu inimigo.

Com a visão de Lúcifer, o anjo rebelde, reduzido agora a monstro com três bocas, cada uma das quais mastiga um dos três maiores traidores (Judas, traidor de Cristo, e Brutus e Cassius, traidores de César e, portanto, do Império), cai o pano sobre a horrorosa tragédia da humanidade condenada. Agarrando-se aos pêlos das pernas de Lúcifer, Dante e Virgílio descem ainda; depois, num dado momento, voltam-se e começam a subir: chegaram ao centro da Terra, e um estreito subterrâneo levá-los-á a “rever as estrelas”, da outra parte do mundo. A viagem através do Inferno durou três dias.

O purgatório

Um instintivo respirar de alívio no emergir da “aura morta” e no reencontrar, acima de si, o Céu, “doce cor de oriental safira”. Graças a Deus, tudo é diverso no Purgatório: a paisagem, a atmosfera, a luz que chove do alto.

Desaparecidos o ódio, a rebelião, o crime. Enquanto as personagens infernais eram visceralmente ligadas à vida vivida na Terra, aos pecados que ainda reviviam e que reviveriam por toda a eternidade, os penitentes do Purgatório, afastados das vicissitudes terrenas, encontram-se ansiosamente tendidos para a sua futura união com Deus. As tragédias sofridas na Terra estão já muito afastadas, transfiguradas: já não fazem bater o coração.

As próprias penas a que os purgandos estão submetidos não têm o terrível relevo plástico do Inferno. O sofrimento físico quase desaparece perante a mais torturante dor espiritual, mitigada, porém, pela resignação e pela esperança. Mal chegado à praia da ilha, enquanto olha em volta de si e descobre as estrelas do hemisfério austral e o esplêndido Cruzeiro do Sul, Dante descobre, de súbito, que está perto de si um velho de venerada barba branca. É Catão, o estrênuo defensor da liberdade, aquele que em Útica se matou por não suportar que a Roma republicana sucumbisse.

Agora é o guarda do Purgatório: por isso a montanha da expiação é exatamente o reino da liberdade, liberdade em relação ao pecado, liberdade do arbítrio. Virgílio fala-lhe com suma reverência e obtém para si e para o seu discípulo a autorização de subir a montanha. Antes, porém, de começar a viagem, Virgílio recolhe o orvalho das ervas e com ele lava o rosto de Dante, para o libertar de toda a sujidade caliginosa do Inferno.

Entretanto aparece sobre o mar uma luz que velozmente se aproxima: trata-se de um anjo, rente à popa sobre um barco “estreitito e leve” que ele faz deslizar com o adejo das grandes asas. Sentam-se no barco mais de cem espíritos que estão a chegar ao reino da expiação. Entre eles encontram-se Casella, que já em vida havia musicado as canções de Dante e que agora, tendo desembarcado e reconhecido o amigo, não hesita entoar a famosa “Amor que na mente me discorre”. As almas apinham-se em volta para ouvir o “doce canto”, mas Catão repreende-as pela demora, e elas correm então para as encostas do monte. Também os dois poetas se dirigem apressadamente para a montanha e, enquanto Virgílio procura um carreiro que permita a Dante subir, um grupo de almas os alcança. Depois de ter sabido porque razão um vivo se encontra naquele lugar, uma delas se identifica: é Manfredi, que, embora excomungado, se salvou num extremo impulso de arrependimento.

A subida é rude, e Dante avança agarrando-se com as mãos o melhor que pode. Chega, porém, à primeira plataforma, que constitui uma espécie de vestíbulo onde os que tardam a arrepender-se esperam o momento de poder entrar no Purgatório. Dante encontra Belacqua, um famoso ocioso dos seus tempos; e Buonconte de Montefeltro, combatente em Campaldino; e, enfim, depois de muitos outros, a suavíssima e infeliz Pia de Tolomei.

Um encontro singular é o de Virgílio com Sordello, mantuano como ele: um abraço que traz aos lábios de Dante a célebre invectiva contra a escravidão da Itália. Tendo passado para o Vale dos Príncipes, onde se encontram reunidas as almas dos reis e senhores.

Dante adormece, para se encontrar na manhã seguinte, misteriosamente, em frente da verdadeira porta do Purgatório. Um anjo lhe traça na fronte “sete P”, representando os sete pecados capitais. Serão apagados pouco a pouco por outros anjos, à medida que Dante passe de faixa em faixa, observando de perto aqueles que expiam exatamente os sete pecados capitais e meditando sobre vários exemplos de virtudes ou de vícios castigados.

A soberba expia-se na primeira plataforma e as almas caminham curvadas debaixo de pesos enormes e olham para esculturas que representam exemplos de humildade; a inveja, na segunda, e os invejosos são castigados com os cilícios, os alhos cosidos com fio de ferro, enquanto vozes ignotas gritam exemplos de inveja castigada; no terceiro círculo, onde as almas estão envolvidas em densa fumarada, é expiada a ira; na quarta correm os preguiçosos; na quinta jazem por terra, de bruços, os avarentos.

No quinto círculo, Dante e Virgílio encontram a alma do poeta latino Estácio, que, terminada a expiação, está a subir para o cume da montanha; acompanham-no, e os três juntamente passam para o sexto círculo, onde os gulosos, entre os quais Forense Donati, amigo de Dante, estão reduzidos a uma magreza esquelética. Durante a viagem, Estácio fala da sua conversão ao cristianismo e Virgílio, dos seus companheiros do Limbo. O discurso torna-se depois mais erudito, versando sobre a teoria da formação do corpo e da alma sensitiva, sobre a origem da alma racional e sobrevivência da alma ao corpo.

Assim, os três chegam ao sétimo círculo, onde os luxuriosos ardem no fogo. É preciso que também Dante passe pelas chamas para purificar-se, e o bom Virgílio deve recorrer à recordação de Beatriz para levar o relutante discípulo a entrar no fogo. Superada a prova, Dante cai num sono profundo e sonha com uma jovem e bela senhora que vai colhendo flores para se engrinaldar: é Lia, símbolo da vida ativa. Uma última subida e eis as maravilhas do Paraíso Terrestre. Chegou, entretanto, o momento da despedida de Virgílio: esperando a chegada de Beatriz, Dante já não precisa ser amparado pelo seu conselho. Na “divina floresta, espessa e viva”, o poeta move sozinho os seus passos, continuando, porém, a voltar-se para o seu mestre, que o olha afetuosamente de longe. Chega junto de um límpido regato, além do qual vê uma senhora de celeste beleza, Matilde, que caminha “cantando e escolhendo flores no meio de flores”. Matilde é talvez o símbolo da inocência primitiva.

Mas já se vê avançar uma mística procissão: sete candelabros ardentes, vinte e quatro mulheres cingidas com flor-de-lis, quatro animais estranhos e o carro alegórico da Igreja, que sofre uma série de espantosas transformações, em volta do qual dançam as três virtudes teologais e as quatro virtudes cardeais.

É enfim: Veste nívea, cingida de oliveira, / Apareceu-me a Dama em verde manto, / E vestida de cor da chama viva.

É Beatriz. A emoção do poeta atinge a sua acme. Sente nascer em si a antiga chama e volta-se para tornar Virgílio participante de um tão ardente acontecimento: mas o mestre já tinha desaparecido em silêncio.

Beatriz, que simboliza a luz de Deus enquanto verdade, dirige-se-lhe, severamente repreendendo Dante pelas suas culpas e convidando-o a confessá-las. A confissão purifica o poeta, que, depois de haver sido imerso por Matilde nos dois rios do Paraíso Terrestre, que fazem esquecer as culpas cometidas e despertam a memória das boas ações, está finalmente preparado para subir ao Paraíso.

O Paraíso

O Paraíso é o canto da beatitude, da consonância da vontade dos bem-aventurados com a de Deus. É também o canto das dissertações teológicas, das doutas explicações que Dante recebe da sua dama e de outros eleitos. Mas principalmente é o canto da luz, uma luz que resplende, que irradia, flameja, palpita onde quer que seja, sobre as figuras dos bem-aventurados, nos olhos de Beatriz, sobre as esferas que se movem nos céus, e que se torna tanto mais ofuscante quanto mais se sobe para a visão de Deus.

Do Paraíso Terrestre, Dante e Beatriz erguem-se com movimento rapidíssimo para a esfera do fogo e, ultrapassada, chegam ao primeiro céu, o da Lua, onde se encontram os espíritos daqueles que foram constrangidos pela violência dos outros a serem infiéis aos votos religiosos. Dante encontra aí Piccarda Donati. No Paraíso, os bem-aventurados residem todos no Empíreo em contemplação de Deus, mais perto ou mais longe d’Ele segundo seu mérito, mas todos felizes do seu estado. Só para fazer compreender a Dante a arquitetura celeste, e para lhe mostrar o seu diverso grau de felicidade, eles se agrupam nos sete céus planetários, cada um naquele cuja influência sofreu em vida, segundo as regras astrológicas medievais. Uma particular virtude moral preside a cada céu: a fortaleza no céu da Lua, a justiça em Mercúrio, a temperança em Vênus, a prudência no Sol; e no céu de Marte há a fé, no de Júpiter, a esperança, em Saturno, a caridade.

No céu de Mercúrio pairam os espíritos que usaram do seu talento para fazer o bem. E aqui se revela a Dante Justiniano, o qual celebra, a grandes linhas, a história do Império Romano, desde Enéias a Carlos Magno. Depois do encontro com o imperador, Beatriz tira algumas dúvidas de Dante falando-lhe da morte de Cristo, da redenção do homem do pecado original, da incorruptibilidade do que foi criado diretamente por Deus. E assim discutindo, chegam à esfera de Vênus, onde, entre os espíritos que fortemente amaram, encontram Carlos Martel, filho de Carlos II de Anjou. Passando por Florença em 1294, o jovem angevino conhecera Dante e dera-lhe prova de grande amizade, logo cortada pela sua morte prematura. Depois de Carlos, outros espíritos amantes se revelam ao poeta: Cunizza da Romano e Folco de Marselha, que censura a vergonhosa avareza dos eclesiásticos.

No quarto céu, o do Sol, brilham as almas sapientes e triunfam os teólogos. Dante encontra lá Tomás de Aquino e Boaventura de Bagnorea, que tecem o elogio dos dois grandes campeões da fé, S. Domingos e S. Francisco. O quinto é o céu de Marte, onde as almas dos que Morreram combatendo pela fé de Cristo estão dispostas em forma de cruz luminosa. Do baço direito da cruz fulgurante revela-se ao poeta o seu trisavô, Cacciaguida, morto na segunda cruzada. Cacciaguida fala de Florença dos seus tempos antigos, quando a população, encerrada no primeiro círculo de muralhas, “estava em paz, sóbria e pudica”, e prediz a Dante o exílio, exortando-o todavia a suportar as injustiças confiando em Deus: principalmente não tenha medo da verdade, mas grite-a no rosto de todos sem se preocupar com as conseqüências. Dante continua a subir com Beatriz: no sétimo céu, o de Saturno, os espíritos contemplativos estão ordenados segundo uma escala admirável que sobe até ao Empíreo. S. Pedro Damião fala do mistério da predestinação; S. Bento conta de si e da ordem e lamenta a sua decadência.

O oitavo é o céu das estrelas fixas: em forma de fúlgido sol, no meio das mil esplêndidas luzes dos bem-aventurados, Dante assiste ao triunfo de Cristo. Sobre Cristo ao empíreo e, num tripúdio de fulgor, os bem-aventurados celebram o triunfo de Maria. Antes da ascensão ao nono céu, S. Pedro, S. Tiago e S. João interrogam o poeta sobre a fé, a esperança e a caridade! Dante supera com êxito este exame acerca das virtudes teologais e depois ouve de Pedro a mais rude invectiva contra o papado e a sua corrupção. Aos três apóstolos junta-se depois Adão, que desvenda ao poeta a natureza do pecado original e lhe diz quantos nos passaram desde a criação do homem, quanto tempo ficou no Paraíso Terrestre e a língua que falou.

Depois de um hino de agradecimento a Deus, os bem-aventurados sobem para o Empíreo. Do nono céu, ou primeiro móvel, Dante contempla nove esplêndidos coros angélicos, cujas virtudes e função lhe são explicadas por Beatriz; ela fala-lhe depois da causa, do lugar e do tempo da criação dos anjos, nas suas ades, do seu número e das trágicas diferenças entre os anjos fiéis e os rebeldes.

Dispersos os anjos, comparece perante os olhos de Dante o fúlgido ofuscante espetáculo da Rosa celeste, formada pelos espíritos triunfantes e pelos anjos, em volta de Deus. É o Paraíso dos contemplantes. Beatriz deixa Dante e vai ocupar o seu lugar no terceiro círculo dos eleitos. Junto do poeta está agora S. Bernardo, o mais ardente dos místicos, que o guiará, pois que Dante, agora, não poderá seguir com a força da razão, mas apenas por arroubos estáticos.

Invocada por S. Bernardo com uma estupenda oração, a Virgem intercede junto de Deus e obtém para a graça sublime: o poeta tem a visão da Divindade.

É um átimo inefável, um entrever para além das capacidades humanas, um fulgor faiscante que a memória não pode fixar. E com a vista no inexprimível termina o poema.

Posts Relacionados