Home EstudosLivros Elenco de cronistas modernos (Parte 2), de Clarice Lispector

Elenco de cronistas modernos (Parte 2), de Clarice Lispector

by Lucas Gomes

Elenco de Cronistas Modernos

é uma obra que reúne crônicas de Carlos Drummond de Andrade, Clarice Lispector,
Fernando Sabino, Manuel Bandeira, Paulo Mendes Campos, Rachel de Queiroz e Rubem Braga. Foram selecionadas dez
textos de cada autor, além de breve biografia desses autores.

Crônicas são sempre curtas, tematizando os acontecimentos triviais
da vida. Pode-se observar nestas setenta crônicas o predomínio
do foco narrativo em primeira pessoa, um tom confessional, uma linguagem leve,
o humor e as reminiscências.

Nesta parte veremos

CLARICE LISPECTOR

Intimismo lispectoriano:
– Tensão interna
– Fluxo de consciência
– Reflexões abstratas
– Conflitos metafísicos
– Monólogo interior
– Caminhos labirínticos
– Crônicas alineares

Quatro fases: 1. Situação cotidiana; 2. Evento pressentido discretamente; 3. Epifania e 4. Desfecho

Crônicas

1. A repartição dos pães – Fato trivial. Vai a um almoço a contragosto. O narrador é recebido muito bem.

Alusão bíblica (lavação de pés)

– Altruismo – Partilha

– Mudança de comportamento: a dona da casa que oferece o almoço não faz restrições. Epifania.

Íntegra:

Era sábado e estávamos convidados para o almoço de
obrigação. Mas cada um de nós gostava demais de sábado
para gastá-lo com quem não queríamos. Cada um fora alguma
vez feliz e ficara com a marca do desejo. Eu, eu queria tudo. E nós ali
presos, como se nosso trem tivesse descarrilado e fôssemos obrigados a
pousar entre estranhos. Ninguém ali me queria, eu não queria a
ninguém. Quanto a meu sábado – que fora da janela se balançava
em acácias e sombras – eu preferia, a gastá-lo mal, fechá-la
na mão dura, onde eu o amarfanhava como a um lenço. à espera
do almoço, bebíamos sem prazer, à saúde do ressentimento:
amanhã já seria domingo. Não é com você que
eu quero, dizia nosso olhar sem umidade, e soprávamos devagar a fumaça
do cigarro seco. A avareza de não repartir o sábado,ia pouco a
pouco roendo e avançando como ferrugem, até que qualquer alegria seria um insulto à alegria maior.
Só a dona da casa não parecia economizar o sábado para
usá-lo numa quinta de noite. Ela, no entanto, cujo coração
já conhecera outros sábados. Como pudera esquecer que se quer
mais e mais? Não se impacientava sequer com o grupo heterogêneo,
sonhador e resignado que na sua casa só esperava como pela hora do primeiro
trem partir, qualquer trem – menos ficar naquela estação
vazia, menos ter que refrear o cavalo que correria de coração batendo para outros, outros cavalos.
Passamos afinal à sala para um almoço que não tinha a bênção
da fome. E foi quando surpreendidos deparamos com a mesa. Não podia ser para nós…
Era uma mesa para homens de boa-vontade. Quem seria o conviva realmente esperado
e que não viera? Mas éramos nós mesmos. Então aquela
mulher dava o melhor não importava a quem? E lavava contente os pés
do primeiro estrangeiro. Constrangidos, olhávamos.
A mesa fora coberta por uma solene abundância. Sobre a toalha branca amontoavam-se
espigas de trigo. E maçãs vermelhas, enormes cenouras amarelas,
redondos tomates de pele quase estalando, chuchus de um verde líquido,
abacaxis malignos na sua selvageria, laranjas alaranjadas e calmas, maxixes
eriçados como porcos-espinhos, pepinos que se fechavam duros sobre a
própria carne aquosa, pimentões ocos e avermelhados que ardiam
nos olhos – tudo emaranhado em barbas e barbas úmidas de milho,
ruivas como junto de uma boca. E os bagos de uva. As mais roxas das uvas pretas
e que mal podiam esperar pelo instante de serem esmagadas. E não lhes
importava esmagadas por quem. Os tomates eram redondos para ninguém:
para o ar, para o redondo ar. Sábado era de quem viesse. E a laranja adoçaria a língua de quem primeiro chegasse.
Junto do prato de cada mal-convidado, a mulher que lavava pés de estranhos
pusera – mesmo sem nos eleger, mesmo sem nos amar – um ramo de trigo
ou um cacho de rabanetes ardentes ou uma talhada vermelha de melancia com seus
alegres caroços. Tudo cortado pela acidez espanhola que se adivinhava
nos limões verdes. Nas bilhas estava o leite, como se tivesse atravessado
com as cabras o deserto dos penhascos. Vinho, quase negro de tão pisado,
estremecia em vasilhas de barro. Tudo diante de nós. Tudo limpo do retorcido
desejo humano. ‘Tudo como é, não como quiséramos. Só
existindo, e todo. Assim como existe um campo. Assim como as montanhas. Assim
como homens e mulheres, e não nós, os ávidos. Assim como um sábado. Assim como apenas existe. Existe.
Em nome de nada, era hora de comer. Em nome de ninguém, era bom. Sem
nenhum sonho. E nós pouco a pouco a par do dia, pouco a pouco anonimizados,
crescendo, maiores, à altura da vida possível. Então, como fidalgos camponeses, aceitamos a mesa.
Não havia holocausto: aquilo tudo queria tanto ser comido quanto nós
queríamos comê-lo. Nada guardando para o dia seguinte, ali mesmo
ofereci o que eu sentia àquilo que me fazia sentir. Era um viver que
eu não pagara de antemão com o sofrimento da espera, fome que
nasce quando a boca já está perto da comida. Porque agora estávamos
com fome, fome inteira que abrigava o todo e as migalhas. Quem bebia vinho,
com os olhos tornava conta do leite. Quem lento bebeu o leite, sentiu o vinho
que o outro bebia. Lá fora Deus nas acácias. Que existiam. Comíamos.
Como quem dá água ao cavalo. A carne trinchada foi distribuída.
A cordialidade era rude e rural. Ninguém falou mal de ninguém
porque ninguém falou bem de ninguém. Era reunião de colheita,
e fez-se trégua. Comíamos. Como uma horda de seres vivos, cobríamos
gradualmente a terra. Ocupados como quem lavra a existência, e planta,
e colhe, e mata, e vive, e morre, e come. Comi com a honestidade de quem não
engana o que come: comi aquela comida e não o seu nome. Nunca Deus foi
tão tomado pelo que Ele é. A comida dizia rude, feliz, austera:
come, come e reparte. Aquilo tudo me pertencia, aquela era a mesa de meu pai.
Comi sem ternura, comi sem a paixão da piedade. E sem me oferecer à
esperança. Comi sem saudade nenhuma. E eu bem valia aquela comida. Porque
nem sempre posso ser a guarda de meu irmão, e não posso mais ser
a minha guarda, ah não me quero mais. E não quero formar a vida
porque a existência já existe. Existe como um chão onde
nós todos avançamos. Sem uma palavra de amor. Sem uma palavra.
Mas teu prazer entende o meu. Nós somos fortes e nós comemos.
Pão é amor entre estranhos.

2. A mudez cantada, a mudez dançada

Observa-se a tentativa de um processo de comunicação através da palavra “dança”.

Íntegra:

Quase não era canto, no sentido em que este é aproveitamento
musical da voz. Quase não era voz, no sentido em que esta tende a dizer
palavras. é antes da voz ainda, é fôlego. Uma palavra ou
outra às vezes escapava, revelando de que era feita aquela mudez cantada:
de história de viver, amar, e morrer. Essas três palavras não
ditas eram interrompidas por lamentos e modulações. Modulações
de fôlego, primeiro estágio de voz que capta o sofrimento no seu
primeiro estágio de gemido, e capta a alegria no seu primeiro estágio
de gemido. E de grito. E mais outro grito, este de alegria por se ter gritado.
Em torno a assistência aconchegava-se escura e suja. Depois de uma das
modulações que de tão prolongada morre em suspiro, o grupo
esgotado como cantor murmura um “olé” em amém, última brasa.
Mas há também o canto impaciente que a voz apenas não exprime:
então um sapateado nervoso e firme o entrecorta, o “olé”
que interrompe a cada instante não é mais amém, é incitamento, é touro negro.

3. Macacos – Crônica que foge ao estilo da autora. Linear.
Parte de fato banal. A família compra um mico, fêmea, Lisette.

Antromorfização – Zoomorfização – Apego

Íntegra:

Da primeira vez que tivemos em casa um mico foi perto do Ano-Novo. Estávamos
sem água e sem empregada, fazia-se fila para carne, o calor rebentara
– e foi quando, muda de perplexidade, vi o presente entrar em casa, já
comendo banana, já examinando tudo com grande rapidez e um longo rabo.
Mais parecia um macacão ainda não crescido, suas potencialidades
eram tremendas. Subia pela roupa estendida na corda, de onde dava gritos de
marinheiro, e jogava cascas de banana onde caíssem. E eu exausta. Quando
me esquecia e entrava distraída na área de serviço, o grande
sobressalto: aquele homem alegre ali. Meu menino menor sabia, antes de eu saber,
que eu me desfaria do gorila: “E se eu prometer que um dia o macaco vai
adoecer e morrer, você deixa ele ficar? e se você soubesse que de
qualquer jeito ele um dia vai cair da janela e morrer Iá embaixo?”
Meus sentimentos desviavam o olhar. A inconsciência feliz e imunda do
macacão-pequeno tornava-me responsável pelo seu destino, já
que ele próprio não aceitava culpas. Uma amiga entendeu de que
amargura era feita a minha aceitação, de que crimes se alimentava
meu ar sonhador, e rudemente me salvou: meninos de morro apareceram numa zoada
feliz, levaram o homem que ria, e no desvitalizado Ano-Novo eu pelo menos ganhei uma casa sem macaco.
Um ano depois, acabava eu de ter uma alegria, quando ali em Copacabana vi o
agrupamento. Um homem vendia macaquinhos. Pensei nos meninos, nas alegrias que
eles me davam de graça, sem nada a ver com as preocupações
que também de graça me davam, imaginei uma cadeia de alegria:
“Quem receber esta, que a passe a outro”, e outro para outro, como
o frêmito num rastro de pólvora. E ali mesmo comprei a que se chamaria Lisette.
Quase cabia na mão. Tinha saia, brincos, colar e pulseira de baiana.
E um ar de imigrante que ainda desembarca com o traje típico de sua terra. De imigrante também eram os olhos redondos.
Quanto a essa, era mulher em miniatura. Três dias esteve conosco. Era
de uma tal delicadeza de ossos. De uma tal extrema doçura. Mais que os
olhos, o olhar era arredondado. Cada movimento, e os brincos estremeciam; a
saia sempre arrumada, o colar vermelho brilhante. Dormia muito, mas para comer
era sóbria e cansada. Seus raros carinhos eram só mordida leve que não deixava marca.
No terceiro dia estávamos na área de serviço admirando
Lisette e o modo como ela era nossa. “Um pouco suave demais”, pensei
com saudade do meu gorila. E de repente foi meu coração respondendo
com muita dureza: “Mas isso não é doçura. Isto é
morte”. A secura da comunicação deixou-me quieta. Depois
eu disse aos meninos: “Lisette está morrendo”. Olhando-a, percebi
então até que ponto de amor já tínhamos ido. Enrolei
Lisette num guardanapo, fui com os meninos para o primeiro pronto-socorro, onde
o médico não podia atender porque operava de urgência um
cachorro. Outro táxi. – Lisette pensa que está passeando, mamãe – outro hospital. Lá deram-lhe oxigênio.
E com o sopro de vida, subitamente revelou-se uma Lisette que desconhecíamos.
De olhos muito menos redondos, mais secretos, mais aos risos e na cara prognata
e ordinária uma certa altivez irônica; um pouco mais de oxigênio,
e deu-lhe uma vontade de falar que ela mal aguentava ser macaca; era, e
muito teria a contar. Breve, porém, sucumbia de novo, exausta. Mais oxigênio
e dessa vez uma injeção de soro a cuja picada ela reagiu com um
tapinha colérico, de pulseira tilintando. O enfermeiro sorriu: “Lisette, meu bem, sossega!”
O diagnóstico: não ia viver, a menos que tivesse oxigênio
à mão e, mesmo assim, improvável. “Não se compra
macaco na rua”, censurou-me ele abanando a cabeça, “às
vezes já vem doente”. Não, tinha-se que comprar macaca certa,
saber da origem, ter pelo menos cinco anos de garantia do amor, saber do que
fizera ou não fizera, como se fosse para casar. Resolvi um instante com
os meninos. E disse para o enfermeiro: “O senhor está gostando muito
de Lisette. Pois se o senhor deixar ela passar uns dias perto do oxigênio,
no que ela ficar boa, ela é sua”. Mas ele pensava. “Lisette
é bonita!”, implorei eu. “é linda”, concordou ele
pensativo. Depois ele suspirou e disse: “Se eu curar Lisette, ela é sua”. Fomos embora, de guardanapo vazio.
No dia seguinte telefonaram, e eu avisei aos meninos que Lisette morrera. O
menor me perguntou: “Você acha que ela morreu de brincos?” Eu
disse que sim. Uma semana depois o mais velho me disse: “Você parece
tanto com Lisette!” “Eu também gosto de você”, respondi.

4. Tentação – Uma menina ruiva, ao sol da tarde na calçada. A aparência chama atenção do narrador.
A menina vê um cão Basset, ruivo. Os dois se olham. A dona leva o cachorro e a menina fica.

– Análise de processos interiores
– Cotidiano = Menina sentada
– O cão aproxima-se = Evento
– Olham-se = Epifania
– O cão se vai = Desfecho

Íntegra:

Ela estava com soluço. E como se não bastasse a claridade das duas horas, ela era ruiva.
Na rua vazia as pedras vibravam de calor – a cabeça da menina flamejava.
Sentada nos degraus de sua casa, ela suportava. Ninguém na rua, só
uma pessoa esperando inutilmente no ponto do bonde. E como se não bastasse
seu olhar submisso e paciente, o soluço a interrompia de momento a momento,
abalando o queixo que se apoiava conformado na mão. Que fazer de uma
menina ruiva com soluço? Olhamo-nos sem palavras, desalento contra desalento.
Na rua deserta nenhum sinal de bonde. Numa terra de morenos, ser ruivo era uma
revolta involuntária. Que importava se num dia futuro sua marca ia fazê-la
erguer insolente uma cabeça de mulher? Por enquanto ela estava sentada
num degrau faiscante da porta, às duas horas. O que a salvava era uma
bolsa velha de senhora, com alça partida. Segurava-a com um amor conjugal já habituado, apertando-a contra os joelhos.
Foi quando se aproximou a sua outra metade neste mundo, um irmão em Grajaú.
A possibilidade de comunicação surgiu no ângulo quente da
esquina acompanhando uma senhora, e encarnada na figura de um cão. Era
um basset lindo e miserável, doce sob a sua fatalidade. Era um basset ruivo.
Lá vinha ele trotando, à frente da sua dona, arrastando o seu comprimento. Desprevenido, acostumado, cachorro.
A menina abriu os olhos pasmados. Suavemente avisado, o cachorro estacou diante dela. Sua língua vibrava. Ambos se olhavam.
Entre tantos seres que estão prontos para se tornarem donos de outro
ser, lá estava a menina que viera ao mundo para ter aquele cachorro.
Ele fremia suavemente, sem latir. Ela olhava-o sob os cabelos, fascinada, séria.
Quanto tempo se passava? Um grande soluço sacudiu-a desafinado. Ele nem
sequer tremeu. Também ela passou por cima do soluço e continuou a fitá-lo. Os pêlos de ambos eram curtos, vermelhos.
Que foi que se disseram? Não se sabe. Sabe-se apenas que se comunicaram
rapidamente, pois não havia tempo. Sabe-se também que sem falar
eles se pediam. Pediam-se, com urgência, com encabulamento, surpreendidos.
No meio de tanta vaga impossibilidade e de tanto sol, ali estava a solução
para a criança vermelha. E no meio de tantas ruas a serem trotadas, de
tantos cães maiores, de tantos esgotos secos – lá estava uma menina,
como se fora carne de sua ruiva carne. Eles se fitavam profundos, entregues,
ausentes do Grajaú. Mais um instante e o suspenso sonho se quebraria, cedendo talvez à gravidade com que se pediam.
Mas ambos eram comprometidos.
Ela com sua infância impossível, o centro da inocência que
só se abriria quando ela fosse uma mulher. Ele, com sua natureza aprisionada.
A dona esperava impaciente sob o guarda-sol. O basset ruivo afinal despregou-se
da menina e saiu sonâmbulo. Ela ficou espantada, com o acontecimento nas
mãos, numa mudez que nem pai nem mãe compreenderiam. Acompanhou-o
com olhos pretos que mal acreditavam, debruçada sobre a bolsa e os joelhos, até vê-lo dobrar a outra esquina.
Mas ele foi mais forte que ela. Nem uma só vez olhou para trás.

5. Uma amizade sincera – Psiquê humana – Contraditório – Individualidade

Narração em primeira pessoa.

Íntegra:

Não é que fôssemos amigos de longa data. Conhecemo-nos
apenas no último ano da escola. Desde esse momento estávamos juntos
a qualquer hora. Há tanto tempo precisávamos de um amigo que nada
havia que não confiássemos um ao outro. Chegamos a um ponto de
amizade que não podíamos mais guardar um pensamento: um telefonava
logo ao outro, marcando encontro imediato. Depois da conversa, sentíamo-nos
tão contentes como se nos tivéssemos presenteado a nós
mesmos. Esse estado de comunicação contínua chegou a tal
exaltação que, no dia em que nada tínhamos a nos confiar,
procurávamos com alguma aflição um assunto. Só que
o assunto havia de ser grave, pois em qualquer um não caberia a veemência de uma sinceridade pela primeira vez experimentada.
Já nesse tempo apareceram os primeiros sinais de perturbação
entre nós. às vezes um telefonava, encontrávamo-nos, e
nada tínhamos a nos dizer. éramos muito jovens e não sabíamos
ficar calados. De início, quando começou a faltar assunto, tentamos
comentar as pessoas. Mas bem sabíamos que já estávamos
adulterando o núcleo da amizade. Tentar falar sobre nossas mútuas
namoradas também estava fora de cogitação, pois um homem
não falava de seus amores. Experimentávamos ficar calados – mas tornávamo-nos inquietos logo depois de nos separarmos.
Minha solidão, na volta de tais encontros, era grande e árida.
Cheguei a ler livros apenas para poder falar deles. Mas uma amizade sincera
queria a sinceridade mais pura. à procura desta, eu começava a
me sentir vazio. Nossos encontros eram cada vez mais decepcionantes. Minha sincera
pobreza revelava-se aos poucos. Também ele, eu sabia, chegara ao impasse de si mesmo.
Foi quando, tendo minha família se mudado para São Paulo, e ele
morando sozinho, pois sua família era do Piauí, foi quando o convidei
a morar em nosso apartamento, que ficara sob a minha guarda. Que rebuliço
de alma. Radiantes, arrumávamos nossos livros e discos, preparávamos
um ambiente perfeito para a amizade. Depois de tudo pronto – eis-nos dentro
de casa, de braços abanando, mudos, cheios apenas de amizade.
Queríamos tanto salvar o outro. Amizade é matéria de salvação.
Mas todos os problemas já tinham sido tocados, todas as possibilidades
estudadas. Tínhamos apenas essa coisa que havíamos procurado sedentos
até então e enfim encontrado: uma amizade sincera. único
modo, sabíamos, e com que amargor sabíamos, de sair da solidão
Mas como se nos revelava sintética a amizade. Como se quiséssemos
espalhar em longo discurso um truísmo que uma palavra esgotaria. Nossa
amizade era tão insolúvel como a soma de dois números:
inútil querer desenvolver para mais de um momento a certeza de que dois e três são cinco.
Tentamos organizar algumas farras no apartamento, mas não só os vizinhos reclamaram como não adiantou.
Se ao menos pudéssemos prestar favores um ao outro. Mas nem havia oportunidade,
nem acreditávamos em provas de uma amizade que delas não precisava.
O mais que podíamos fazer era o que fazíamos: saber que éramos
amigos. O que não bastava para encher os dias, sobretudo as longas férias.
Data dessas férias o começo da verdadeira aflição.
Ele, a quem eu nada podia dar senão minha sinceridade, ele passou a ser
uma acusação de minha pobreza. Além do mais, a solidão
de um ao lado do outro, ouvindo música ou lendo, era muito maior do que
quando estávamos sozinhos. E, mais que maior, incômoda. Não
havia paz. Indo depois cada um para seu quarto, com alívio nem nos olhávamos.
é verdade que houve uma pausa no curso das coisas, uma trégua
que nos deu mais esperanças do que em realidade caberia. Foi quando meu
amigo teve uma pequena questão com a Prefeitura. Não é
que fosse grave, mas nós a tomamos para melhor usá-la. Porque
então já tínhamos caído na facilidade de prestar
favores. Andei entusiasmado pelos escritórios de conhecidos de minha
família, arranjando pistolões para meu amigo. E quando começou
a fase de selar papéis, corri por toda a cidade – posso dizer em
consciência que não houve firma que se reconhecesse sem ser através de minha mão.
Nessa época encontrávamo-nos de noite em casa, exaustos e animados:
contávamos as façanhas do dia, planejávamos os ataques
seguintes. Não aprofundávamos muito o que estava sucedendo, bastava
que tudo isso tivesse o cunho da amizade. Pensei compreender por que os noivos
se presenteiam, por que o marido faz questão de dar conforto à
esposa, e esta prepara-lhe afanada o alimento, por que a mãe exagera
nos cuidados ao filho. Foi, aliás, nesse período que, com algum
sacrifício, dei um pequeno broche de ouro àquela que é
hoje minha mulher. Só muito depois eu ia compreender que estar também é dar.
Encerrada a questão com a Prefeitura – seja dito de passagem, com
vitória nossa – continuamos um ao lado do outro, sem encontrar
aquela palavra que cederia a alma. Cederia a alma? Mas afinal de contas quem queria ceder a alma? Ora essa.
Afinal o que queríamos? Nada. Estávamos fatigados, desiludidos.
A pretexto de férias com minha família, separamo-nos. Aliás
ele também ia ao Piauí. Um aperto de mão comovido foi o
nosso adeus no aeroporto. Sabíamos que não nos veríamos
mais, senão por acaso. Mais que isso: que não queríamos
nos rever. E sabíamos também que éramos amigos. Amigos sinceros.

6. Brasília 1962 – Visão caótica e surrealista da Capital Federal

– Fluxo de consciência
– Confusão: Real x Imaginário
– Oscar e Lúcio
– A própria cidade parece que fala

7. Come, meu filho – Desinteresse Paterno – Mundo Moderno

– Come = Falta de diálogo (Diálogo que a princípio só se ouve uma voz).

Íntegra:

O mundo parece chato mas eu sei que não é. Sabe por que parece
chato? Porque, sempre que a gente olha, o céu está em cima, nunca
está embaixo, nunca está de lado. Eu sei que o mundo é
redondo porque disseram, mas só ia parecer redondo se a gente olhasse
e às vezes o céu estivesse lá embaixo. Eu sei que é
redondo, mas para mim é chato, mas Ronaldo só sabe que o mundo é redondo, para ele não parece chato.
– . . .
– Porque eu estive em muitos países e vi que nos Estados Unidos o céu
também é em cima, por isso o mundo parecia todo reto para mim.
Mas Ronaldo nunca saiu do Brasil e pode pensar que só aqui é que
o céu é lá em cima, que nos outros lugares não é
chato, que só é chato no Brasil, que nos outros lugares que ele
não viu vai arredondando. Quando dizem para ele, é só acreditar,
pra ele nada precisa parecer. Você prefere prato fundo ou prato chato, mamãe?
– Chat… raso, quer dizer.
– Eu também. No fundo, parece que cabe mais, mas é só para
o fundo, no chato cabe para os lados e a gente vê logo tudo o que tem. Pepino não parece inreal?
– Irreal.
– Por que você acha?
– Se diz assim.
– Não, por que é que você também achou que pepino
parece inreal? Eu também. A gente olha e vê um pouco do outro lado,
é cheio de desenho bem igual, é frio na boca, faz barulho de um
pouco de vidro quando se mastiga. Você não acha que pepino parece inventado?
– Parece.
– Onde foi inventado feijão com arroz?
– Aqui.
– Ou no árabe, igual que Pedrinho disse de outra coisa?
– Aqui.
– Na Sorveteria Gatão o sorvete é bom porque tem gosto igual da
cor. Para você carne tem gosto de carne?
– às vezes.
– Duvido! Só quero ver: da carne pendurada no açougue?!
– Não.
– E nem da carne que a gente fala. Não tem gosto de quando você diz que carne tem vitamina.
– Não fala tanto, come.
– Mas você está olhando desse jeito para mim, mas não é
para eu comer, é porque você está gostando muito de mim, adivinhei ou errei?
– Adivinhou. Come, Paulinho.
– Você só pensa nisso. Eu falei muito para você não pensar só em comida, mas você vai e não esquece.

8. Um amor conquistado – Fluxo de consciência

– Quati = Condição humana
– Condição humana = Desfiguração

Íntegra:

Encontrei Ivan Lessa na fila de lotação do bairro e estávamos
conversando quando Ivan se espantou e me disse: olhe que coisa esquisita. Olhei
para trás e vi, da esquina para a gente, um homem vindo com o seu tranquilo
cachorro puxado pela correia. Só que não era cachorro. A atitude
toda era de cachorro, e a do homem era a de um homem com o seu cão. Este
é que não era. Tinha focinho acompridado de quem pode beber em
copo fundo, rabo longo e duro – poderia, é verdade, ser apenas uma variação
individual da raça. Ivan levantou a hipótese de quati, mas achei
o bicho muito cachorro demais para ser quati, ou seria o quati mais resignado
e enganado que jamais vi. Enquanto isso, o homem calmamente vindo. Calmamente,
não; havia uma tensão nele, era uma calma de quem aceitou luta:
seu ar era de um natural desafiador. Não se tratava de um pitoresco;
era por coragem que andava em público com o seu bicho. Ivan sugeriu a
hipótese de outro animal de que na hora não se lembrou o nome.
Mas nada me convencia. Só depois entendi que minha atrapalhação
não era propriamente minha, vinha de que aquele bicho já não
sabia mais quem ele era, e não podia portanto me transmitir uma imagem
nítida. Até que o homem passou perto. Sem um sorriso, costas duras,
altivamente se expondo – não, nunca foi fácil passar diante da
fila humana. Fingia prescindir de admiração ou piedade; mas cada
um de nós reconhece o martírio de quem está protegendo
um sonho. – Que bicho é esse? perguntei-lhe, e intuitivamente meu tom
foi suave para não feri-lo com uma curiosidade. Perguntei que bicho era
aquele, mas na pergunta o tom talvez incluísse: “por que é
que você faz isso? que carência é essa que faz você
inventar um cachorro? e por que não um cachorro mesmo, então?
pois se os cachorros existem! Ou você não teve outro modo de possuir
a graça desse bicho senão com uma coleira? mas você esmaga
uma rosa se apertá-la com força!” Sei que o tom é
uma unidade indivisível por palavras, sei que estou esmagando uma rosa,
mas estilhaçar o silêncio em palavras é um dos meus modos
desajeitados de amar o silêncio, e é assim que muitas vezes tenho
matado o que compreendo. (Se bem que, glória a Deus, sei mais silêncio
que palavras.) O homem, sem parar, respondeu curto, embora sem aspereza. E era
quati mesmo. Ficamos olhando. Nem Ivan nem eu sorrimos, ninguém na fila
riu – esse era o tom, essa era a intuição. Ficamos olhando.Era
um quati que se pensava cachorro. às vezes, com seus gestos de cachorro,
retinha o passo para cheirar coisas, o que retesava a correia e retinha um pouco
o dono, na usual sincronização de homem e cachorro. Fiquei olhando
esse quati que não sabe quem é. Imagino: se o homem o leva para
brincar na praça, tem uma hora que o quati se constrange todo: “mas,
santo Deus, por que é que os cachorros me olham tanto?” Imagino
também que, depois de um perfeito dia de cachorro, o quati se diga melancólico,
olhando as estrelas: “que tenho afinal? que me falta? sou tão feliz
como qualquer cachorro, por que então este vazio, esta nostalgia/ que
ânsia é esta, como se eu só amasse o que não conheço?”
E o homem, o único a poder delivrá-lo da pergunta, esse homem
nunca lhe dirá para não perdê-lo para sempre. Penso também
na iminência de ódio que há no quati. Ele sente amor e gratidão
pelo homem. Mas por dentro não há como a verdade deixar de existir:
e o quati só não percebe que o odeia porque está vitalmente
confuso.Mas se ao quati fosse de súbito revelado o mistério de
sua verdadeira natureza? Tremo ao pensar no fatal acaso que fizesse esse quati
inesperadamente defrontar-se com outro quati, e nele reconhecer-se, ao pensar
nesse instante em que ele ia sentir o mais feliz pudor que nos é dado:
eu… nós… Bem sei, ele teria direito, quando soubesse, de massacrar
o homem com o ódio pelo que de pior um ser pode fazer a outro ser – adulterar-lhe
a essência a fim de usá-lo. Eu sou pelo bicho, tomo o partido das
vítimas do amor ruim. Mas imploro ao quati que perdoe ao homem, e que o perdoe com muito amor. Antes de abandoná-lo, é claro.

9. O chá – A solidão. Vazio. Reflexão.

– Metafísico = FC

Narraçao em primeira pessoa.

Verbos no Futuro do Pretérito.

Íntegra:

“As imaginações que assustam. Pensei numa festa – sem
bebida, sem comida, festa só de olhar. Até as cadeiras alugadas
e trazidas para um terceiro andar vazio da Rua da Alfândega, este seria
um bom lugar. Para essa festa eu convidaria todos os amigos e amigas que tive
e não tenho mais. Só eles, sem nem sequer os entre-amigos mútuos.
Pessoas que vivi, pessoas que me viveram. Mas como é que se volta da
Rua da Alfândega ao anoitecer? As calçadas estariam secas e duras, eu sei.
Preferi outra imaginação. Começou misturando carinho,
gratidão, raiva; só depois é que se desdobraram duas asas
de morcego, como o que vem de longe e vai chegando muito perto; mas também
brilhavam as asas. Seria um chá – domingo, Rua do Lavradio –
que eu oferecia a todas as empregadas que já tive na vida. As que esqueci
marcariam a ausência com uma cadeira vazia, assim como estão dentro
de mim. As outras sentadas, de mãos cruzadas no colo. Mudas – até
o momento em que cada uma abrisse a boca e, rediviva, morta-viva, recitasse
o que eu me lembro. Quase um chá de senhoras, só que nesse não se falaria de criadas.
– Pois te desejo muita felicidade – levanta-se uma – desejo que você obtenha tudo o que ninguém pode te dar.
– Quando peço uma coisa – ergue-se outra – só sei
falar rindo muito e pensam que não estou precisando.
– Gosto de filme de caçada. (E foi tudo o que me ficou de uma pessoa inteira.)
– Trivial, não, senhora. Só sei fazer comida de pobre.
– Quando eu morrer, uma pessoas vão ter saudade de mim. Mas só isso.
– Fico com os olhos cheios de lágrimas quando falo com a senhora, deve ser espiritismo.
– Era um miúdo tão bonito que até me vinha vontade de fazer-lhe mal.
– Pois hoje de madrugada – me diz a italiana – quando eu vinha para
cá, as folhas começaram a cair, e a primeira neve também.
Um homem na rua disse assim: “é a chuva de ouro e prata.”
Fingi que não ouvi porque se não tomo cuidado os homens fazem de mim o que querem.
– Lá vem a lordeza – levanta-se a mais antiga de todas, aquela
que só conseguia dar ternura amarga e nos ensinou tão cedo a perdoar
crueldade de amor. – A lordeza dormiu bem? A lordeza é de luxo.
é cheia de vontades, ela quer isso, ela quer aquilo. A lordeza é branca.
– Eu queria folga nos três dias de carnaval, madame, porque chega de donzelice.
– Comida é questão de sal. Comida é questão de sal.
Comida é questão de sal. Lá vem a lordeza: te desejo que
obtenhas tudo o que ninguém pode te dar, só isso quando eu morrer.
Foi então que o homem disse que a chuva era de ouro, o que ninguém
pode te dar. A menos que tenhas medo de ficar toda de pé no escuro, banhada
de ouro, só na escuridão, mas só na escuridão. A
lordeza é de luxo pobre: folhas ou a primeira neve. Ter o sal do que
se come, não fazer mal ao que é bonito, não rir na hora
de pedir e nunca fingir que não se ouviu quando alguém disser: esta, mulher, esta é a chuva de ouro e prata. Sim.

10. Uma italiana suiça

Quatro fases – Mudança

Fonte: Unievangélica – Carlos Lisboa

Parte
1
| Parte 2 | Parte
3
| Parte
4
| Parte
5
| Parte
6
| Parte
7

Posts Relacionados