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A Morte de Ivan Ilitch, de Leon Tolstói

by Lucas Gomes

A Morte de Ivan Ilitch

, de Leon Tolstói, novela publicada em
1886, retrata com uma aguda profundidade o tema da morte e o sentido da vida,
personalizada em Ivan Ilitch, um juiz russo que na antecâmara da morte
faz uma reflexão profunda sobre todas as etapas da sua vida desvendando-se
a si próprio.

Nessa magistral obra-prima, considerada por Vladimir Nabokov como a mais artística,
mais perfeita e de mais sofisticada realização da história
mundial, defrontamo-nos com o soberano do destino: o fim. A morte é uma
prova final, aplicada a qualquer momento; e por mais que se creia não
estar preparado, todos somos aprovados.

Escarafunchando a angustiada consciência do irrepreensível juiz
Ivan Ilitch, em breves 85 páginas, Tolstói brinda o leitor com
o relato de um acerto de contas, revelando a futilidade do modelo de vida burguês.
Será, preso ao leito, frente a morte certa, que a vida de Ivan Ilitch
se revelará mais livre, mais autêntica e pujante. As preocupações
corriqueiras, os afazeres mundanos impediram-no de pensar nela.

É com espanto que, diante da morte iminente, atina que viveu uma vida
de aparências, tanto no desempenho de seu trabalho, quanto no casamento
e em suas demais relações sociais. Ivan Ilitch conclui que sua
existência fora desprovida de um propósito mais significativo,
que não passou daquilo que a sociedade, com seu mero jogo de interesses,
de galgar posições de prestígio, de “parecer estar
bem”, preconizava. Em resumo: uma autêntica vida de falsidades.
Para seu desespero, até mesmo àqueles a quem julgava ser fundamental
e amado, sua mulher e filhos, vivenciam sua convalescênça como
sendo um capricho inexplicável (a mulher) ou um aperreio, um estorvo
(sua filha).

O sucesso profissional, o empenho pela manutenção da ordem, do
status quo, daquilo que, aos olhos dos outros era tido como o “certo”,
sempre fora o norte de sua “aparentemente” bem sucedida vida: “Não
era um adulador, nem quando menino, nem quando homem feito, porém, desde
a infância, sentira-se naturalmente atraído pelas pessoas que ocupavam
posição elevada na sociedade, tal como mariposas pela luz, e assimilava-lhes
as maneiras e as opiniões, forçando ainda relações
amistosas com elas
”.

Ivan Ilitch dá um rosto à imprudência moderna. Ele é
o juiz bem sucedido, que crê desempenhar perfeitamente o seu papel, ou
seja, que “aplica” o Direito. Ele é o “escravo da lei”,
a “boca da lei”, que no fundo no fundo sabe que tais coisas não
existem, mas que age profissionalmente como se existissem. À semelhança
dos médicos com os quais se depara ao longo de sua agonia e que, ali
onde se encontra um homem a ser cuidado (um homem que sofre e que necessita
de cuidados), só enxergam uma doença a ser eliminada, Ivan Ilitch
também se mostra incapaz, durante toda sua vida como juiz, de levantar
os olhos dos autos e dos códigos para ver os homens e seus problemas.
Ele “aplica” o direito, mas não sabe (ou finge não
saber) que o Direito não pode ser “aplicado” de uma forma
mecânica. Sua prudência (no sentido moderno), que se manifesta em
sua dócil submissão a um legalismo convenientemente apropriado
ao carreirismo, é máxima imprudência (no sentido clássico).
E por essa imprudência, Ivan Ilitch paga um preço alto. O preço
da falta de sentido.

Moribundo, reconstitui, na imaginação, suas origens, sua vida
como estudante de Direito, os concursos públicos, as motivações
que o levaram a eleger Prascóvia Fiódorovna como esposa: “Dizer
que Ivan Ilitch se casou por ter se apaixonado pela moça e por ter encontrado
nela compreensão para a sua concepção da vida, seria tão
incorreto quanto afirmar que se consorciara porque a sua roda social aprovara
o enlace. Esposou-a movido por suas próprias razões: o casamento
lhe proporcionava particular satisfação e era visto como uma boa
solução pelos seus amigos mais altamente colocados
”.
Nem por amor, nem somente por puro interesse, embora seja notória a importância
que dava aos valores prezados pelos mais bem situados.

O magistrado não encontrou felicidade no lar. Passado o breve mar-de-rosas
que fora a lua-de mel, o matrimônio se revelou perturbador: “E,
não mais que um ano após o casamento, Ivan Ilitch chegou à
conclusão de que a convivência familiar, embora ofereça
certas vantagens, era uma coisa verdadeiramente complexa e difícil, para
a qual é preciso elaborar uma relação definida, tal como
perante o trabalho, a fim de se poder cumprir honradamente o dever, ou seja,
levar-se uma vida que, pela correção, a sociedade aprove
”.
Problemas de ordem prática, soluções igualmente práticas.

Nada como refugiar-se no trabalho como forma de blindagem para evitar que algum
incômodo nos perturbe e podermos assim, anestesiados, deixar a vida seguir
seu curso, sob controle: “Todo o interesse da sua existência
se concentrou no mundo judiciário e esse interesse o absorvia. A consciência
da sua força, que permitia aniquilar quem ele quisesse, a imponência
da sua entrada no tribunal, a deferência que lhe tributavam os subalternos,
seus êxitos com superiores e subordinados e, sobretudo, a maestria com
que conduzia os processos criminais e da qual se orgulhava – tudo isto
lhe dava prazer e lhe enchia os dias, a par das palestras com os colegas, os
jantares o [jogo] uíste. Assim a vida de Ivan Ilitch decorria da maneira
que achava conveniente – agradável e digna
”.

Sobre o contentamento que o jogo lhe proporcionava, confidencia-nos o autor:
A alegria que Ivan Ilitch encontrava no trabalho era a alegria da
ambição; as alegrias da vida social eram as da vaidade; mas as
verdadeiras alegrias eram as proporcionadas pelo uíste
”. Entreve-se
mais um pouco da alma do corretíssimo juiz Ivan Ilitch: ambicioso, vaidoso
e frívolo.

Dentre as demais atividades nas quais encontrava prazer ocupavam-no uma inocente
e tipicamente burguesa: a decoração e organização
do lar; mas nem sequer nisso sua individualidade aflorava: “Teve a
sorte, principalmente de poder comprar barato certas antigüidades, que
emprestavam à casa um ar pronunciadamente aristocrático. (…)
Na verdade, havia ali o mesmo que se encontra nas casas de gente remediada,
mas que pretende aparentar opulência e apenas consegue que se pareçam
extraordinariamente umas com as outras (…) enfim, tudo aquilo que as pessoas
de certa classe possuem para parecer com as pessoas da mesma classe. A casa
de Ivan Ilitch era uma perfeita imitação, mas ele a achava absolutamente
original
”.

Tudo corria relativamente bem na pacata e irretocável vida de Ivan Ilitch.
Até que um dia, envolvido na arrumação da nova casa, ansioso
por demonstrar a um operário como queria que um serviço fosse
executado, deu um passo em falso, escorregou duma escada e deu uma pancadinha
de lado, na moldura da janela. Na hora, não sentiu muito, apenas uma
dorzinha boba. Mas após esse episódio, as dores foram se tornando
cada vez mais intensas e insuportáveis. Apesar de ter se submetido a
renomados especialistas, nada pôde fazer. A morte o rondava.

A inesperada condição de enfermo será extremamente favorável
à observação, à avaliação isenta e
imparcial dos relacionamentos cultivados com todos os que o cercavam, inclusive
com seus colegas juízes. É com profundo desapontamento que Ivan
constata que, indiferentes, a única coisa que importava mesmo era manter
o enfadonho, mas necessário, protocolo de visitas e confabular sobre
quem ocuparia o posto que ele deixará, bem como quem ficará com
o cargo vago por aquele que o substituir, e assim por diante. Recapitulando
seus valores, suas realizações e frustrações, conclui
que “farinha do mesmo saco”, não teria agido diferente de
seus interesseiros e ambiciosos amigos magistrados. Afundando num sofrimento
desesperado, Ivan Ilitch se dá conta da insignificância de sua
vida, da fragilidade de suas conquistas. Apesar de suas dores físicas
serem terríveis, doía ainda mais a sua consciência moral.
Próximo à finitude e com fome de imortalidade, a ânsia de
encontrar propósito para sua breve e vulgar existência martelava-lhe
o cérebro.

Foram três meses, de intensa agonia. Dependente de auxílio para
tudo, inclusive para as constrangedoras necessidades fisiológicas, encontra
na alma do singelo camponês Guerássin, ternura e, testemunha a
bondade humana. Certa vez, agradecendo pelo desagradável préstimo,
ouviu o mujique afirmar que fazia isso com prazer; que qualquer um faria. Essa
ingenuidade o comovia profundamente. Acalmava-lhe a presença desse prestativo
enfermeiro.

Sob o crivo de uma lucidez perturbadora, repassou sua vida: “E quanto
mais longe da infância e mais perto do presente, tanto mais as alegrias
que vivera lhe pareciam insignificantes e vazias. A começar pela faculdade
de direito. Nela conhecera alguns momentos realmente bons: o contentamento,
a amizade, as esperanças. Nos últimos anos, porém, tais
momentos já se tornavam raros. Depois, no tempo do seu primeiro emprego,
junto ao governador, gozara alguns belos momentos: amara uma mulher. Em seguida
tudo se embrulhou e bem poucas eram as coisas boas. Para adiante, ainda menos.
E, quanto mais avançava, mais escassas se faziam elas. Veio o casamento,
um mero acidente e, com ele, a desilusão, o mau hálito da esposa,
a sensualidade e a hipocrisia. E a monótona vida burocrática,
as aperturas de dinheiro, e assim um ano, dois, dez, vinte, perfeitamente idênticos.
E, à medida que a existência corria, tornava-se mais oca, mais
tola. É como se eu tivesse descendo uma montanha, pensando que a galgava.
Exatamente isto. Perante a opinião pública, eu subia, mas na verdade,
afundava. E agora cheguei ao fim – a sepultura me espera
”.

Sem que ninguém visse: “Chorava a sua impotência, a
sua terrível solidão, a crueldade de Deus, que o abandonava
”.
Vulnerável, clamava por carinho, piedade e, em silêncio, nutria
um desejo inconfessável para um homem de respeito: queria ser cuidado
como se fosse uma criança.

Buscar e encontrar o significado da vida é algo particular. O juiz Ivan
Ilitch foi um homem que não atentou para a liberdade de poder escolher
seu destino. Sem discutir, fez o que era para ser feito e pronto. Mas isso fora
insuficiente para deixá-lo partir em paz. Não questionou o télos
(propósito/objetivo/finalidade) de seus comparsas; “fechou”
com a futilidade encantatória da classe dominante; almejada, sem pestanejar,
por toda manada, ilusório alvo de imitação. Três
horas antes de morrer, Ivan Ilitch vislumbra luz no fundo do saco escuro. Sensibiliza-o
as lágrimas nos olhos do filho e da mulher, se apieda por eles: “e
percebia que a sua vida não fora o que deveria ter sido, mas ainda podia
ser reparada
”. No instante em que adota uma atitude em relação
ao sofrimento, algo fenomenal o liberta da fantasmagórica ameaça
da vala-comum psíquica. Ah, a morte: “Que alegria!”.
Ivan Ilitch recebe-a de braços abertos!

Créditos: Luciene Félix, Professora de Filosofia e Mitologia
Greco-Romana

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