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Civilização (Conto), de Eça de Queirós

by Lucas Gomes

Civilização

é um conto de Eça de Queiroz onde é narrada a vida de Jacinto,
um homem novo e culto que vivia luxuosamente, rodeado dos mais sofisticados e
recentes inventos e das mais belas obras-primas da literatura. O conto é o embrião
do romance A
Cidade e as Serras
.

De fato, Jacinto era um homem sempre aborrecido, desanimado e entediado, apesar do luxo em que vivia. Era o protótipo do
homem civilizado mas também da infelicidade. Tudo havia de mudar quando o protagonista decidiu ir passar uma temporada
bem longe da civilização. Jacinto tentou superar o isolamento enviando para aí todos os equipamentos técnicos e demais
apetrechos que julgava indispensáveis a uma vida civilizada e luxuosa. Contudo, ao chegar, apercebe-se que os caixotes
enviados não tinham chegado e que a nenhuma da suas ordens, relativas à realização de obras na casa, tinha sido cumprida.

Inicialmente desmoralizado e ainda mais pessimista com tamanha “tragédia”, Jacinto é, subitamente, invadido e transformado
pela beleza e simplicidade da vida campestre. E vai ser assim, longe da civilização, dispensando os exageros do luxo, que
Jacinto redescobre o prazer e a alegria de viver.

No conto Civilização, temos um confronto entre duas concepções de vida, expe-rienciadas por um mesmo personagem, o
milionário Jacinto.

O conto tem como principal objetivo criticar o tipo de progresso que torna o homem
escravo de uma sociedade de consumo e pode ser estruturado em duas partes: a primeira
representa uma crítica à sociedade civilizada; a segunda, uma solução para essa
crise.

Leia o conto na íntegra:

CIVILIZAÇÃO

Eu possuo preciosamente um amigo (o seu nome é Jacinto), que nasceu num palácio, com quarenta contos de renda em pingues terras de
pão, azeite e gado.
Desde o berço, onde sua mãe, senhora gorda e crédula de Trás-os-Montes, espalhava, para reter as Fadas Benéficas, funcho e âmbar,
Jacinto fora sempre mais resistente e são que um pinheiro das dunas. Um lindo rio, murmuroso e transparente, com um leito muito liso
de areia muito branca, refletindo apenas pedaços lustrosos de um céu de Verão ou ramagens sempre verdes e de bom aroma, não ofereciam
àquele que o descesse numa barca cheia de almofadas e de champagne gelada mais doçura e facilidades do que a vida oferecia ao meu
camarada Jacinto. Não teve sarampo e não teve lombrigas. Nunca padeceu, mesmo na idade em que se lê Balzac e Musset, os tormentos a
sensibilidade. Nas suas amizades foi sempre tão feliz como o clássico Orestes. Do amor só experimentara o mel – esse mel que o amor
invariavelmente concede a quem o pratica, como as abelhas, com ligeireza e mobilidade. Ambição, sentira somente a e compreender bem
as idéias gerais, e a “ponta o seu intelecto” (como diz o velho cronista medieval) não estava ainda romba nem ferrugenta… E todavia,
desde os vinte e oito anos, Jacinto já se vinha repastando de schopenhauer, do Ecclesiastes, de outros Pessimistas menores, e três,
quatro vezes por dia, bocejava, com um bocejo cavo e lento, passando os dedos finos sobre as faces, como se nelas só apalpasse palidez
e ruína. Porquê?
Era ele, de todos os homens que conheci, o mais complexamente civilizado – ou antes aquele que se munira da mais vasta soma e
civilização material, ornamental e intelectual. Nesse palácio (floridamente chamado o Jasmineiro) que seu pai, também Jacinto,
construíra sobre uma honesta casa do século XVII, assoalhada a pinho e branqueada a cal – existia, creio eu, tudo quanto para bem
o espírito ou da matéria os homens têm criado, através da incerteza e dor, desde que abandonaram o vale feliz e Septa-Sinu, a
Terra das Águas Fáceis, o doce país Ariano.
A biblioteca, que em duas salas, amplas e claras como praças, forrava as paredes, inteiramente, desde os tapetes e Caramânia até
ao teto – de onde alternadamente, através de cristais, o sol e a eletricidade vertiam uma luz estudiosa e calma – continha vinte
e cinco mil volumes, instalados em ébano, magnificamente revestidos de marroquim escarlate.
Só sistemas filosóficos (e com justa prudência, para poupar espaço, o bibliotecário apenas colecionara os que irreconciliavelmente
se contradizem) havia mil oitocentos e dezessete!
Uma tarde que eu desejava copiar um ditame de Adam Smith, percorri, buscando este economista ao longo das estantes, oito metros de
economia política! Assim se achava formidavelmente abastecido o meu amigo Jacinto de todas as obras essenciais a inteligência – e
mesmo da estupidez. E o único inconveniente este monumental armazém o saber era que todo aquele que lá penetrava inevitavelmente
lá adormecia, por causa das poltronas, que providas de finas pranchas móveis para sustentar o livro, o charuto, o lápis das notas,
a taça de café, ofereciam ainda uma combinação oscilante e flácida de almofadas, onde o Corpo encontrava logo, para mal do Espírito,
a doçura, a profundidade e a paz estirada de um leito.
Ao fundo, e com um altar-mor, era o gabinete de trabalho de Jacinto. A sua cadeira, grave e abacial, de couro, com brazões, datava
do século XIV, e em torno dela pendiam numerosos tubos acústicos, que, sobre os panejamentos de seda cor de musgo e cor de hera,
pareciam serpentes adormecidas e suspensas num velho muro de quinta. Nunca recordo sem assombro a sua mesa, recoberta toda e sagazes
e subtis instrumentos para cortar papel, numerar páginas, colar estampilhas, aguçar lápis, raspar emendas, imprimir datas, derreter
lacre, cintar documentos, carimbar contas! Uns de níquel, outros de aço, rebrilhantes e frios, todos eram de um manejo laborioso e
lento: alguns com as molas rígidas, as pontas vivas, trilhavam e feriam: e nas largas folhas de papel watman em que ele escrevia,
e que custavam quinhentos reis, eu por vezes surpreendi gotas de sangue o meu amigo. Mas a todos ele considerava indispensáveis para
compor as suas cartas (Jacinto não compunha obras), assim como os trinta e cinco dicionários, e os manuais, e as enciclopédias, e os
guias, e os diretórios, atulhando uma estante isolada, esguia, em forma de torre, que silenciosamente girava sobre o seu pedestal,
e que eu denominara o Farol. O que porém mais completamente imprimia àquele gabinete um portentoso caráter de civilização eram,
sobre as suas peanhas e carvalho, os grandes aparelhos, facilitadores do pensamento – a máquina de escrever, os autocopistas, o
telégrafo Morse, o fonógrafo, o telefone, o teatrofone, outros ainda, todos com metais luzidios, todos com longos fios.
Constantemente sons curtos e secos retiniam no ar morno daquele santuário. Tic, tic, tic! Dlim, dlim, lim! Crac, crac, crac! Trrre,
trrre!… Era o meu amigo comunicando. Todos esses fios mergulhavam em forças universais. E elas nem sempre, desgraçadamente, se
conservavam domadas e disciplinadas! Jacinto recolhera no fonógrafo a voz do conselheiro Pinto Porto, uma voz oracular e rotunda,
no momento de exclamar com respeito, com autoridade: – “Maravilhosa invenção! Quem não admirará os progressos deste século?” Pois,
numa doce noite e S. João o meu supercivilizado amigo, desejando que uma senhoras parentas de Pinto Porto (as amáveis Gouveias)
admirassem o fonógrafo, fez romper o bocarrão do aparelho, que parece uma trompa, a conhecida voz rotunda e oracular: – “Quem não
admirará os progressos deste século?” Mas, inábil ou brusco, certamente desconcertou alguma mola vital – porque de repente o fonógrafo
começa a redizer, sem descontinuação, interminavelmente, com uma sonoridade cada vez mais rotuna, a sentença o conselheiro: – “Quem
não admirará os progressos deste século?” Debalde Jacinto, pálido, com os dedos trémulos, torturava o aparelho. A exclamação
recomeçava, rolava, oracular e majestosa: – “Quem não admirará os progressos deste século?” Enervados, retirámos para uma sala
distante, pesadamente revestida dde panos de Arrás. Em vão! A voz de Pinto Porto lá estava, entre os panos de Arrás, implacável e
rotunda: – “Quem não admirará os progressos deste século?” Furiosos, enterramos uma almofada na boca do fonógrafo, atirámos por cima
mantas, cobertores espessos, para sufocar a voz abominável. Em vão! sob a mordaça, sob as grossas lãs, a voz rouquejava, surda mas
oracular: – “Quem não admirará os progressos deste século?” As amáveis Gouveias tinham abalado, apertando desesperadamente os xailes
sobre a cabeça.
Mesmo à cozinha, onde nos refugiámos, a voz descia, engasgada e gosmosa: – “Quem não admirará os progressos deste século?” – Fugimos
espavoridos para a rua.
Era de madrugada. Um fresco bando de raparigas, de volta das fontes, passava cantando com braçadas de flores:
Todas as ervas são bentas
Em manhã de S. João…

Jacinto, respirando o ar matinal, limpava as bagas lentas do suor. Recolhemos ao Jasmineiro, com o sol já alto, já quente. Muito
de manso abrimos as portas, como no receio e despertar alguém. Horror! Logo da antecâmara percebemos sons estrangulados, roufenhos:
“admirará… progressos… século?…” Só de tarde um eletricista pôde emudecer aquele fonógrafo horrendo.
Bem mais aprazível (para mim) do que esse gabinete temerosamente atulhado de civilização – era a sala de jantar, pelo seu arranjo
compreensível, fácil e íntimo. À mesa só cabiam seis amigos que Jacinto escolhia com critério na literatura, na arte e na metafísica,
e que, entre as tapeçarias de Arrás, representando colinas, pomares e pórticos da Ática, cheias de classicismo e luz, renovavam
ali repetidamente banquetes que pela sua intelectualidade lembravam os de Platão. Cada garfada se cruzava com um pensamento ou com
palavras destramente arranjadas em de pensamento.
E a cada talher correspondiam seis garfos, todos de feitios dessemelhantes e astuciosos: – um para as ostras, outro para o peixe,
outro para as carnes, outro para os legumes, outro para a fruta, outro para o queijo. Os copos, pela diversidade dos contornos e
das cores, faziam, sobre a toalha mais reluzente que esmalte, como ramalhetes silvestres espalhados por cima a neve. Mas Jacinto e os
seus filósofos, lembrando o que o experiente Salomão
ensina sobre as ruínas e amarguras o vinho, bebiam
apenas em três gotas de água uma gota de Bordéus
(Chateaubriand, 1860). Assim o recomendam – Hesíodo no
seu Nereu, e Díocles nas suas Abelhas. E de águas havia
sempre no Jasmineiro um luxo redundante – águas
geladas, águas carbonatadas, águas esterilizadas, águas
gasosas, águas de sais, águas minerais, outras ainda, em
garrafas sérias, com tratos terapêuticos impressos no
rótulo… O cozinheiro, mestre sardão, era daqueles que
Anáxarogas equiparava aos Retóricos, aos Oradores, a
todos os que sabem a arte divina de “temperar e servir a
Ideia”: e em Síbaris, cidade do Viver Excelente, os
magistrados teriam votado a mestre Sardão, pelas festas
de Juno Lacínia, a coroa de folhas de ouro e a túnica
milésia que se devia aos benfeitores cívicos. A sua sopa de
alcachofra e ovas de carpa; os seus filetes de veado
macerados em velho Madeira com puré de nozes; as suas
amoras geladas em éter, outros acepipes ainda, numerosos
e profundos (e os únicos que toleravam o Jacinto) eram
obras de um artista, superior pela abundância de ideias
novas – e juntavam sempre a raridade do Sabor à
magnificência da Forma. Tal prato desse mestre
incomparável parecia, pela ornamentação, pela graça
florida dos lavores, pelo arranjo dos coloridos frescos e
cantantes, uma jóia esmaltada do cinzel de Meurice ou
Cellini. Quantas tardes eu desejei fotografar aquelas
composições de excelente fantasia, antes que o trinchante
as retalhasse! E esta superfinidade o comer condizia
deliciosamente com a do servir. Por sobre um tapete, mais
fofo e mole que o musgo da floresta da Brocelande,
deslizavam, como sobras fardadas e branco, cinco criados –
e um pajem preto, à maneira vistosa do século XVIII. As
travessas (de prata) subiam da cozinha e da copa por dois
assessores, um para as iguarias quentes, forrado de tubos
onde a água fervia, forrado e zinco, amónia e sal, e ambos
escondidos por flores tão densas e viçosas que era como se
até a sopa saísse fumegando os românticos jardins de
Armida. E muito bem me lembro de um domingo de Maio
em que, jantando com Jacinto um bispo, o erudito bispo de
Chorazin, o peixe emperrou no meio do ascensor, seno
necessário que o acudissem, para o extrair, pedreiros com
alavancas.
Nas tardes em que havia “banquete de Platão” (que
assim denominávamos essas festas de trufas e idéias
gerais), eu vizinho e íntimo, aparecia ao declinar o sol, e
subia familiarmente aos quartos do nosso Jacinto – onde o
encontrava sempre incerto entre as suas casacas, porque
as usava alternadamente de seda, de pano, de flanelas
«Jaeghel», e de foulard das Índias. O quarto respirava o
frescor e aroma do jardim por duas vastas janelas,
providas magnificamente (além das cortinas de seda mole
Luís XV) de uma vidraça exterior de cristal inteiro, de uma
vidraça interior de cristais miúdos, de um toldo rolando na
cimalha, de um estore de sedinha frouxa, de gazes que
franziam e se enrolavam como nuvens, e de uma gelosia
móvel de gradaria mourisca. Todos estes resguardos (sábia
invenção de Holland & Cia, de Londres) serviam a guardar
a luz e o ar – segundo os avisos de termómetros,
barómetros e higrómetros, montados em ébano, e a que
um meteorologista (Cunha Guedes) vinha, todas as
semanas, verificar a precisão.
Entre estas duas varandas rebrilhava a mesa de
toilette, uma mesa enorme de vidro, toda de vidro, para a
tornar impenetrável aos micróbios, e coberta de todos
esses utensílios de asseio e alinho que o homem do século
XIX necessita numa capital, para não desfear o conjunto
sumptuário da civilização. Quando o nosso Jacinto,
arrastando as suas engenhosas chinelas de pelica e seda,
se acercava desta ara – eu, bem aconchegado num divã,
abria com indolência uma revista, ordinariamente a
“Revista Electropática”, ou a das “Indagações Psíquicas”.
E Jacinto começava… Cada um desses utensílios de aço, de
marfim, de prata, impunham ao meu amigo, pela influência
omnipoderosa que as coisas exercem sobre o dono (sunt
tyrannoe rerum) o dever de o utilizar com aptidão e
deferência. E assim as operações de alinhamento de
Jacinto apresentavam a prolixidade, reverente e
insuprimível, dos ritos de um sacrifício. Começava pelo
cabelo… Com uma escova chata, redonda e dura, acamava
o cabelo, corredio e louro, no alto, aos lados da risca; com
uma escova estreita e recurva, à maneira do alfange de um
persa, ondeava o cabelo sobre a orelha; com uma escova
côncava, em forma de telha, apastava o cabelo, por trás,
sobre a nuca… Respirava e sorria. Depois, com uma
escova de longas cerdas, fixava o bigode; com uma escova
leve e flácida acurvava as sobracelhas; com uma escova
feita de penugem regularizava as pestanas. E deste modo
jacinto ficava, diante o espelho, passando pêlos sobre o
seu pêlo, durante catorze minutos.
Penteado e cansado, ia purificar as mãos. Dois criados,
ao fundo, manobravam com perícia e vigor os aparelhos do
lavatório que era apenas um resumo dos maquinismos
monumentais da sala de banho. Ali, sobre o mármore
verde e róseo do lavatório, havia apenas duas duchas
(quente e fria) para a cabeça; quatro jactos, graduados
desde zero até cem graus; o vaporizador de perfumes, a
fonte de água esterilizada (para os dentes), o repuxo para
a barba, e ainda as torneiras que rebrilhavam e botões de
ébano que, de leve roçados, desencadeavam o marulho e o
estridor de torrentes nos Alpes… Nunca eu, para molhar os
dedos, me cheguei àquele lavatório sem terror –
escarmentado da tarde amarga de Janeiro, em que
bruscamente, dessoldada a torneira, o jacto de água a cem
graus rebentou, silvando e fumegando, furioso,
devastador… fugimos todos, espavoridos. Um clamor
atroou o Jasmineiro. O velho grilo, escudeiro que fora de
Jacinto pai, ficou coberto de ampolas na face, nas mãos
fiéis.
Quando Jacinto acabava de se enxugar laboriosamente
a toalhas de felpo, de linho, de cora entrançada (para
restabelecer a circulação), de seda frouxa (para lustrar a
pele), bocejava, com um bocejo cavo e lento.
E era este bocejo, perpétuo e vago, que nos inquietava
a nós, seus amigos e filósofos. Que faltava a este homem
excelente? Ele tinha a sua inabalável saúde de pinheiro
bravo, crescido nas dunas; uma luz de inteligência, própria
tudo o que alumiar, firme e clara, sem tremor ou morrão;
quarenta magníficos contos de renda; todas as simpatias
de uma cidade chasqueadora e céptica; uma varrida de
sombras, mais liberta e lisa do que o céu de Verão… E
todavia bocejava constantemente, palpava na face, com os
dedos finos, a palidez e as rugas. Aos trinta anos Jacinto
corcoveava, como sob um fardo injusto! E pela moralidade
desconsolada e toda a sua ação parecia ligado, desde os
dedos até à vontade, pelas malhas apertadas de uma rede
que se não via e que o tratava. Era doloroso testemunhar o
fastio com que ele, para apontar um endereço, tomava o
lápis pneumático, a sua pena elétrica – ou, para avisar o
cocheiro, apanhava o tubo telefônico!… Neste mover lento
o braço magro, nos vincos que lhe arrepanhavam o nariz,
mesmo nos seus silêncios, longos e derreados, se sentia o
brado constante que lhe ia na alma: – Que maçada! Que
maçada! – Claramente a via era para Jacinto um cansaço –
ou por laboriosa e difícil, ou por desinteressante e oca. Por
isso o meu pobre amigo procurava constantemente juntar
à sua vida novos interesses, novas facilidades. Dois
inventores, homens de muito zelo e pesquisa, estavam
encarregados, um em Inglaterra, outro na América, de lhe
noticiar e de lhe fornecer todas as informações, as mais
miúdas, que concorressem a aperfeiçoar a confortabilidade
do Jasmineiro. De resto ele próprio se correspondia com
Edison. E pelo lado do pensamento, Jacinto não cessava
também de buscar interesses e emoções que o
conciliassem com a vida – penetrando à cata dessas
emoções e desses interesses pelas veredas mais desviadas
o saber, a ponto de devorar, desde Janeiro a Março,
setenta e sete volumes sobre a evolução das idéias morais
entre as raças negróides. Ah, nunca um homem deste
século batalhou mais esforçadamente contra a seca de
viver! Debalde! Mesmo de explorações tão cativantes como
essa, através a moral dos negróides, Jacinto regressava
mais murcho, com bocejos mais cavos!
E era então que ele se refugiava intensamente na
leitura de Schopenhaeur e do Ecclesiastes. Porquê? Sem
dúvida porque ambos esses pessimistas o confirmavam nas
conclusões que ele tirava de um experiência paciente e
rigorarosa: – “que tuo é vaidade ou dor, que quanto mais
se sabe, mais se pena, e que ter sido rei de Jerusalém e
obtido os gozos todos na vida só leva a maior amargura…”
Mas porque rolara assim a tão escura desilusão – o
saudável, rico, sereno e intelectual Jacinto? O velho
escudeiro Grilo pretendia que “Sua Excelência sofria e
fartura”!
Ora justamente depois desse Inverno, em que ele se
embrenhara na moral os negróiddes e instalara a luz
elétrica entre os arvoredos o jardim, sucedeu que jacinto
teve a necessidade moral iniludível de partir para o Norte,
para o seu velho solar de Torges. Jacinto não conhecia
Torges, e foi com desusado tédio que ele se preparou,
durante sete semanas, para essa jornada agreste. A quinta
fica nas serras – e a rude casa solarenga, onde ainda resta
uma torre o século XV, estava ocupada, havia trinta anos,
pelos caseiros, boa gente de trabalho, que comia o seu
caldo entre a fumaraça da lareira, e estendia o trigo a
secar nas salas senhoriais. Jacinto, logo nos começos de
Março, escrevera cuidadosamente ao seu procurador
Sousa, que habitava a aldeia de Torges, ordenando-lhe que
compusesse os telhados, caiasse os muros, envidraçasse
as janelas. Depois mandou expedir, por comboios rápidos,
em caixotes que transpunham a custo os portões o
Jasmineiro, todos os confortos necessários a duas semanas
de montanha – camas de penas, poltronas, divãs, lâmpadas
e carcel, banheiras e nickel, tubos acústicos para chamar
os escudeiros, tapetes persas para amaciar os soalhos. Um
dos cocheiros partiu com um coupé, uma vitória, um,
mulas e guizos.
Depois foi o cozinheiro, com a bateria, a garrafeira, a
geleira, bocais de trufas, caixas profundas de águas
minerais. Desde o amanhecer, nos pátios largos do
palacete, se pregava, se martelava, como na construção de
uma cidade. E as bagagens, desfilando, lembravam uma
página de Heródoto ao narrar a invasão persa. Jacinto
emagrecera com os cuidados daquele Êxodo. Por fim,
largámos, numa manhã de Junho, com o Grilo, e trinta e
sete malas.
Eu acompanhava Jacinto, no meu caminho para Goães,
onde vive minha tia, a uma légua farta de Torges: e íamos
num Wagon reservado, entre vastas almofadas, com
perdizes e champagne num cesto. A meio da jornada
devíamos mudar de comboio – nessa estação que tem um
nome sonoro em ola e um tão suave e cândido jardim de
roseiras brancas. Era domingo de imensa poeira e sol – e
encontrámos aí, enchendo a plataforma estreita, todo um
povaréu festivo que vinha da romaria e S. Gregório da
Serra.
Para aquele trasbordo, em tarde de arraial, o horário só
nos concedia três minutos avaros. O outro comboio já
esperava, rente aos alpendres, impaciente e silvando. Uma
sineta badalava com furor. E, sem mesmo atender às
lindas moças que ali saracoteavam aos bandos,
afogueadas, de lenços flamejantes, o seio farto coberto de
ouro, e a imagem do santo espetada no chapéu –
corremos, empurramos, furamos, saltamos para o outro
wagon, já reservado, marcado por um cartão com as
iniciais de Jacinto. Imediatamente o trem rolou. pensei
então no nosso Grilo, nas trinta e sete malas! E debruçado
da portinhola avistei ainda junto ao cunhal da estação, sob
os eucaliptos, um monte de bagagens, e homens de bonnet
agaloado que, diante delas, bracejavam com desespero.
Murmurei, recaindo nas almofadas:
– Que serviço!
Jacinto, ao canto, sem descerrar os olhos, suspirou:
– Que maçada!
Toda a hora deslizamos lentamente entre trigais e
vinhedo; e ainda o sol batia nas vidraças, quente e
poeirento, quando chegamos à estação de Gondim, onde o
procurador de Jacinto, o excelente Sousa, nos devia
esperar com cavalos para treparmos a serra até ao solar e
Torges. Por trás o jardim a estação, todo florido também
de rosas e margaridas, Jacinto reconheceu logo as suas
carruagens, ainda empacotadas em lona.
Mas quando nos apeamos no pequeno cais branco e
fresco – só houve em torno de nós solidão e silêncio… Nem
procurador, nem cavalos! O chefe da estação, a quem eu
perguntara com ansiedade “se não aparecera ali o Sr.
Sousa”, tirou afavelmente o seu bonnet de galão. Era um
moço gordo e redondo com cores de maçã camoesa, que
trazia sobre o braço um volume de versos. “Conhecia
perfeitamente o Sr. Sousa! Três semanas antes jogara com
ele a manilha com o Sr. Sousa! Nessa tarde porém,
infelizmente não avistara o Sr. Sousa!» O comboio
desaparecera por detrás das fragas altas que ali pendem
sobre o rio. Um carregador enrolava o cigarro, assobiando.
Rente da grade do jardim, uma velha toda de negro
dormitava agachada no chão, diante de uma cesta de ovos.
E o nosso Grilo, e as nossas bagagens?… O chefe encolheu
risonhamente os ombros nédios. Todos os nossos bens
tinham encalhado decerto naquela estação de roseiras
brancas que tem um nome sonoro em ola. E nós ali
estávamos, perdidos na serra agreste, sem procurador,
sem cavalos, sem Grilo, sem malas!
Para quê esfiar miudamente o lance lamentável? Ao pé
da estação, numa quebra da serra, havia um casal foreiro à
quinta, onde alcançámos para nos levarem e nos guiarem a
Torges uma égua lazarenta, um jumento branco, um rapaz
e um podengo. E aí começámos a trepar, enfastiadamente,
esses caminhos agrestes – os mesmos decerto por onde
vinham e iam de monte a rio os Jacintos do século XV.
Mas, passada uma trémula ponte e pau que galga um
ribeiro todo quebrado por fragas (e onde abunda a truta
adorável) os nossos males esqueceram, ante a inesperada,
inconparável beleza daquela terra bendita. O divino artista
que está nos céus compusera certamente esse monte,
numa das suas manhãs e mais solene e bucólica
inspiração.
A grandeza era tanta como a graça… Dizer os vales
fofos de verdura, os bosques quase sacros, os pomares
cheirosos e em flor, a frescura das águas cantantes, as
ermidinhas branqueando nos altos, as rochas musgosas, o
ar de uma doçura de paraíso, toda a majestade e toda a
lindeza – não é para mim, homem de pequena arte. Nem
creio mesmo que fosse para o mestre Horácio. Quem pode
dizer a beleza das coisas, tão simples e inexprimível?
Jacinto adiante, na água tarda, murmurava: “Ah! que
beleza!” Eu atrás no burro, com as pernas bambas,
murmurava: “Ah! que beleza!” Os espertos regatos riam,
saltando de rocha em rocha. Finos ramos de arbustos
floridos roçavam as nossas faces, com familiaridade e
carinho. Muito tempo um melro nos seguiu, de choupo para
castanheiro, assobiando os nossos louvores. Serra bem
acolhedora e amável… Ah! que beleza!
Por entre estes ahs maravilhados chegamos a uma
avenida de faias, que nos pareceu clássica e nobre.
Atirando uma nova vergastada ao burro e à égua, o nosso
rapaz, com o seu podengo ao lado, gritava: “Aqui é que
estêmos!” E ao funda das afaias havia com efeito um
portão de quinta, que um escudo de armas de velha pedra,
roída de musgo, grandemente afidalgava. Dentro já os
cães ladravam com furor. E mal Jacinto, e eu atrás dele no
burro de Sancho, transpusemos o limiar do solarengo,
correu para nós do alto de uma escadaria um homem
branco, rapado como um clérigo, sem colete, sem jaleca,
que erguia para o ar, num assombro, os braços
esgazeados. Era o caseiro, o Zé Brás. E logo ali, nas
paredes do pátio, entre o latir dos cães, surdiu uma
tumultuosa história que o pobre Brás balbuciava, aturdido,
e que enchia a face de Jacinto de lividez e cólera. O caseiro
não esperava Sua Excelência. (Ele dizia “sua inselência”.)
O procurador, o Sr. Sousa, estava para a raia desde
Maio, a tratar a mãe que levara um coice de mula. E
decerto houvera engano, cartas perdidas… Porque o Sr.
Sousa só contava com Sua Excelência em Setembro, para
a vindima. Na casa nenhuma obra começara. E
infelizmente para Sua Excelência os telhados ainda
estavam sem telhas, e as janelas sem vidraças…
Cruzei os braços, num justo espanto. Mas os caixotes –
esses remetidos para Torges, com tanta prudência, em
Abril, repletos de colchões, de regalos, de civilização… O
caseiro, vago, sem compreender, arregalava os olhos
miúdos onde já bailavam lágrimas. Os caixotes? Nada
chegara, nada aparecera. E na sua perturbação o Zé Brás
procurava entre as arcadas do pátio, nas algibeiras das
pantalonas… Os caixotes? Não, não tinha os caixotes.
Foi então que o cocheiro de Jacinto (que trouxera os
cavalos e as carruagens) se acercou, gravemente. Esse era
um civilizado – e acusou logo o governo. Já quando ele
servia o senhor Visconde de S. Francisco se tinham assim
perdido, por desleixo do governo, da cidade para a serra,
dois caixotes com vinho velho da Madeira e roupa branca
de senhora. Por isso ele, escarmentado, sem confiança na
nação, não largara as carruagens: – e era tudo o que
restava a Sua Excelência, o break, a vitória, o coupé e os
guizos. Somente, naquela rude montanha, não havia
estradas onde elas rolassem. E como só podiam subir para
a quinta em grandes carros de bois – ele lá as deixara em
baixo, na estação, quietas, empacotadas na lona…
Jacinto ficara plantado diante de mim, com as mãos no
bolso:
– E agora?
Nada restava senão recolher, cear o caldo do tio Zé
Brás, e dormir nas palhas que os fados nos concedessem.
Subimos. A escadaria nobre conduzia a uma varanda, toda
coberta, em alpendre, acompanhando a fachada do
casarão, e ornada entre os seus grossos pilares de granito
por caixotes cheios de terra, em que floriam cravos. Colhi
um cravo, entramos: e o meu pobre Jacinto contemplou
enfim as salas do seu solar ! Eram enormes, com as altas
paredes rebocadas a cal que o tempo e o abandono tinham
enegrecido, e vazias, desoladamente nuas, oferecendo
apenas como vestígio de habitação e de vida, pelos cantos,
algum monte de cestos ou algum molho de enxadas. Nos
tetos remotos de carvalho negro alvejavam manchas – que
era o céu já pálido do fim de tarde, surpreendido através
dos buracos do telhado. Não restava uma vidraça. Por
vezes, sob os nossos passos uma tábua podre rangia e
cedia.
Paramos, enfim, na última, a mais vasta, onde havia
duas arcas tulheiras para guardar o grão; e aí depusemos
melancolicamente o que nos ficara de trinta e sete malas –
os paletós alvadios, uma bengala e um “Jornal da Tarde”.
Através das janelas desvidraçadas, por onde se avistavam
copas de arvoredos e as serras azuis de além-rio, o ar
entrava, montesino e largo, circulando plenamente como
em um eirado, com aromas de pinheiro bravo. E, lá de
baixo, dos vales, subia, desgarrada e triste, uma voz de
pegureiro cantando. Jacinto balbuciou: “É horroroso!” Eu
murmurei: “É campestre!”

O Zé Brás no entanto, com as mãos na cabeça,
desaparecera a ordenar a ceia para “suas excelências”. O
pobre Jacinto, esbarrondado pelo desastre, sem resistência
contra aquele brusco desaparecimento de toda a
civilização, caíra pesadamente sobre o poial de uma janela,
e dali olhava os montes. E eu, a quem aqueles ares
serranos e o cantar do pegureiro sabiam bem, terminei por
descer à cozinha, conduzido pelo cocheiro, através de
escadas e becos onde a escuridão vinha menos do
crepúsculo do que de densas teias de aranha.
A cozinha era uma espessa massa de tons e formas
negras, cor de fuligem, onde refulgia ao fundo, sobre o
chão de terra, uma fogueira vermelha que lambia grossas
panelas de ferro, e se perdia em fumarada pela grade
escassa que no alto coava a luz. Aí um bando alvoraçado e
palreiro de mulheres depenava frangos, batia ovos,
escarolava arroz, com santo fervor… Do meio delas o bom
caseiro, estonteado, investiu para mim jurando que “a ceia
de suas excelências não demorava um credo”. E como eu o
interrogava a respeito de camas, o digno Brás teve um
murmúrio vago e tímido sobre «enxergazinhas no chão».
– É o que basta, Sr. Zé Brás, acudi eu para o consolar.
– Pois assim Deus seja servido! suspirou o homem
excelente, que atravessava nessa hora o transe mais
amargo da sua vida serrana.
Voltando a cima, com estas consolantes novas de ceia e
cama, encontrei ainda o meu Jacinto no poial da janela,
embebendo-se todo da doce paz crepuscular, que lenta e
caladamente se estabelecia sobre vale e monte. No alto já
tremeluzia uma estrela, a Vésper diamantina, que é tudo o
que neste céu cristão resta do esplendor corporal de
Vênus! Jacinto nunca considerara bem aquela estrela –
nem assistira a este majestoso e doce adormecer das
coisas. Esse enegrecimento de montes e arvoredos, casais
claros fundindo-se na sombra, um toque dormente de sino
que vinha pelas quebradas, o cochichar das águas entre as
relvas baixas – eram para ele como iniciações. Eu estava
defronte, no outro poial. E senti-o suspirar como um
homem que enfim descansa.
Assim nos encontrou neste contemplação o Zé Brás
com o doce aviso de que estava na mesa a ceiazinha. Era
adiante, noutra sala mais nua, mais negra. E aí, o meu
supercivilizado Jacinto recuou com um pavor genuíno. Na
mesa de pinho, recoberta com uma toalha de mãos,
encostada à parede sórdida, uma vela de sebo, meio
derretida num castiçal de latão, alumiava dois pratos de
louça amarela, ladeados por colheres de pau e por garfos
de ferro. Os copos de vinho grosso e baço conservavam o
tom roxo do vinho que neles passara em partos anos de
fartas vindimas. O cavilhete de barro com azeitonas
deleitaria, pela sua singeleza ática, o coração de Diógenes.
Na larga broa estava cravado um facalhão… Pobre Jacinto.
Mas lá abancou resignado, e muito tempo,
pensativamente, esfregou com o seu lenço o garfo negro e
a colher de pau. Depois, mudo, desconfiado, provou um
gole curto do caldo, que era de galinha e rescendia.
Provou, e levantou-se para mim, seu companheiro e
amigo, uns olhos largos que luziam, surpreendidos. Tornou
a sorver uma colherada do caldo, mais cheia, mais lenta…
E sorriu, murmurando com espanto: “Está bom!” Estava
realmente bom: tinha fígado e tinha moela: o seu perfume
enternecia. Eu, três vezes, com energia, ataquei aquele
caldo: foi Jacinto que rapou a sopeira. Mas já, arredando a
broa, arredando a vela, o bom Zé Brás pousara na mesa
uma travessa vidrada, que transbordava de arroz com
favas. ora, apesar de a fava (que os Gregos chamavam
“ciboria”) pertencer às épocas superiores da civilização, e
promover tanto a sapiência que havia em Sício, na Galácia,
um templo dedicado a Minerva Ciboriana – Jacinto sempre
detestara favas. Tentou todavia uma garfada tímida. De
novo os seus olhos, alargados pelo assombro, procuraram
os meus. Outra garfada, outra concentração… E eis que o
meu dificílimo amigo exclama: “Está ótimo!” Eram os
picantes ares da serra? Era a arte deliciosa daquelas
mulheres que em baixo remexiam as panelas, cantando o
Vira, meu bem? Não sei: mas os louvores de Jacinto a cada
travessa foram ganhando em amplidão e firmeza. E diante
do frango louro, assado no espeto de pau, terminou por
bradar: «Está divino!» Nada porém o entusiasmou como o
vinho, o vinho caindo de alto, da grossa caneca verde, um
vinho gostoso, penetrante, vivo, quente, que tinha em si
mais alma que muito poema ou livro santo! mirando à luz
de sebo o copo rude que ele orlava de espuma, eu
recordava o dia geórgico em que Virgílio, em casa de
Horácio, sob a ramada, cantava o fresco palhete da Rética.
E Jacinto, com uma cor que eu nunca vira na sua palidez
schopenháurica, sussurrou logo o doce verso: Rethica quo
te carmina dicat. Quem dignamente te cantará, vinho
daquelas serras?
Assim jantamos deliciosamente, sob os auspícios do Zé
Brás. E depois voltamos para as alegrias únicas da casa,
para as janelas desvidraçadas, a contemplar
silenciosamente um sumptuoso céu de Verão, tão cheio de
estrelas que todo ele parecia uma densa poeirada de ouro
vivo, suspensa, imóvel, por cima dos montes negros. Como
eu observei ao meu Jacinto, na cidade nunca se olham os
astros por causa dos candeeiros – que os ofuscam: e nunca
se entra por isso numa completa comunhão com o
universo. O homem nas capitais pertence à sua casa, ou se
o impelem fortes tendências de sociabilidade, ao seu
bairro. tudo o isola e o separa da restante natureza – os
prédios obstrutores de seis andares, a fumaça das
chaminés, o rolar moroso e grosso dos ônibus, a trama
encarceradora da vida urbana… Mas que diferença, num
cimo de monte com Torges! Aí todas essas belas estrelas
olham para nós de perto, rebrilhando, à maneira de olhos
conscientes, umas fixamente, com sublime indiferença,
outras ansiosamente, com uma luz que palpita, uma luz
que chama, como se tentassem revelar os seus segredos
ou compreender os nossos… E é impossível não sentir uma
solidariedade perfeita entre esses imensos mundos e os
nossos pobres corpos. Todos são obras da mesma vontade.
Todos vivem da ação dessa vontade imanente. Todos
portanto, desde os Úranos até aos Jacintos, constituem
modos diversos de um ser único, e através das suas
transformações somam na mesma unidade. Não há idéia
mais consoladora do que esta – que eu, e tu, e aquele
monte, e o sol que agora se esconde, são moléculas do
mesmo Todo, governadas pela mesma Lei, rolando para o
mesmo Fim. Desde logo se somem as responsabilidades
torturantes do individualismo. Que somos nós? Formas
sem força, que uma força impele. E há um descanso
delicioso nesta certeza, mesmo fugitiva, de que se é o grão
de pó irresponsável e passivo que vai levado no grande
vento, ou a gota perdida na torrente! Jacinto concordava,
sumido na sombra. Nem ele nem eu sabíamos os nomes
desses astros admiráveis. Eu, por causa da maciça e
indesbastável ignorância de bacharel, com que saí do
ventre de Coimbra, minha mãe espiritual. Jacinto, porque
na sua ponderosa biblioteca tinha trezentos e dezoito
tratados de astronomia! Mas que nos importava de resto
que aquele astro além se chamasse Sirius e aquele outro
Aldebaran? Que lhes importava a eles que um de nós fosse
José e o outro Jacinto? Éramos formas transitórias do
mesmo ser eterno – e em nós havia o mesmo Deus. E se
eles também assim o compreendiam, estávamos ali, nós à
janela num casarão serrano, eles no seu maravilhoso
infinito, perfazendo um ato sacrossanto, um perfeito acto
de Graça – que era sentir conscientemente a nossa
unidade, e realizar, durante um instante, na consciência, a
nossa divinização.
Assim enevoadamente filosofamos – quando Zé Brás,
com uma candeia na mão, veio avisar que “estavam
preparadas camas de suas inselências…” Da idealidade
descemos gostosamente à realidade, e que vimos então,
nós os irmãos dos astros? Em duas salas tenebrosas e
côncavas duas enxergas, postas no chão a um canto, com
duas cobertas de chita; à cabeceira um castiçal de latão,
pousado sobre um alqueire: e aos pés, como lavatório, um
alguidar vidrado em cima de uma cadeira de pau!
Em silêncio, o meu supercivilizado amigo palpou a sua
enxerga e sentiu nela a rigidez de um granito. Depois,
correndo pela face descaída os dedos murchos, considerou
que, perdidas as suas malas, não tinha nem chinelos nem
roupão! E foi ainda Zé Brás que providenciou, trazendo ao
pobre Jacinto para ele desafogar os pés uns tremendos
tamancos de pau, e para ele embrulhar o corpo,
docemente educado em Síbaris, uma camisa da caseira,
enorme, de estopa mais áspera que estamenha de
penitente, e com folhos crespos e duros como lavores em
madeira… Para o consolar, lembrei que Platão, quando
compunha o Banquete, Xenofonte, quando comandava os
Dez Mil, dormiam em piores catres. As enxergas austeras
fazem as fortes almas – e é só vestido de estamenha que
se penetra no Paraíso.
– Tem você (murmurou o meu amigo, desatento e seco)
alguma coisa que eu lei?… Eu não posso adormecer sem
ler!
Eu possuía apenas o número do «Jornal da Tarde», que
rasguei pelo meio, e partilhei com ele fraternalmente. E
quem não viu então Jacinto, senhor de Torges, acaçapado
à borda da enxerga, junto da vela que pingava sobre o
alqueire, com os pés nus encafuados nos grossos socos,
perdido dentro da camisa da patroa, toda em folhas,
percorrendo na metade do «Jornal da Tarde», com os olhos
turvos, os anúncios dos paquetes – não pode saber o que é
uma vigorosa e real imagem do desalento!
Assim o deixei – e daí a pouco, estendido na minha
enxerga também espartana, subia, através de um sonho
jovial e erudito, ao planeta Vênus, onde se encontrava,
entre os olmos e os ciprestes, num vergel, Platão e o Zé
Brás, em alta camaradagem intelectual, bebendo vinho o
vinho da Rética pelos copos de Torges! Travámos todos
três bruscamente uma controvérsia sobre o século XIX. Ao
longe, por entre uma floresta de roseiras mais altas que
carvalhos, alvejavam os mármores de uma cidade e
ressoavam cantos sacros. Não recordo o que Xenofonte
sustentou acerca da civilização e do fonógrafo. De repente
tudo foi turbado por fuscas nuvens, através das quais eu
distinguia Jacinto, fugindo num burro que ele impelia
furiosamente com os calcanhares, com uma vergasta, com
berros, para os lados do Jasmineiro!
Cedo, de madrugada, sem rumor, para não despertar
Jacinto que, com as mãos sobre o peito, dormia
placidamente no seu leito de granito – parti para Goães. E
durante três quietas semanas, naquela vila onde se
conservavam os hábitos e as idéias do tempo de el-rei D.
Dinis, não soube do meu desconsolado amigo, que decerto
fugira dos seus tetos esburacados e remergulhara na
civilização. Depois, por uma abrasada manhã de Agosto,
descendo de Goães, de novo trilhei a avenida das faias, e
entrei o portão solarengo de Torges, entre o furioso latir
dos rafeiros. A mulher de Zé Brás apareceu alvoraçada à
porta da tulha. E a sua nova foi logo que o Sr. D. Jacinto
(em Torges, o meu amigo tinha Dom) andava lá em baixo
com o Sousa nos campos nos campos de Freixomil.
– Então, ainda cá está o Sr. D. Jacinto?
Sua «excelência» ainda estava em Torges – e sua
“excelência” ficava para a vindima!… Justamente eu
reparava que as janelas do solar tinham vidraças novas; e
a um canto do pátio pousavam baldes de cal; uma escada
de pedreiro ficara arrimada contra a varanda; e num
caixote aberto, ainda cheio de palha de empacotar,
dormiam dois gatos.
– E o Grilo apareceu?
– O Sr. Grilo está no pomar, à sombra.
– Bem! E as malas?
– O Sr. D. Jacinto já tem o seu saquinho de couro…
Louvado Deus! O meu Jacinto estava enfim provido de
civilização! Subi contente. Na sala nobre onde o soalho fora
composto e esfregado, encontrei uma mesa recoberta de
oleado, prateleiras de pinho com louça branca de Barcelos
e cadeiras de palhinha, orlando as paredes muito caiadas
que davam uma frescura de capela nova. Ao lado, noutra
sala, também de faiscante alvura, havia o conforto
inesperado de três cadeiras de verga da Madeira, com
braços largos e almofadas de chita: sobre a mesa de pinho,
o papel almaço, o candeeiro de azeite, as penas de pato
espetadas num tinteiro de frade, pareciam preparadas para
um estudo calmo e ditoso das humanidades: e na parede,
suspensa de dois pregos, uma estantezinha continha
quatro ou cinco livros, folheados e usados, o D. Quixote,
um Virgílio, uma História de Roma, as Crônicas de
Froissart. Adiante era certamente o quarto de D. Jacinto,
um quarto claro e casto de estudante, com um catre de
ferro, um lavatório de ferro, a roupa pendurada de cabides
toscos. Tudo resplandecia de asseio e ordem. As janelas
fechados defendiam do sol de Agosto, que escaldava fora
dos peitoris de pedra. Do soalho, borrifado de água, subia
uma fresquidão consoladora. Num velho vaso azul um
molho de cravos alegrava e perfumava. Não havia um
rumor. Torges dormia no esplendor da sesta. E envolvido
naquele repouso de convento remoto, terminei por me
estender numa cadeira de verga junto à mesa, abri
languidamente o Virgílio, murmurando:
Fortunate jacinthe! tu inter arva nota
Et fontes sacros, frigus captabis opacum
.
Já mesmo irreverentemente adormecera sobre o divino
Bucolista, quando me despertou um brado amigo. Era o
nosso amigo Jacinto. E imediatamente o comparei a uma
planta, meio murcha e estiolada no escuro, que fora
profusamente regada e revivera em pleno sol. Não
corcoveava. sobre a sua palidez de supercivilizado, o ar da
serra ou a reconciliação com a vida tinham espalhado um
tom trigueiro e forte que o virilizava soberbamente. Dos
olhos, que na cidade eu lhe conhecera sempre
crepusculares, saltava agora um brilho de meio-dia,
decidido e largo, que mergulhava francamente na beleza
das coisas. Já não passava as mãos murchas sobre a face –
batia com elas rijamente na coxa… Que sei eu? Era uma
reencarnação. E tudo o que me contou, pisando
alegrmente com os sapatos brancos no soalho, foi que se
sentira, ao fim de três dias em Torges, como desanuviado,
mandara comprar um colchão macio, reunira cinco livros
nunca lidos, e ali estava…
– Para todo o Verão?
– Para todo o sempre! E agora, homem das cidades, vem
almoçar uma trutas que eu pesquei, e compreende enfim o
que é o céu.
As trutas eram com efeito celestes. E apareceu também
uma salada fria de couve-flor e vagens, e um vinho branco
de Azães… Mas quem condignamente vos cantará,
comeres e beberes daquelas serras?
De tarde, finda e calma, passeamos pelos caminhos
coleando da vasta quinta, que vai de vales a montes.
Jacinto parava a contemplar com carinho os milhos altos.
Com a mão espalmada e forte batia no tronco dos
castanheiros, como nas costas de amigos recuperados.
Todo o fio de água, todo tufo de erva, todo o pé de vinha o
ocupava como vidas filiais por que fosse responsável.
Conhecia certos melros que cantavam em certos choupos.
Exclamava enternecido:
– Que encanto, a flor do trevo!
À noite, depois de um cabrito assado no forno, a que
mestre Horácio teria dedicado uma ode (talvez mesmo um
carme heróico) conversamos sobre o Destino e a Vida. Eu
citei, com discreta malícia, Schopenhauer e o
Ecclesiastes… Mas Jacinto ergueu os ombros, com seguro
desdém. A sua confiança nesses dois sombrios explicadores
da vida desaparecera, e irremediavelmente, sem poder
mais voltar, como uma névoa que o sol espalha. Tremenda
tolice! Afirmar que a vida se compõe, meramente, de uma
longa ilusão – é erguer um aparatoso sistema sobre um
ponto especial e estreito da vida, deixando fora do sistema
toda a vida restante, como uma contradição permanente e
soberba. Era como se ele, Jacinto, apontando para uma
urtiga, crescida naquele pátio, declarasse, triunfalmente:
“Aqui está uma urtiga! Toda a quinta de Torges, portanto,
é uma massa de urtigas.” – Mas bastaria que o hóspede
erguesse os olhos, para ver as searas, os pomares e os
vinhedos!
De resto, desses dois ilustres pessimistas, um, o
alemão, que conhecia ele da vida – dessa vida de que
fizera, com doutoral majestade, uma teoria definitiva e
dolente? Tudo o que pode conhecer quem, como este
genial farsante, viveu cinqüenta anos numa soturna
hospedaria de província, levantando apenas os óculos dos
livros para conversar, à mesa–redonda, com os alferes da
guarnição! E o outro, o israelita, o homem dos Cantares, o
muito pedantesco rei de Jerusalém, só descobre que a vida
é uma ilusão aos setenta e cinco anos, quando o poder lhe
escapa das mãos trémulas, e o seu serralho de trezentas
concubinas se torna ridiculamente supérfluo à sua carcaça
frigida. Um dogmatiza funebremente sobre o que não sabe
– e o outro sobre o que não pode. Mas que se dê a esse
bom Schopenhauer uma vida tão completa e cheia como a
de César, e onde estará o seu schopenhauerismo? Que se
restitua a esse sultão, besuntado de literatura, que tanto
edificou e professorou em Jerusalém, a sua virilidade – e
onde estará o Ecclesiastes? De resto, que importa bendizer
ou maldizer da vida? Afortunada ou dolorosa, fecunda ou
vã, ela tem de ser vivida. Loucos aqueles que, para a
atravessar, se embrulham desde logo em pesados véus de
tristeza e desilusão, de sorte que na sua estrada tudo lhes
seja negrume, não só as léguas realmente escuras, mas
mesmo aquelas em que cintila um sol amável. Na Terra
tudo vive – e só o homem sente a dor e a desilusão da
vida. E tanto mais as sente, quanto mais alarga e acumula
a obra dessa inteligência que o torna homem, e que o
separa da restante Natureza, impensante e inerte. É no
máximo da civilização que ele experimenta o máximo de
tédio. A sapiência, portanto, este em recuar até esse
honesto mínimo de civilização, que consiste em ter um teto
de colmo, uma leira de terra e o grão para nela semear.

Em resumo, para reaver a felicidade, é necessário
regressar ao Paraíso – e ficar lá, quieto, na sua folha de
vinha, inteiramente desguarnecido de civilização,
contemplando o anho aos saltos entre o tomilho, e sem
procurar, nem com o desejo, a árvore funesta da Ciência!
Dixi!
Eu escutava, assombrado, este Jacinto novíssimo. Era
verdadeiramente uma ressurreição no magnífico estilo de
Lázaro. Ao surge et ambula que lhe tinham sussurrado as
águas e os bosques de Torges, ele erguia-se do fundo da
cova do Pessimismo, desembaraçava-se das suas casacas
de Poole, et ambulabat, e começava a ser ditoso. Quando
recolhi ao meu quarto, àquelas horas honestas que convêm
ao campo e ao Otimismo tomei entre as minhas a mão já
firme do meu amigo, e pensando que ele enfim alcançara a
verdadeira realeza, porque possuía a verdadeira liberdade,
gritei-lhe os meus parabéns à maneira do moralista de
Tíbure:
Vive et regna, fortunate Jacinthe!
Daí a pouco, através da porta aberta que nos separava,
senti uma risada fresca, moça, genuína e consolada. Era
Jacinto que lia o D. Quixote. Oh bem–aventurado Jacinto!
Conservava o agudo poder de criticar, e recuperara o dom
divino de rir!
Quatro anos vão passados. Jacinto ainda habita Torges.
As paredes do seu solar continuam bem caiadas, mas nuas.
De Inverno enverga um gabão de briche e acende um
braseiro. Para chamar o Grilo ou a moça, bate as mãos,
como fazia Catão. Com os seus deliciosos vagares, já leu a
Ilíada. Não faz a barba. Nos caminhos silvestres pára e fala
com as crianças. Todos os casais da serra o bendizem.
Ouço que vai casar com uma forte, sã e bela rapariga de
Goães. Decerto crescerá ali uma tribo, que será grata ao
Senhor!
Como ele, recentemente, me mandou pedir livros da sua
livraria (uma Vida de Buda, uma História da Grécia e as
obras de S. Francisco de Sales) fui, depois destes quatro
anos, ao Jasmineiro deserto. Cada passo meu sobre os
fofos tapetes de Caramânia soou triste como num chão de
mortos. Todos os brocados estavam engelhados,
esgaçados. Pelas paredes pendiam, como olhos fora de
órbitas, os botões eléctricos das campainhas e das luzes –
e havia vagos fios de arame, soltos, enroscados, onde a
aranha regalada e reinando tecera teias espessas. Na
livraria, todo o vasto saber dos séculos jazia numa imensa
mudez, debaixo de uma imensa poeira. Sobre as lombadas
dos sistemas filosóficos alvejava o bolor: vorazmente a
traça devastara as Histórias Universais: errava ali um
cheiro mole de literatura apodrecida – e eu abalei, com o
lenço no nariz, certo de que naqueles vinte mil volumes
não restava uma verdade viva! Quis lavar as mãos,
maculadas pelo contacto com estes detritos de
conhecimentos humanos. Mas os maravilhosos aparelhos
do lavatório, da sala de banho, enferrujados, perros,
dessoldados, não largaram uma gota de água; e, como
chovia nessa tarde de Abril, tive de sair à varanda, pedir ao
céu que me lavasse.
Ao descer, penetrei no gabinete de trabalho de Jacinto
e tropecei num montão negro de ferragens, rodas, lâminas,
campainhas, parafusos… Entreabri a janela, e reconheci o
telefone, o teatrofone, o fonógrafo, outros aparelhos,
tombados das suas peanhas, sórdidos, desfeitos sob a
poeira dos anos. Empurrei com o pé este lixo do engenho
humano. A máquina de escrever, escancarada, com os
buracos negros marcando as letras desarraigadas era como
uma boca alvar e desdentada. O telefone parecia
esborrachado, enrodilhado nas suas tripas de arame.
Na trompa do fonógrafo, torta, esbeiçada, para sempre
muda, fervilhavam carochas. E ali jaziam, tão lamentáveis
e grotescas, aquelas geniais invenções, que eu saí rindo,
como de uma enorme facécia, daquele supercivilizado
palácio.
A chuva de Abril secara: os telhados remotos da cidade
negrejavam sobre um poente de carmesim e ouro. E,
através das ruas mais frescas, eu ia pensando que este
nosso magnífico século XIX se assemelharia um dia àquele
Jasmineiro abandonado, e que os outros homens, com uma
certeza mais pura do que é a Vida e a Felicidade, dariam
como eu com o pé no lixo da supercivilização, e, como eu,
ririam alegremente da grande ilusão que findara, inútil e
coberta de ferrugem.
Àquela hora, decerto, Jacinto, na varanda em Torges,
sem fonógrafo e sem telefone, reentrado na simplicidade,
via, sob a paz lenta da tarde, ao tremeluzir da primeira
estrela, a boiada recolher entre o canto dos boiadeiros.

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