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A Maçã no Escuro, de Clarice Lispector

by Lucas Gomes

Seriam os atos do homem, às vezes os mais cruéis, necessários para elevá-lo à
condição de imagem e razão? Em A Maçã no Escuro, Clarice Lispector faz
crer que sim, transformando o atordoado Martim em um novo homem após ter supostamente
assassinado a mulher. Fugindo do crime, Martim acaba descobrindo-se como homem,
desprezando os antigos valores estabelecidos em sua vida. Na corrida por uma nova
existência, ele se revela numa outra condição.

Sua fuga, em vez de isolá-lo, remonta à criação do homem, de
um novo ser surgido do nada. A narrativa, próxima da criação bíblica, em vez de
julgar os personagens culpados ou inocentes, faz deles aprendizes do mundo, onde
cada etapa funciona como uma gênese de um ser recém-criado.

Mas é a natureza, com a qual Martim passa a conviver de forma
mais acentuada ao chegar à fazenda de Vitória, que se transforma em pano de
fundo da diferenciação e da combinação entre o homem e o animal, das atitudes
racionais contra os atos impensados. No contato com a dona da fazenda, sua prima
viúva Ermelinda e a cozinheira mulata, Martim se envolve não numa relação de
antítese entre homem e mulher, mas na descoberta de pessoas complementares e
ambíguas, dominantes e dominadas que invertem seus papéis a todo momento.

Clarice Lispector coloca-se na narrativa como um espectador
capaz de alterar os destinos dos personagens. Agindo como um Deus, a autora
muitas vezes abandona as características próprias de cada um deles para fazer
uma descrição própria de seus papéis na história maior contada no livro: a vida,
a criação, a dor e o prazer de ser. E se por um lado o leitor fiel de Clarice
pode estranhar que a figura principal deste livro seja um homem – é Martim, o
herói-vilão, estopim de mudanças em si e nos outros -, ao mesmo tempo acabará
identificando nele uma característica comum aos protagonistas da autora: um
profundo mergulho em seus próprios valores, a visão ensimesmada da existência,
que os aproxima e os iguala em grau, sofrimento e gozo a qualquer pessoa.

Os três capítulos que formam A Maçã no Escuro, escrito
de 1951 a 1961, quando foi publicado, mostram de forma gradativa o pecado, ato
impensado, e a redenção, o surgimento de um outro, como elementos primordiais de
evolução do ser. A análise profunda que Clarice impõe nada mais é que o
exercício do pensamento: o diferencial do homem, que mata, morre e ressuscita,
ressurgido a cada momento.

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