Home EstudosLivros Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna

Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna

by Lucas Gomes

Análise da obra

Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna, é uma peça clássica do teatro brasileiro, escrita em 1955 e publicada em 1957. Virou minissérie de televisão e ganhou uma versão para o cinema.

Abordando temas universais como a avareza humana e suas amargas conseqüências, por meio de personagens populares, Suassuna, nesta obra, prepara o espectador para um desfecho moralizante conforme os preceitos do cristianismo católico.

A visão cristã da vida presente no Auto traz uma concepção da religião como algo simples, agradável, doce e não como uma coisa formal e solene, difícil e mesmo penosa. Essa intimidade com Deus, e a idéia de simplicidade nas relações dele com os homens, essa compreensão da vida e fé na misericórdia, parecem aspectos primordiais no sentido religioso da obra: a compreensão das faltas humanas, atribuída à Nossa Senhora, que, como mulher, simples e do povo, explica-as e pede para elas a compaixão divina.

A obra trata-se de uma farsa que é igualmente uma reflexão sobre as relações entre Deus e os homens: um milagre de Nossa Senhora, como os medievais, apresentado sob a forma de uma pantomima de circo. Até o seu catolicismo é popular, favorecendo os humildes contra os ricos, menos por influência política do que por uma profunda simpatia cristã pelos fracos e desprotegidos.

Assim, o que Suassuna passa é que o homem do sertão deve ser perdoado, de seus pecados, por experimentar inúmeras dificuldades, tanto de ordem climática, quanto social. O sofrimento passado em vida já é capaz, por si só, de absolver todos os pecados – conseqüências de seu cotidiano exigente e de sua luta por sobreviver. O sertão é terra de ninguém, deserto ameaçador donde emergem deuses e diabos, sob a égide do acaso, do caos e da fatalidade. Esses seres-ameaçadores espreitam o homem por dentro e por fora. Em meio ao caos que os alimentam, estabelecem continuamente a recriação da ordem, num processo infinito de auto-eco-organização.

O autor mostra um povo religioso, de pé no chão, acuado pela seca, atormentado pelo fantasma da fome e em constante luta contra a miséria. Traça o perfil dos sertanejos nordestinos que estão submetidos à opressão a que foram, e ainda hoje são, subjugados por famílias de poderosos coronéis que possuem terras e almas por vastas áreas do Brasil.

Dentro desse contexto, João Grilo é a figura que representa os pobres oprimidos, é o homem do povo, é o típico nordestino amarelo que tenta viver no sertão de forma imaginosa, utilizando a única arma do pobre, a astúcia, para conseguir sobreviver.

Suassuna leva a julgamento almas, diante do tribunal, dirigido por Deus e o diabo, que são pecadoras devido às condições sociais existenciais, que se apresentam mais fortes que os valores morais. São acusados o bispo e o padre João, por se utilizarem da autoridade religiosa para enriquecerem. No entanto, com a intercessão de Nossa Senhora, a sentença é atenuada e eles se encaminham para o purgatório. O padeiro, por ser sovina, e sua mulher, por adultério, também recebem a sentença final de ocuparem, juntamente com o padre, o bispo e o sacristão, os cinco lugares vagos do purgatório. São acusados também o cangaceiro Severino e o cabra dele, por tirarem a vida das pessoas sem autorização divina.

A oposição bem x mal, tipicamente da visão maniqueísta cristã, que conseqüentemente divide o mundo em céu e inferno, é característica que consta na peça. O julgamento é moral, portanto condenam-se os vícios e as vaidades e glorifica-se a modéstia e a humildade.

Se encontra também uma severa crítica aos maus costumes dos representantes da Igreja, que abusam de seu poder, contribuindo para a corrupção da instituição, uma vez que favorecem os ricos e têm hábitos que são condenados pela própria Igreja.

O título da obra remete à noção de que o homem é um ser passível de erro, mas é possível que seja perdoado, por intermédio da “Compadecida”, Nossa Senhora, que, na Igreja Católica, é considerada pelos fiéis a advogada capaz de interceder pelos pecadores junto a Jesus Cristo.

Dessa forma, em diversas passagens da obra, podem-se interpretar tanto o comportamento de Manuel, como o da Compadecida, como mais humanizados e condescendentes com as falhas humanas, retratados, às vezes, até com uma boa dose humor.

O autor permite-se o exercício de um diálogo simultaneamente complementar e antagônico entre morte e vida. Por meio dele abre-se uma brecha, que introduz a dimensão da imortalidade desvelada, por exemplo, na ressurreição do personagem João Grilo.

Em Auto da Compadecida, Ariano Suassuna consegue realizar uma magnífica síntese de duas tradições: a dos autos da era medieval e a da literatura picaresca espanhola. Na era medieval, a cultura era indissociável da religião, mesmo porque a Igreja controlava tudo com mão de ferro. A Igreja cultivava os autos dramáticos de devoção aos santos para doutrinar e tolerava os autos cômicos para divertir o povo. A tradição da literatura picaresca espanhola vem da cultura popular e chega ao ápice no Dom Quixote, de Cervantes.

Segundo o autor, a peça nasceu da fusão de três folhetos de cordel: O enterro do cachorro, O cavalo que defecava dinheiro e O castigo da soberba.

A obra apresenta os seguintes elementos que permitem a identificação de sua participação num determinado estilo de época da evolução cultural brasileira:

1- O texto propõe-se como um auto. Dentro da tradição da cultura de língua portuguesa, o auto é uma modalidade do teatro medieval, cujo assunto é basicamente religioso. Assim o entendeu Paula Vicente, filha de Gil Vicente, quando publicou os textos de seu pai, no século XVI, ordenando-os principalmente em termos de autos e farsas.

Essa proposta conduz a que a primeira intenção do texto está em moldá-lo dentro de um enquadramento do teatro medieval português, ou mais precisamente dentro das perspectivas do teatro de Gil de Vicente, que realizou o ideal do teatro medieval um século mais tarde, isso no século XVI, portanto, em plano Quinhentismo (estilo de época).

2- O texto propõe-se como resultado de uma pesquisa sobre a tradição oral dor a romanceiros e narrativas nordestinas, fixados ou não em termos de literatura de cordel. Propõe, portanto, um enfoque regionalista ou, pelo menos, organiza um acervo regional com vistas a uma comunicação estética mais trabalhada.

3- A síntese de um modelo medieval com um modelo regional resulta, na peça, como concebida pelo Autor. Se verificar que as tendências mais importantes do Modernismo definem-se no esforço por uma síntese nacional dos processos estáticos, pode-se concluir que o texto do Auto da Compadecida se insere nas preocupações gerais desse estilo de época, deflagrado a partir de 1922, com a Semana de Arte Moderna, em São Paulo. Um modelo característico dessa síntese se encontra em Macunaíma, de Mário de Andrade, de 1927, e em Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa (1956), entre outros.

O ESTILO DO AUTOR

Quando se faz a interpretação de uma peça teatral, o estilo do autor deve ser analisado dentro de uma perspectiva totalmente diferente daquela que adota-se para a interpretação do romance, do conto, da novela, do poemas – da Literatura, enfim. Isso acontece porque a concepção do texto teatral baseia-se na finalidade do mesmo: a representação por atores. Já o texto literário é concebido para ser lido e meditado pelo leitor, assumindo, portanto, outra feição.

Feita essa observação, observa-se que Ariano Suassuna procura definir a forma final de seu texto através dos seguintes elementos:

1- O autor não propõe, nas indicações que servem de base para a representação, nenhuma atitude de linguagem oral que seja regionalista.

2- O autor busca encontrar uma expressão uniforme para todas a personagens, na presunção de que a diferença entre os atores estabeleça a diferença nos chamados registros da fala.

3- A composição da linguagem é a mais próxima possível da oralização, isto, é, o texto serve de caminho para uma via oral de expressão.

4- Os únicos registros diferentes ocorrem, como indicados no próprio texto:

a) do Bispo, “personagem medíocre, profundamente enfatuado” (p.72), como se nota nesta passagem: Deixemos isso, passons, como dizem os franceses (p.74).

b) de Manuel (Jesus Cristo) e da Compadecida (Nossa Senhora), figuras desataviadas, embora divinas, porque são concebidas como encarnadas em pessoas comuns, como o próprio João Grilo:

MANUEL: Foi isso mesmo, João. Esse é um dos meus nomes, mas você pode me chamar de Jesus, de Senhor, de Deus… Ele / isto é, o Encourado, o Diabo / `gosta de me chamar Manuel ou Emanuel, porque pensa pode persuadir de que sou somente homem. Mas você, se quiser, pode me chamar de Jesus. (p.147)

A COMPADECIDA: Não, João, por que iria eu me zangar? Aquele é o versinho que Canário Pardo escreveu para mim e que eu agradeço. Não deixa de ser uma oração, um invocação. Tem umas graças, mas isso até a torna alegre e foi coisa de que eu sempre gostei. Quem gosta de tristeza é o diabo (p.171).

5- Quatro denominações de personagens referem-se a determinados condicionamentos regionais: João Grilo, Severino do Aracaju, o Encourado (o Diabo) e Chicó. Quanto ao Encourado, o autor dá a seguinte explicação:

Este é o diabo, que, segundo uma crença do sertão do Nordeste, é um homem muito moreno, que se veste como um vaqueiro. (p.140)

6- Na estrutura da peça, isto é, na forma final do texto é que se revela o estilo do autor, concebido com o a linguagem através da qual ele cria e comunica sua mensagem fundamental.

ESTRUTURA

A peça não se apresenta dividida em atos. Como o autor dá plena liberdade ao encenador e ao diretor para definirem o estilo da representação, convém anotar que são por ele sugeridos três atos, cuja divisão ou não por conta dos responsáveis pela encenação:

Aqui o espetáculo pode ser interrompido, a critério do ensaiador, marcando-se o fim do primeiro ato. E pode-se continuá-lo, com a entrada do Palhaço (p.71).

Se se montar a peça em três atos ou houver mudança de cenário, começará a aqui a cena do Julgamento, com o pano abrindo e os mortos despertando(p.137).

Do ponto de vista técnico, o autor concebe a peça como uma representação dentro de outra representação.

/…/ o Autor gostaria de deixar claro que seu teatro é mais aproximado dos espetáculos de circo e da tradição popular do que do teatro moderno (p.22).

A representação dentro da representação caracteriza-se:

a) pela apresentação do Auto da Compadecida como parte de um espetáculo circense, espetáculo esse simbolizado no Palhaço, que faz a apresentação da peça e dos atores.

b) pela apresentação do Auto propriamente dito, com sua personagens. Como a representação ocorre num circo, o Palhaço marca as situações técnicas e estabelece a ligação entre o circo e a representação no circo.

c) Ariano Suassuna dá plena liberdade ao diretor, no que respeita à definição do cenário, que poderá “apresentar uma entrada de igreja à direita, com um apequena balaustrada ao funda /../. Mas tudo isso fica a critério do ensaiador e do cenógrafo, que podem montar a peça com dois cenário /…/” (p.21).

d) Percebe-se, portanto, que a técnica de composição da peça segue uma linha simplista, solicitada pelo próprio autor, o que faz residir a importância da mesma apenas na proposição dos diálogos e no decurso da ação conseqüente.

A estrutura propriamente dita, isto é, a forma final do texto é o elemento fundamental par a compreensão da peça.

PERSONAGENS

A peça apresenta quinze personagens de cena e uma personagem de ligação e comando do espetáculo. As personagens assumem uma posição simbólica, e é desse simbolismo que deriva a importância do texto.

Principal: João Grilo é a personagem principal porque atua como criador de tosa as situações da peça.

Outras: Chicó, Padre João, Sacristão, Padeiro, Mulher do Padeiro, Bispo, Cangaceiro, o Encourado, Manuel, A Compadecida, Antônio Morais, Frade, Severino do Aracaju, Demônio. Essas personagens compõem o quadro de cada situação.

Ligação: Palhaço, representando o autor, liga o circo à representação do Auto da Compadecida.

Organizado o quadro desses personagens, vejamos agora as características de cada uma delas.

1. JOÃO GRILO. A dimensão de sua importância surge logo no início da peça quando as personagens são apresentadas ao público pelo Palhaço. Apenas duas personagens se dirigem ao público. Uma, a chamado do Palhaço, a atriz que vai representar a Compadecida, e João Grilo.

“PALHAÇO: Auto da Compadecia! Umas história altamente moral e um apelo à misericórdia.

JOÃO GRILO: Ele diz “à misericórdia”, porque sabe que, se fôssemos julgados pela justiça, toda a nação seria condenada (p.24).

Mas a importância inequívoca de João Grilo na estrutura da peça define-se a partir do fato de que as situações do Auto da Compadecida são todas desenvolvidas por essa personagem:

– a benção do cachorro, e o expediente utilizado: o Major Antônio Morais. JOÃO GRILO: “Era o único jeito de o padre prometer que benzia. Tem medo da riqueza do major que se péla. Não viu a diferença? Antes era ” Que maluquice, que besteira!“, agora “Não veja mal nenhum em se abençoar as criatura de Deus!” (p.33).

– a loucura do Padre João, como justifica para o Major Antônio Morais. JOÃO GRILO: /…/ “É que eu queria avisar para Vossa Senhoria não ficar espantado: o padre está meio doido“.(p.40). “Não sei, é a mania dele agora. Benzer tudo e chama a gente de cachorro“(p.41).

– o testamento do cachorro. JOÃO GRILO: “Esse era um cachorro inteligente. Antes de morrer, olhava para a torre da igreja toda vez que o sino batia. Nesses últimos tempos, já doente para morrer, botava uns olhos bem compridos para os lados daqui, latindo na maior tristeza. Até que meu patrão entendeu, coma a minha patroa, é claro, que ele queria ser abençoada e morrer como cristão. Mas nem assim ele sossegou. Foi preciso que o patrão prometesse que vinha encomendar a benção e que, no caso de ele morrer, teria um enterro em latim. Que em troca do enterro acrescentaria no testamento dele dez contos de réis para o padre e três para o sacristão” (p.63-64).

– o gato que “descome dinheiro”. JOÃO GRILO: “Pois vou vender a ela, para tomar lugar do cachorro, um gato maravilhoso, eu descome dinheiro” (p.38). “Então tiro. (Passa a mão no traseiro do gato e tira uma prata de cinco tostões). Esta aí, cinco tostões que o gato lhe dá de presente“(p.96).

– a gaita que fecha o corpo e ressuscita. JOÃO GRILO: “Mas cura. Essa gaita foi benzida por Padre Cícero, pouco antes de morrer” (p.122).

– a “visita” ao Padre Cícero. JOÃO GRILO: “Seu cabra lhe dá um tiro de rifle, você vai visitá-lo. Então eu toco na gaita e você volta” (p.127). Essa situação decorre da anterior, mas pode ser considerada com o independente.

– o julgamento pelo Diabo (o Encourado). JOÃO GRILO: “Sai daí, pai da mentira! Sempre ouvi dizer que para se condenar uma pessoa ela tem de ser ouvida!“(p.144).

– o apelo à misericórdia (À Virgem Maria). JOÃO GRILO: “Ah, isso é comigo. Vou fazer um chamado especial, em verso. Garanto que ela vem, querem ver?” (p.169).

Observa-se agora a distribuição das personagens nas situações acima definidas, situações essas todas elas deflagradas por João Grilo, como já foi observado:

Situação / Personagens / Conteúdo da situação

1ª. João Grilo – Chicó – Padre João: a bênção do cachorro da mulher do padeiro. Expediente de João Grilo: o cachorro pertence ao Major Antônio Morais.

2ª. João Grilo – Chicó – Antônio Morais – Padre: chega o Major Antônio Morais. Expediente de João Grilo: o Padre João está maluco, benze a todos e chama todo mundo de cachorro.

3ª. João Grilo – Padre – Mulher – Padeiro – Chicó – Sacristão – Bispo: o testamento do cachorro morto. Expediente de João Grilo: o cachorro morto, encomendado em latim e tudo mais, deixa no seu testamento dinheiro para o Sacristão, para o Padre e para o Bispo. Fonte do dinheiro: o Padeiro e sua mulher.

4ª. João Grilo – Chicó – Mulher: a mulher do Padeiro lamenta a perda de seu cachorro. Expediente de João Grilo: arranja-lhe um gato que descome dinheiro. Vende-o e faz seu lucro.

5ª. João Grilo – Chicó – Bispo – Padre – Padeiro – Frade – Sacristão – Mulher – Severino (do Aracaju) – Cangaceiro: o assalto do cangaceiro Severino do Aracaju. Expediente de João Grilo: a gaita que fecha o corpo e ressuscita. A bexiga cheia de sangue. Evento especial: todas as personagens morrem, inclusive João Grilo. Salva-se Chicó.

6ª. Palhaço – João Grilo – Chicó – Todas as demais personagens Demônio – O Encourado – Manuel: ressurreição no picadeiro do circo. O Julgamento pelo Demônio, pelo Encourado e por Manuel (Cristo). Expediente de João Grilo: forçar o julgamento, ouvindo os pecadores.

7ª. Todas as personagens – A Compadecida: condenação dos pecadores. Expediente de João Grilo: apelo à misericórdia da Virgem Maria.

Pela composição do quadro acima, nota-se que em todas as seqüências a presença de João Grilo é fundamental. Daí a afirmação de que a peça gira em torno dessa personagem, do ponto de vista estrutural.

João Grilo é uma figura típica do nordestino sabido, analfabeto e amarelo. Habituado a sobreviver e a viver a partir e expedientes, trabalha na padaria, vive em desconforto e a miséria é sua companheira. Sua fé nas artimanhas que cria, reflete, no fundo, uma forma de crença arraigada na proteção que recebe, embora sem saber, da Compadecida. É essa convicção que o salva. E ele recebe nova oportunidade de Manuel (Cristo), retornando- à vida e à companhia de Chicó. É uma oportunidade inusitada de ressurreição e retorno à existência. Caberá a ele provar que essa oportunidade foi ou não bem aproveitada.

2. CHICÓ. Companheiro constante de João Grilo e, especialmente, seu diálogo. Chicó envolve-se nos expedientes de João Grilo e é seu parceiro, mais por solidariedade do que por convicção íntima. Mas é um amigo leal.

3. PADRE JOÃO, O BISPO e o SACRISTÃO. Essas personagens, embora de atuação diversa, estão concentradas em torno de simonia e da cobiça, relacionada com a situação contida no testamento do cachorro.

4. ANTÔNIO MORAIS. É a autoridade decorrente do poder econômico, resquício do coronelismo nordestino, a quem se curvam a política, os sacerdotes e a gente miúda.

5. PADEIRO e sua MULHER. Encarnam, um lado, a exploração do homem pelo homem e, de outro, o adultério.

6. SEVERINO DO ARACAJU e o CANGACEIRO. Representam a crueldade sádica, e desempenham um papel importante na seqüência de número cinco, porque nessa seqüência matam e são mortos. Com isso propicia-se a ressurreição e o julgamento.

7. O ENCOURADO e o DEMÔNIO. Julgam, aguardando seu benefício, isto é, o aumento da clientela do inferno. É importante verificar que representam, de alguma forma, um instrumento da Justiça, encarnado em Manuel (O Cristo).

8. MANUEL. É o Cristo negro, justo e onisciente, encarnação do verbo e da lei. Atua como julgador final dos da prudência mundana, do preconceito, do falso testemunho, da velhacaria, da arrogância, da simonia, da preguiça. Personagem a personagem têm seu pecado definido e analisado, com sabedoria e com prudência.

9. A COMPADECIDA. É Nossa Senhora, invocada por João Grilo, o ser que lhe dará a Segunda oportunidade da vida. Funciona efetivamente como medianeira, plena de misericórdia, intervindo a favor de quem nela crê, João Grilo.

Pela atuação das personagens, pelo sentido global que encima a peça, percebemos claramente que nela existe uma proposição metafísica, vinculada à Igreja Católica e à idéia da salvação.

Ao lado da significação global do texto, como estrutura, o Palhaço define essa proposição claramente.

O Palhaço realiza, nessa peça, o papel do Corifeu, no teatro clássico, e sua intervenção corresponde à parábase da comédia clássica – trecho fora do enredo dramático em que as idéias e as intenções ficam claramente expressas:

PALHAÇO.

Ao escrever esta peça, onde combate o mundanismo, praga de sua igreja, o autor quis ser representado por um palhaço, para indicar que sabe, mais do que ninguém, que sua lama é um velho catre, cheio de insensatez e de solércia. Ele não tinha o direito de tocar nesse tema, mas ousou fazê-lo, baseado no espírito popular de sua gente, porque acredita que esse povo sofre, é um povo e tem direito a certas intimidades (p.23-24).

/…/ Espero que todos os presente aproveitem os ensinamentos desta peça e reformem suas vidas, se bem que eu tenho certeza de que todos os que estão aqui são uns verdadeiros santos, praticantes da virtude, do amor a Deus e ao próximo, sem maldade, sem mesquinhez, incapazes de julgar e de falar mal dos outros, generosos, sem avareza, ótimos patrões, excelentes empregados, sóbrios, castos e pacientes (p.137).

A intenção moral, ou moralidade da peça, fica muito clara, desde que se torne claro, também, que essa intenção vincula-se a uma linha de pensamento religioso, e da Igreja Católica.

PROBLEMÁTICA DA OBRA

Pela estrutura da peça, pode-se notar que:

1- sua intenção clara e expressa é de natureza moral, e de moral católica;

2- os componentes estruturais do texto revelam personagens que simbolizam pecados (maiores ou menores), que recebem o direito ao julgamento, que gozam do livre-arbítrio e que são ou não condenados.

Percebe-se, de outro lado, que a preocupação maior reside em compor um auto de moralidade, ao estilo quinhentista português (modelo Gil Vicente), mas seguindo alinha do teatro dirigido aos catecúmenos, do Padre Anchieta.

Para tanto, a peça se embasa em determinadas tradições localistas e regionalistas do folclore, com vistas à sua sublimação como instrumento pitoresco de comunicação com o público (que, no caso, seriam os catecúmenos).

Com isso, nota-se que a realidade regional brasileira, especificamente a realidade nordestina, está presente através de seus instrumentos culturais mais significativos, as crenças e a literatura de cordel.

O autor não pretende analisar essa realidade brasileira, mas a partir dela moralizar os homens, isto é, dinamizar nas usas consciências a noção do dever humano e da responsabilidade de cada um em relação a seus semelhantes e em relação a Deus, onisciente e onipresente.

Como proposição estética, o Auto da Compadecida procura corporificar as seguintes noções:

1- a criação artística, o teatro em particular, devem levar o povo, a cultura desse povo a ele mesmo. Daí o circo, seu picadeiro e a representação dentro da representação.

2- menos do que essa realidade regional e cultural de um povo, o que importa é criar um projeto que defina idéias e concepções universais (as da Igreja, no caso) com o fim de consciencializar o público. Por esse motivo a realidade regional nordestina é, no caso, instrumento de uma idéia e não fim em si nessa;

3- criar um texto teatral é, antes de tudo, criá-lo para uma encenação, daí a absoluta liberdade que o autor ‘da para qualquer modalidade de encenação. O próprio texto final da peça, como editado, é o resultado da experiência colhida a representação pública.

Créditos: Sâmara Rodrigues de Ataíde, Especialista em Lingüística e Literatura Comparada – UFV | Biblioteca Digital Unec | Vestibular-76 (1976), profs. Delson Gonçalves Ferreira, Teotônio Marques Filho, Juarez Távora de Freiras e Luís Paulo de Brito, Editora O Lutador-MG, edição dirigida aos exames vestibulares da UFMG.

Posts Relacionados