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Apontamentos de história sobrenatural, de Mário Quintana

by Lucas Gomes

Apontamentos de história sobrenatural

contém 146 poemas,
e é o primeiro livro de poemas de Mário Quintana. Traz também
uma nota introdutória do autor, na qual ele esclarece alguns aspectos
da organização do livro, como a disposição cronológica
dos poemas, procedimento que ele nunca havia adotado até então.

Os poemas são geralmente curtos e em versos livres, mas há também
sonetos e odes, bem como poemas em prosa; alguns deles foram divulgados pela
primeira vez no livro Antologia, com poemas de Quintana selecionados
por Rubem Braga e Paulo Mendes Campos.

Pela diversidade de temas e formas, o livro sintetiza diversas das estratégias
anteriormente presentes em seus poemas, retoma temas como o onírico e
o fantasmático, e formas como o soneto, tão presente em sua obra
anterior, além de inaugurar campos novos de observação,
como a recuperação da infância, ou através do esquadrinhamento
do imenso cotidiano que Quintana tanto quis poetisar, mesmo em suas mais ínfimas
insignificâncias. Ao mesmo tempo, o aprofundamento de sua reflexão
sobre o tempo e a morte, dois temas recorrentes em seus livros, em contraste
com as pequenas experiências pessoais ocorridas no dia-a-dia, permite
que o poeta salte além, buscando inventar um modo para o homem comum
pensar a existência e ligar todas as coisas, das mais materiais às
mais fugidias.

Sobre esta obra, disse Quintana:

Eis o meu primeiro livro cujos poemas saem mais ou menos na sua ordem cronológica.
Porque antes se reuniam numa ordem lógica: sonetos com seus companheiros
de lirismo um tanto boêmio, canções com suas irmãs
de dança, quartetos filosofando uns com os outros, diante da seriedade
que se presume existir num simpósio, poemas em prosa proseando sobre
isto ou aquilo, poemas oníricos com suas perigosas magias de aprendizes
de feiticeiros.

A linguagem de Mário Quintana se ajusta de forma exemplar à temática
de seus poemas. Ora coloquial, ora purista, vale-se com liberdade das mais variadas
formas literárias fornecidas pela tradição clássica,
sem deixar de criar poemas inovadores em verso livre ou mesmo em prosa.

Explicitando a autoconsciência progressiva do criador em relação
ao seu fazer artístico e abrindo, ao mesmo tempo, uma via de acesso mais
direta ao seu entendimento sobre a natureza e a função da poesia,
a metalinguagem se apresenta como sintoma de que o poeta problematiza o seu
lugar no mundo, e signo de sua visão da poesia e do mundo.

A visão de mundo analógica, inerente ao lirismo, se choca constantemente
com a racionalidade e o espírito crítico próprios da modernidade,
o que dá lugar ao surgimento da ironia. A poesia de Quintana, que se
inscreve entre a analogia e a ironia, entre o sublime e o prosaico, encontra-se
desde o início sob o signo da contradição.

Desde cedo o poeta traduzia para a editora Globo obras avançadas e
decisivas da moderna literatura mundial, como as de Proust e Virginia Wolf e,
ao escrever sonetos, não era por ingenuidade mas, como ele mesmo diz:
“para provar que os sonetos também eram poemas”.

Quanto ao sobrenatural, Mário Quintana percebe a existência de
uma intervenção alheia à sua consciência no momento
da criação. No Caderno H, em “Claro Enigma”,
ele diz que os poetas são os únicos que não podem falar
contra os absurdos da religião, pois “a poesia é um sintoma
do sobrenatural”. O ponto de vista heracliteano, que apreende a existência
como um constante devir, manifestado pelo poeta em seus auto-retratos, a atitude
contemplativa perante o mundo, tão Alberto Caeiro como no verso “Pra
que pensar? Também sou da paisagem!”, a atenção dispensada
aos dados sensíveis do real e, também, a busca de uma linguagem
nova, que exprima uma visão pré-racional, necessariamente subjetiva
e fragmentária, dão o tom impressionista à sua obra.

A influência clássica vai muito além da forma. Seus temas
essenciais, como a infância, o tempo, o amor, a morte e a poesia, pertencem
todos à tradição lírica. O poeta apenas os inscreve
em um contexto novo, ora relacionado ao cotidiano, ora criado por sua fantasia.

A preocupação do poeta é a de não se afastar daquilo
que julga serem as realidades humanas fundamentais. Por outro lado, ele não
concebe essas realidades de forma abstrata, pois cada época dá
um tratamento e uma significação distinta ao amor, à morte,
à infância, ao tempo e à poesia. Quintana busca a manifestação
do eterno no transitório e tenta revelar o sentido das realidades que
ele julga perenes em uma época na qual esse sentido se obscureceu.

Comentáros sobre alguns poemas desta obra

Eu queria trazer-te uns versos muito lindos

Eu queria trazer-te uns versos muito lindos
colhidos no mais íntimo de mim…
Suas palavras
seriam as mais simples do mundo,
porém não sei que luz as iluminaria
que terias de fechar teus olhos para as ouvir…
Sim! uma luz que viria de dentro delas,
como essa que acende inesperadas cores
nas lanternas chinesas de papel.
Trago-te palavras, apenas… e que estão escritas
do lado de fora do papel… Não sei, eu nunca soube
o que dizer-te
e este poema vai morrendo, ardente e puro, ao vento
da Poesia…
como
uma pobre lanterna que incendiou!

Este poema sintetiza vários aspectos da poesia de Mario Quintana. De
saída chama atenção a imagem das lanternas chinesas, boa
metáfora para essa poética cheia de nuanças, assentada
em armações leves e sutis, que se acende em cores inusitadas e
intensidades as mais diversas. Uma breve análise aponta outros elementos
que permeiam toda a sua obra. Os quatro primeiros versos apresentam três
linhas-mestras da lírica quintaniana: a busca da beleza, atributo indispensável
no jogo de sedução travado com o leitor; o cultivo da subjetividade,
a um só tempo fonte de emoção e matriz de uma forma de
compor personalíssima; e a simplicidade como garantia de comunicação.
Se a beleza é, via de regra, desejo de toda criação artística,
o subjetivismo e a simplicidade representam traços que, a critério
de cada autor, podem ou não condicionar sua forma de expressão.

O gosto pelo verso fluente revela-se em “De gramática e de linguagem”,
cujo desfecho confirma a aposta no poema para ser desfrutado:

Eu sonho com um poema
Cujas palavras sumarentas escorram
Como a polpa de um fruto maduro em tua boca.

Diferentemente de João Cabral de Melo Neto, que preferia o verso como
“um grão imastigável, de quebrar dente”, Quintana
assume outra postura ante o exercício da escrita e a expectativa de fruição
de sua poesia. O intuito de oferecer “palavras sumarentas” reafirma-se
a cada poema, a cada convite para que o leitor saboreie a “polpa de fruto
maduro” e se nutra de seu sumo lírico.

Outros poemas

O AUTO-RETRATO

No retrato que me faço
– traço a traço –
às vezes me pinto nuvem,
às vezes me pinto árvore…

às vezes me pinto coisas
de que nem há mais lembrança…
ou coisas que não existem
mas que um dia existirão…

e, desta lida, em que busco
– pouco a pouco –
minha eterna semelhança,

no final, que restará?
Um desenho de criança…
Corrigido por um louco!

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O MAPA

Olho o mapa da cidade
Como quem examinasse
A anatomia de um corpo…

(É nem que fosse o meu corpo!)

Sinto uma dor infinita
Das ruas de Porto Alegre
Onde jamais passarei…

Há tanta esquina esquisita,
Tanta nuança de paredes,
Há tanta moça bonita
Nas ruas que não andei
(E há uma rua encantada
Que nem em sonhos sonhei…)

Quando eu for, um dia desses,
Poeira ou folha levada
No vento da madrugada,
Serei um pouco do nada
Invisível, delicioso

Que faz com que o teu ar
Pareça mais um olhar,
Suave mistério amoroso,
Cidade de meu andar
(Deste já tão longo andar!)

E talvez de meu repouso…

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O MORTO

Eu estava dormindo e me acordaram
E me encontrei, assim, num mundo estranho e louco…
E quando eu começava a compreendê-lo
Um pouco,
Já eram horas de dormir de novo!

Créditos parciais: Tida Carvalho, pesquisadora, ensaísta
e professora de literaturas brasileira e portuguesa e teoria da literatura da
Puc Minas, Doutora em literatura comparada pela UFMG

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